A contemplação de Gil
Em entrevista recente a Marília Gabriela, o cantor e compositor Gilberto Gil disse que, aos 70 anos, tem se aproximado mais do estado contemplativo da vida. A sua afirmação foi uma resposta à pergunta da apresentadora sobre como ele via a sua trajetória de sucesso como artista e como ele se vê hoje.
Ao explicar o que seria esse estado contemplativo, Gil ressaltou que ele era proveniente das suas constantes meditações, que o aproximam da necessidade de quietude e de observação de si mesmo e do mundo. O compositor baiano mencionou que esse tipo de contemplação ficou mais forte em sua vida antes mesmo de completar 50 anos.
Ainda na casa dos 40, Gil compôs, em 1980, uma de suas canções mais marcantes; a meu ver, um prenúncio desse seu estado contemplativo na atual fase septuagenária. Sucesso absoluto na voz de Elis Regina, “Se eu quiser falar com Deus” é um convite à meditação e, ao mesmo tempo, à contemplação (principalmente à que olhamos para dentro antes de almejar o mundo exterior).
“Se eu quiser falar com Deus / tenho que ficar a sós / tenho que apagar a luz / tenho que calar a voz / tenho que encontrar a paz / tenho que folgar os nós dos sapatos, da gravata, dos desejos, dos receios / tenho que esquecer a data / tenho que perder a conta / tenho que ter mãos vazias / ter a alma e o corpo nus (...)”.
Quantas vezes, ao longo da vida, fizemos algo que chegasse perto do que escreve Gil nesse primeiro trecho da canção? A verdade é que, por não estarem normalmente dispostos a fazer nada disso, os adultos sequer conseguem abrir o canal que leva ao Divino que há em si mesmos; sequer se propõem a começar procurando-o no espelho. Se realmente somos fagulhas de Deus, então a melhor forma de oração é o claro reconhecimento desta condição. Ela é a partida e a chegada para a solução de todos os problemas (inventados ou não).
"(...) Se eu quiser falar com Deus / tenho que aceitar a dor / tenho que comer o pão que o diabo amassou / tenho que virar um cão / tenho que lamber o chão dos palácios, dos castelos suntuosos do meu sonho / tenho que me ver tristonho / tenho que me achar medonho / e apesar de um mal tamanho alegrar meu coração (...)”.
Por que duvidar de que todos os sofrimentos vividos desde os primórdios da humanidade já foram mais do que suficientes para se entender que eles são apenas um caminho que precisa ter fim? Em pleno terceiro milênio da era cristã, após centenas de milhares de histórias repetidas, como não conhecer a fórmula capaz de acabar com a tristeza das pessoas? Uma fórmula de muitas implicações e esforços, mas a única opção em se tratando do sentido essencial de nossa passagem por esta existência.
"(...) Se eu quiser falar com Deus / tenho que me aventurar / tenho que subir aos céus sem cordas pra segurar / tenho que dizer adeus / dar as costas, caminhar decidido pela estrada que ao findar vai dar em nada do que eu pensava encontrar.”
Em minhas próprias meditações, tão cheias de inquietudes e angústias, penso (muito mais do que sinto) que o estado contemplativo que Gil mencionou na entrevista é uma conquista acessível. Não fácil, é bom que se diga, mas acessível. O “subir aos céus sem cordas pra segurar” talvez seja o xis da questão. Somos seres espirituais que, na complexa trama da sociabilidade, caíram na própria armadilha das amarras materiais.