Cadeias ou Pocilgas Públicas
Cadeias ou Pocilgas Públicas
Não se pode olvidar que um dos maiores desafios para um magistrado na atualidade é a questão carcerária, ainda que poucos magistrados tenham se dado conta dessa realidade e, pior, contribuído para que as coisas permaneçam como estão, isto é, para que tenhamos ‘pocilgas públicas’ em vez de cadeias públicas.
Nós, enquanto magistrados, e você enquanto cidadão com potencial para amanhã ou depois ocupar uma das celas de uma ‘pocilga pública’, não pode simplesmente ‘torcer o nariz’ e pensar que o problema não é meu e nem seu. Ledo engano.
Só quem adentra uma cadeia pode dimensionar o sofrimento que experimenta quem lá está confinado num cubículo 24 horas por dia com vários outros colegas reclusos, que dividem o mesmo espaço para dormir, fazer suas necessidades, tomar banho e fazer todas as refeições. Essa situação de penúria vivenciada pelos presos nas Comarcas onde atuei, praticamente me obrigou a ser um juiz engajado e entusiasmado com a questão carcerária. Tanto é realidade que já tive oportunidade por duas vezes interditar cadeias, quer em Guaranésia, quer em Monte Sião. Tais decisões causaram, por certo, espantos em pessoas mais radicais e intransigentes, adeptas da velha política de que se deve apenas “empilhar” os presos; e que quanto pior eles estiverem na cadeia, melhor para pagar os pecados mundanos.
Sabe-se que a pena aflitiva imposta pelo Estado ao autor de uma inflação penal, como retribuição de seu ato ilícito, consiste na diminuição de um bem jurídico, e cujo fim é evitar novos delitos. Como prevenção especial a pena visa o autor do delito, retirando-o do meio social, impedindo-o de delinqüir e procurando corrigi-lo. A reforma penal de 1984, tal como fizera o Código Penal de 1940, adotou o sistema progressivo de execução, visando à ressocialização do criminoso.
Diz o Estatuto Repressivo que o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral. Lado outro, a Lei de Execução Penal elenca os direitos dos presos.
Não se pode ignorar e desconhecer que a falência do sistema prisional, embasado unicamente na punição pelo encarceramento, é flagrante. Hodiernamente firma-se o pensamento de que a ressocialização do condenado, por meio de seu encarceramento, viu frustradas suas expectativas. A reeducação moral e social do condenado, buscando-se reintegrá-lo à comunidade, por meio do afastamento de seu convívio, a não ser em situações excepcionais, é inviável. O que se vivencia na prática, em face da falência do sistema, é o aviltamento da personalidade do preso. Confrontando com a realidade das penitenciárias, normalmente inaptas para permitir o exercício de alguma ocupação, aprendizado ou lazer, fatos que são fundamentais para que se possa pensar em regeneração, pode vir a manter a sua integridade física – desde que não venha a afrontar grupos estabelecidos que mantém o poder em tais instituições, mas tem sua personalidade desvalorizada. Como conseqüência, advém o descrédito, a desesperança, quando não a revolta, fatos que promovem em seu pensamento a intenção de reincidir. Além disso, o contato com outros indivíduos com clara inclinação criminosa, faz com que surjam idéias, quando não organizadas, para atuar após encerrado o lapso prisional, ou quando encetada a fuga.
Agravante maior ainda é o fato da inexistência de classificação entre os reclusos, dividindo a mesma cela presos provisórios, condenados, presos civil e aqueles que cometeram crimes hediondos, desta feita tornando-se impossível a ressocialização dos encarcerados, sobretudo se levarmos em conta que a cadeia pública não se presta ao cumprimento da pena de longa duração, em regime fechado, devendo, por isso, até porque é seu direito, ser recolhido em estabelecimento penal adequado – penitenciárias.
É bem de ver que não se pode fazer uma análise simplista do problema, visto que o sistema prisional não é o único responsável pela ocorrência tão elevada da criminalidade. A ele se agregam outros fatores, e. g., má distribuição de renda, da precariedade do sistema de educação, da falta de acesso ao trabalho, enfim, de diversas razões que dificultam o exercício de uma vida dentro dos padrões normais. Como se vê, a criminalidade tem motivações múltiplas, e enquanto não se der solução a esses problemas, necessária será a convivência com as prisões.
É assente que os malefícios da prisão têm sido ressaltados pela doutrina com tal consistência e uniformidade, que se pode dizer, hoje em dia, que é praticamente unânime a conclusão de que a cadeia fracassou como meio de reforma do delinqüente. O que se apregoa, ao contrário, é sua nefasta influência na vida do preso, como verdadeira escola de criminosos.
O princípio da dignidade da pessoa humana nos remete à certeza de que a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas nem sempre menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
Não foi necessária muita reflexão para se perceber a desconformidade com a lei e a condição sub humana em que viviam as pessoas encarceradas nas ‘pocilgas’ de minhas Comarcas. As situações eram por demais constrangedoras e até humilhante, tanto para os presos quanto para os policiais e servidores ficando todos ao largo dos mínimos direitos previstos na LEP. Foi preciso, diante deste quadro dantesco, chamar a atenção do Estado para o grave problema instalado nas cadeias, e forma de chamar a atenção por certo foi interditá-las. Não é possível deixar de lado a questão da execução penal, em especial porque a conseqüência é sempre o aumento da criminalidade e o desequilíbrio social. Não desconheço a gravidade das medidas tomadas - interdição, mas os ditames da Lei de Execução Penal não podiam e não podem ser esquecidos.
A balança da Justiça possui dois pratos: num encontra-se assentado o interesse individual, do próprio réu ou condenado. Do outro lado, a sociedade. Não se pode olvidar os direitos do preso de tratamento condigno, o que não vinha sendo propiciado nas cadeias interditadas, vez que não existiam celas, e sim, jaulas! Por outro lado, não pode a sociedade ficar a mercê de pessoas vis, bandidos de toda natureza, condenados ou presos cautelarmente, que teriam que ser soltos em virtude das condições precárias dos cárceres. .
Durante muito tempo pensou-se que o trabalho do magistrado ia somente até a condenação, sendo que a partir daí a responsabilidade passava a ser somente do Poder Executivo, responsável direto pela administração dos presídios. Essa postura contribuiu para a realidade que se vê hoje, das péssimas condições estruturais das cadeias – celas, sem água, banheiro, higiene, bem como da superlotação carcerária, de presídios a invejar as masmorras da idade média, onde os presos não aprendem nada de útil, retornando à sociedade piores do que entraram.
Há, entretanto, uma nova tendência da magistratura, mais atuante e preocupada com os problemas que afetam a população carcerária. Exemplo disso são as construções das APACs como solução para uma efetiva ressocialização dos presos e, sobretudo para que não percam jamais suas auto-estimas.
Mais do que isso, é preciso que a sociedade tenha consciência de que o problema do presídio é um problema que diz respeito a todos nós – autoridades e cidadãos. A sociedade precisa cuidar dos seus presos, pois, com certeza, é só questão de tempo, retornarão ao convívio social. Como diz o ditado, “hoje eles estão contidos; amanhã, estarão contigo”. Se forem tratados como animais, é assim que tratarão as pessoas quando saírem detrás das grades.
Nas pequenas cidades, a exemplo de Guaranésia e Monte Sião, Comarcas onde interditei suas cadeias, essa realidade fica bem visível, pois quem está preso é o próprio morador da cidade, que saindo do presídio volta para sua casa que pode ser ao lado da minha e da sua.
Muitas pessoas seguidamente cobram das autoridades mais rigor nas punições ou medidas enérgicas de combate à criminalidade, sem se darem conta de que também elas podem e devem fazer a sua parte, no caso exigindo das autoridades constituídas atitudes objetivando a real ressocialização dos presos que, por certo é o seu esposo, esposa, filho, filha, pai, parente, amigo. Além disso, ainda podem contribuir de alguma forma para melhorar a situação dos presos, seja através de doações diretas, seja oferecendo ou intermediando a obtenção de um emprego, seja realizando atividades dentro do presídio ou engajando-se em trabalhos sociais que contribuam para tanto.
É preciso, pois, repensar o conceito que se tem sobre o problema dos presídios. Trabalhar no sentido de humanizar o cumprimento da pena é, ao meu ver, a maior contribuição que um magistrado pode dar para o combate à criminalidade. A situação urge uma tomada de posição por parte do Poder Judiciário, no caso competente para a apreciação e interdição de presídios, vez que o Município e o Estado, a bem da verdade não se interessam pela solução, já que é do conhecimento de todos, a máxima popular de que “cadeia não dá voto”.
De modo que basta a você cidadão quando, por qualquer motivo, tiver que compartilhar uma cela com outros, escolher se quer cumprir sua pena em uma cadeia pública ou, então, em uma ‘pocilga pública’.
Monte Sião, 26/12/11.
Milton Biagioni Furquim
Juiz de Direito