Conheça a história de uma caipira que passou no concurso para juiz de direito

Conheça a história de uma caipira que passou em concurso para Juiz.

Outro dia um estudante de Direito após assistir uma audiência de instrução e julgamento confidenciou-me que seu desejo é prestar concurso para Juiz de Direito e, então me fez a clássica pergunta, lembro-me que também fiz essa pergunta a um Juiz: o que eu fiz para passar no concurso, e o que ele teria que fazer para ser bem sucedido. Respondi-lhe que não o aconselhava a prestar concurso para Juiz, pois hoje já não mais vale a pena por uma série de circunstâncias, a não ser que o desejo fosse um projeto de vida, e que eu lhe escreveria contando como me preparei para o concurso. Hoje, com esse dia chuvoso e preguiçoso, estou-lhe escrevendo para contar-lhe um pouco da minha história de vida.

Nasci na roça e de seis irmãos, sou o mais velho (que saco viu, como gostaria de ter sido o caçula). Não renego minha origem de ter nascido na roça, ter pisado em bosta de vaca, ter tirado leite, pegado no cabo de enxada, pisado descalço nos orvalhos porque sequer tinha uma alpargata para calçar, tudo isso ainda criança.

Meus pais, roceiros, caipiras, moravam na roça, me puseram para estudar na escola da cidade, naquela época não havia escola na zona rural, então tive que ir morar com minha avó Elisa (poxa, que vó eu tive, sempre me acudia das agressões irracionais de meu pai). É, se naquela época existisse o ECA, sei não, coitado, tava ‘fudidu e mal pago’, pois hoje um simples puxão de ‘oreia’, uma simples palmada na bunda, é o quanto basta para se ver processado. Como eu era da roça, pobre, caipira por excelência, alto, magro, banguelo, desajeitado, tímido, mas asseado, limpo, pois a mamãe era muito zelosa, sempre fui vítima de discriminação, assim como eram os caipiras da roça como eu. A discriminação e humilhação que eu sofria na época hoje é chamada de bulling. Coisa da modernidade. Esse tal de bulling sempre existiu, apenas encontraram um nome diferente. Sempre fui motivo de chacota dos ‘engomadinhos’, dos filhos de ‘papais’. Na escola vivia me escondendo, procurava não chamar a atenção dos ‘mauricinhos e patricinhas’, mas não tinha jeito, eu sempre era o preferido nas gozações. Minha vontade era não ir à escola, não suportava as humilhações, mas o papai não permitia. Se por qualquer motivo faltava a escola, lá vinha ‘porrada’ do papai. Era a forma de diálogo preferida por ele. Nossa, como apanhei na infância e adolescência, tinha pena de mim e dos meus irmãos.

No entanto, como forma de superação das humilhações eu me punha a estudar e o meu propósito era ser um bom aluno e acho que fui, pois acabei despertando a atenção de algumas boas almas, a exemplo do falecido professor Januário e das professoras Dona Coca, Dona Inês, Dona Neiva. Engraçado, como alguns professores ficam gravados na memória pelo bem que fizeram, pela dedicação com que exerceram o magistério. Já outros ficam, também, registrados na memória, mas como péssimos professores, carrascos, enfim, não trazem boas recordações. ‘Fedaputas’ que foram.

Quando saía da escola eu ia vender sorvetes e engraxar sapatos pelas ruas da paróquia para com o lucro – alguns centavos, poder comprar materiais escolares, gibis, livretos de bolso. A pobreza doía, mas não doía tanto quanto ser humilhado pelos colegas de escola aquinhoados pela confortável situação financeira de seus pais, ao deparar-me pelas ruas vendendo sorvetes e engraxando sapatos.

Meus pais de tanto trabalhar na lavoura conseguiram amealhar algumas economias e conseguiram comprar um bar na cidade, o único que existia. Com isso tive que voltar a morar com eles e, agora, no bar, fazer sorvetes, e ajudar no balcão. Não tinha hora para dormir e se necessário ficava até madrugada (eu com 10, 11 anos) por conta dos boêmios que ali ficavam embebedando-se. Com os boêmios tive que aprender a gostar das músicas sertanejas, dos boleros, enfim, das músicas que retratavam a ‘dor de cotovelos’ dos apaixonados. E como os boêmios são apaixonados heim? Lembro-me de todos os cantores e cantoras da época. A vitrola não parava um segundo. Os discos – os ‘bolachões’, na vitrola e no último volume. Nem bem terminava a música e lá vinha a determinação para repeti-la. Nas madrugadas assisti a monumentais brigas entre os boêmios. Brigavam por qualquer coisa e a lamentação pelo insucesso nas incursões amorosas era de dar pena. Ainda tenho alguns ‘bolachões’ guardados de recordação. E assim terminei o primário (1ª a 4ª série), apanhando de meu pai, as vezes chego a pensar que era por conta de sua úlcera, pois era o diálogo preferido por ele, e sendo motivo de, ora indiferença, ora de chacota dos colegas. Concluí que ser pobre, apesar do desconforto e da carência de tudo, pior é a discriminação e a humilhação por parte daqueles que se achavam no direito de ditar as regras para os infortunados como eu.

Com o término do primário com bulling e tudo, como na paróquia não tinha o ginasial, imaginei que estava livre da escola, das humilhações, das gozações, mas ledo engano. Então o papai me obrigou, na porrada, é claro, apesar das dificuldades e ainda da pobreza, a continuar o estudo, a fazer o ginasial (5ª a 8ª série) em Camanducaia, município vizinho. Fiquei passado com a determinação dele. Estudar em Camanducaia? Até então nunca tinha saído da província e não conhecia Camanducaia que dista apenas 9 km. Mas para isso eu teria que continuar ajudando no balcão e vendendo sorvetes pelas ruas, pois agora teria que pagar a condução e o material escolar. ‘Puta qui pariu’ pensei, o inferno de humilhação vai continuar. Imagine um caipira, pobre, ainda banguelo, estudando em outra cidade com pessoas desconhecidas. Queria morrer. Mas por sorte, sobrevivi.

Pois bem. Lá continuei com o meu calvário de sofrimento, de humilhação, de discriminação, enfim, ainda ninguém sabia o que era o tal de bulling. Comecei a cursar a 5ª série com direito a todo tipo de discriminação, de humilhação, de gozação, até porque a paróquia sempre foi motivo de piada dos camanducaienses por pertencer a ela e, então, eu era o crucificado. Que sina a minha. Não deu outra, comecei a faltar às aulas e a conseqüência (como dizia o Conselheiro Acácio na Roma antiga, ela vem por último), fui reprovado em matemática. Dá prá imaginar a sessão de tortura que sofri do papai. ‘Bão sô’, pelo menos pensei, agora ele não me obrigaria a continuar o ginasial. Que ‘porra do caraio’, e num é que ele me obrigou a continuar estudando? Lá vai mais um ano na 5ª série, sempre agüentando humilhações, mas desta vez consegui ser aprovado para a 6ª série. Mas foi mais um ano perdido, consegui a proeza de ser reprovado mais uma vez, e, ainda, em matemática. Outra sessão de porrada, mas confesso que eu não acostumava com essa tortura, pois me incomodava, por óbvio, mas não vislumbrava outra saída. Eu adorava ler, até por falta de opção, o Tio Patinhas, Zé Carioca, Zé Colméia e outros gibis, adorava ler os westerns, livros de bolsos. Eu tinha caixas deles. Era a minha ‘literatura’ preferida, pois não tinha acesso a livros.

Na paróquia criaram o curso ginasial e então convenci o papai, não sei como, acho que por conta de economizar as despesas, a aguardar até que tivesse a 6ª série para eu poder continuar os estudos. Mas para isso tive que trabalhar dobrado, regime de escravidão, mas fazer o quê? Que opção eu tinha? O pior de tudo foi a vovó Eliza falecer, e eu não tinha mais quem me defendesse das brutalidades e porradas do papai. Que falta ela me fez, fui seu neto preferido.

Bom, então retomei os estudos na 6ª série, agora na Província, e pasmem, não sei o que aconteceu, de repente desabrochei para os estudos e me apaixonei por matemática, matéria que me reprovei por dois anos em Camanducaia. Consegui a proeza de terminar o ginasial com louvor. Agora eu sentia que não mais poderia parar de estudar, de modo que o papai não mais precisaria me encher de porrada para ir na escola, até porque, com todas as humilhações, discriminações, pobreza, era através dos estudos que eu poderia conseguir o meu espaço, o meu lugar no mundo, ser um ator de mudanças e não mero coadjuvante, vencer a pobreza, a humilhação, mostrar aos ‘grandes’ que se eram e se sentiam importantes, a bem da verdade, é porque eram produtos de herança, herança patrimonial, social e política. Eu tinha por objetivo mostrar àqueles que me humilhavam e que pouco caso fazia de minha pessoa caipira, simples, pobre, de até então existência insignificante, que poderia sim, começando pelo ‘chão de fábrica’, mostrar-lhes que não conseguiram anular o meu potencial e que a minha perseverança, ainda que por conta das porradas do papai, era a alavanca para que um dia eu viesse a ocupar o espaço que a mim estava reservado, não pelo destino (não acredito em destino), mas sim que dependia apenas e tão somente de ir em sua busca.

Com o término do ginasial, mais uma vez tive que sair da Paróquia para cursar o 2º Grau, desta vez em Extrema. Lembro-me que se eu não mais vendia sorvetes e engraxava sapatos pelas ruas, no entanto ainda ficava até madrugada atrás do balcão do bar com os famosos e habituais boêmios. Como eram assíduos, dificilmente deixavam de aparecer todos os dias, e sempre aparecia na mesma hora. E tome os’ bolachões’ na vitrola. Não mais apanhava, claro, já estava bem ‘grandinho’ né.

Matriculei-me no colegial em Extrema e por não saber diferenciar e saber qual a importância dos cursos que a escola oferecia, acabei matriculando-me no Magistério. Pasmem. No magistério. Rapaz, só tinha mulheres e, claro, mais uma vez fui motivo de gozação. Demorou para eu saber que o Magistério tinha por objetivo formar professores. Mudei de curso. Meu aproveitamento era invejável. Melhores notas em todas as matérias, apesar de todas as dificuldades que ainda enfrentava. Mas o melhor de tudo, conheci aquela que seria e é o meu porto seguro, aquela que me ajudou a vencer todos os desafios até porque, também, era de uma existência simples, e lutava com dificuldades similares às que eu lutei. Mas era guerreira, batalhadora. Não me deixava desistir dos meus sonhos e propósitos. Também foi vítima de intolerância, de humilhação.

Enquanto ainda cursava o colegial recebi um convite para lecionar matemática no ginásio em Itapeva em substituição ao titular. O convite se dera em razão de sempre ter tido, após ser reprovado por dois anos na matéria, um excelente desempenho na área. Meu primeiro emprego. Minha carta de alforria. Aceitei, claro, e em pouco tempo me tornei um excelente professor de matemática e respeitado pelos alunos e pela direção da escola, mas não bem visto pelos colegas professores porque eu conseguia ensinar e eles, por certo, eram bons enganadores. Tornei-me referência. Bom, o bulling, enquanto aluno, era coisa do passado, mas se fazia presente pelos colegas frustrados, pobres de espíritos e desapegados de qualquer viés cultural. Eu adorava estudar, ler, me atualizar, enfim, alimentava minha alma de conhecimentos, de cultura. Os outros? Ah os outros... Mas ainda continuava trabalhando atrás do balcão, agüentando os boêmios, fazendo sorvetes, fritando pastéis. Estava na adolescência e, enquanto meus ‘amigos’ que agora me toleravam, não me aceitavam, divertiam-se nos finais de semana, feriados, era quando eu mais trabalhava, pois o movimento no bar era maior. Afinal era o único da província.

Menino, com o término do colegial, agora professor de matemática e sendo referência, a minha sede de formação, de informação e de busca cultural cresceu de forma a não suportar a idéia de que eu não tinha condições financeiras para cursar uma faculdade. Minha angústia diante dessa possibilidade doía. Papai, claro, sem poder ajudar nas despesas, pois outros cinco irmãos, brotando na adolescência, com seus projetos de vidas em formação, exigiam uma socialização nos gastos e na pobreza. O que fazer? Acho que de tanto pedir aos céus, recebi um convite, agora do ginásio de Extrema, para lecionar matemática. Foi minha salvação, pois agora trabalhava em dois colégios, a renda aumentou de forma a poder fazer frente, com muita economia, às despesas com a faculdade. Mas trabalhando em dois colégios e em dois períodos e, também no bar, por certo não podia fazer um curso regular, então a saída foi prestar vestibular na Faculdade de Matemática e Física de Varginha, curso vago, aos finais de semana. Mas ainda trabalhava atrás do balcão e ‘iscutanu’ os Nelson Gonçalves da vida e atendendo e aguentando os boêmios. Nossa, boêmios não acabam, mudam as preferências musicais, mas eles continuam na boemia. Que saudade dessas músicas quando ouço esses sons eletrônicos ensurdecedores, pancadão, etc.

A duras penas me formei em matemática, física e desenho. Consegui cursar um curso superior, coisa para poucos na época, somente para os aquinhoados financeiramente. Continuava lecionando e cada vez mais sendo referência. Eu tinha uma boa didática, conseguia com que meus alunos, agora do colegial, apreendessem e aprendessem a matéria. Nossa, como me sinto recompensado ao deparar-me com alunos que sequer lembro-me deles e eles continuam me elogiando como professor.

Depois de tanta dificuldade enfrentada, seja dificuldade imposta pela vida, seja pelas pessoas, casei-me com minha guerreira. Agora somando nossa ainda pobreza, nem tanto quanto antes, mas socializando os ganhos, os gastos, os projetos de vida, os sonhos. Como conseqüência da minha dedicação aos estudos e responsabilidades, acabei assumindo a direção da escola. Agora era diretor e professor. Melhorou, por óbvio, o rendimento, mas, também, tinha que trabalhar os três períodos, eu e minha guerreira. Como conseqüência (lembre-se do Conselheiro Acácio) dessa união adveio o rebento. É a única inveja que tenho nesse mundo. E ele é motivo de inveja daqueles que não tiveram a sorte de ter filhos guerreiros, determinados, independentes e responsáveis. Bão sô, com isso a responsabilidade, claro, aumentou. Queria que ele não sofresse o que eu sofri. Não queria que fosse vítima de bulling, de humilhação, sobretudo dos idiotas, pobres de espíritos, dos desprovidos de cultura. Cresceu como um menor abandonado, sem a presença do pai e da mãe porque tínhamos que trabalhar os três períodos para dar a ele o que nos faltou. Cresceu educado pela Totonha. E que educação ela ajudou a dar a ele. Eu que mal tinha condições de pagar os meus estudos, de adquirir livros, consegui formá-lo médico. Ah, por uma única vez dei lhe umas ‘porradas’ e como me arrependi, assim como o papai, já no ocaso de sua vida, disse ter arrependido de suas brutalidades. É, tudo bem papai, mas me ensinou a ser homem de caráter, a ser honesto. Nos ensinou a não submeter-se e subjugar-se a quem quer que seja.

Moço, deixa eu te contar uma proeza. Como diretor de escola me propus a revolucionar o ensino na pequena comuna. Eu sabia que a redenção daqueles, que como eu, não tinham opções e perspectivas de vidas melhores, viria por intermédio da educação e, somente pela educação é que conseguiriam suas cartas de alforrias. Enquanto Diretor de uma simples escola pública do interior das Gerais, de uma paróquia carente de tudo, sobretudo de pessoas com bom nível cultural, de uma comuna que vivia afogada nas questiúnculas das políticas retrógradas, do império de coronéis, desenvolvi projetos que foram premiados por entidades governamentais e não governamentais, com destaque na mídia falada e escrita. Pasme, quanto mais destaque os projetos ganhavam nos meios de comunicação, mais adversários eu contabilizava. Consegui fossem os projetos reconhecidos e premiados, mesmo tendo um corpo docente despreparado, com uma pobreza cultural de doer, com professores que mal conseguiam interpretar o seu horóscopo (faziam jus ao salário) – muitos ainda na ativa e ainda não conseguindo interpretar o horóscopo, isso quando conseguiam folhear um jornal. Com um corpo docente de uma pobreza de espírito de doer a alma, salvo uma ou outra exceção. Parecia-me que o sucesso dos projetos era uma afronta à classe dominante da paróquia e então, se dispuseram a todo custo, e conseguiram (reconheço que neste propósito foram de uma competência ímpar, tiro o chapéu ‘preis’), em pouco tempo, sepultar aquilo que durante toda a existência da comuna, foi o móvel para que a província se tornasse conhecida no Estado e além fronteira. Mas tenho comigo as recordações e prêmios pelo trabalho desenvolvido.

Com tudo isso acontecendo entrei em um processo de desestímulo, de frustração, sobretudo porque percebi que à classe ainda dominante de nada tinha valor o trabalho educacional que estava em evidência e que servia de parâmetro e referência àqueles que militavam na educação. Percebi que já tinha dado minha contribuição e que, ao menos ali na comuna, nada mais havia por fazer. Percebi que na educação eu não tinha mais espaço para crescer, e eu tinha sede, muita sede, de expandir as fronteiras do conhecimento. Sentia-me sufocado, e asfixiado em meio a pessoas que nada somavam e acrescentavam. Pelo contrário. Ali, em meio a pessoas pobres de espírito e de cultura, não havia uma só alma com quem eu pudesse travar um diálogo que não fosse o trivial (politicagem, futebol, religião, vida alheia), resolvi, então, aventurar-me pelo Direito. Eu lia muito os gibis, westerns, quando criança, agora tinha opção de leitura e, o melhor, sempre gostei de ler. Eu conversava com os livros por não ter com quem conversar temas que não fosse o trivial. Então resolvi fazer Direito.

Prestei vestibular e passei, por certo passaria mesmo. Continuava lecionando e dirigindo a escola, enquanto isso meu filho crescendo sem nossa presença. A Totonha cuidava dele. É bom que fique claro que ao resolver cursar Direito o fiz com um único objetivo: queria ser Juiz de Direito. Comecei o curso de Direito com 38 anos de idade. Em razão da idade não poderia me dar ao luxo de freqüentar os ‘barzinhos’, cabular aulas como a maioria dos estudantes. Não tinha tempo a perder. O tempo caminhava a galope. Tinha que dar condições para o rebento ser alguém na vida. Eu era muito dedicado nas aulas. Respirava, comia e bebia o que os professores ensinavam. Frequentava a biblioteca habitualmente. Muitas vezes dormia nela de tão cansado e perdia a jardineira para voltar para casa. Passava os finais de semana e feriados estudando. Era um verdadeiro cdf. Não tardou a chamar a atenção dos professores e ser considerado, durante todo o curso, como um dos melhores alunos do curso de Direito. Alguns até arriscavam a dizer que eu era o melhor aluno. Engraçado que até então eu nunca tinha adentrado em um fórum. Quando eu via um juiz, fosse numa palestra, fosse numa solenidade, eu ficava maravilhado e imaginando que era algo sobrenatural, um Deus (ledo engano rsrsr). E foi assim que percebi que você me olhava, caraio. ‘Caramba’, senti um desconforto, sabia?

Olha, essa você não vai acreditar. A primeira vez que entrei em um fórum foi, enquanto Diretor, já cursando o Direito, para levar ao conhecimento do Promotor de Justiça uma relação de pais relapsos que incentivavam seus filhos a não freqüentar a escola para ajudá-los, é o que alegavam, em seus labores. Crianças com seus 9, 10, anos de idade. Lembrei-me do papai, apanhava a não mais poder, mas nos exigiam freqüentar a escola. Bom, como cursava Direito, então eu sabia que os pais, em tese, cometiam o crime de abandono intelectual. Sentei-me em frente ao Promotor, disse a ele a razão da minha visita e entreguei-lhe o rol de pais. Ele, para minha surpresa e decepção, pois acreditava na Justiça, como ainda acredito, com os seus óculos apertados entre o nariz e a sobrancelha, olhou bem nos meus olhos e vaticinou: “o Sr. é muito pretensioso em querer acabar com a evasão escolar, pois eu, enquanto Promotor de Justiça, não tenho a pretensão de acabar com a criminalidade. Uai, com a resposta do ‘promota’ senti-me desconcertado, por óbvio, e meio sem jeito, já que eu sabia o que estava fazendo, pois estava cursando Direito, então disse-lhe: “Dou-lhe 48 horas para tomar as providências que o caso requer e, caso ignore representarei contra o Sr. por prevaricação”. Ah, pois saiba que consegui, mesmo sem o empenho do Promotor de Justiça, acabar com a evasão escolar, na época o único Município do Brasil a não ter nenhum aluno em idade escolar fora da escola? Valeu inté umas reportagens no Globo Repórter, Jornal Nacional e outros veículos de comunicação.

‘Meu’, que palavrinha heim? Prevaricação, que palavra mais esquisita né? Mas foi uma palavrinha mágica. Levantei-me e me retirei de sua sala. Em menos de 48 horas os pais foram notificados, posteriormente denunciados e processados. É, mas foi a tal palavra prevaricação que fez o ‘promota’ tirar a bunda da cadeira e tomar atitude. Em Minas Gerais foram os primeiros casos de pais processados por abandono intelectual com destaque na vênus prateada em horário nobre. O Promotor de Justiça ainda é o mesmo que atua na Comarca de Camanducaia, e o juiz da Comarca na época, o Dr. Élcio, por uma feliz coincidência reside hoje na Comarca em que trabalho, Monte Sião.

‘Mano’, assim terminei o curso de Direito, com louvor. Sentia-me muito bem preparado teoricamente. Sempre fui estudioso. Fui disciplinado. Fui um cdf. Sabia o que queria. Tinha o meu objetivo definido. Não esmoreci diante dos obstáculos impostos pela vida, pelas pessoas, pelos invejosos. Frequentei o curso todo com um único propósito: passar no concurso para Juiz de Direito.

Bom, enquanto aguardava o interstício para prestar o concurso para Magistratura, prestei o exame para OAB. Continuei por conta própria estudando, comprando livros quando podia, emprestando outros, lendo tudo que dissesse respeito ao Direito. Todo tempo de que dispunha dedicava-me ao estudo. Não agüentava mais o magistério. Não via mais perspectiva de crescimento na educação. A ignorância dos ‘profissionais da educação’ com quem eu trabalhava era um desestímulo. Chegava a doer. Consegui passar no exame da OAB. De posse da famosa ‘carteirinha’ me senti, pela segunda vez, liberto, foi minha segunda carta de alforria. Já podia advogar. Sentia que, caso não fosse bem sucedido no concurso para magistratura, seria bem sucedido na advocacia, pois estava muito bem preparado teoricamente e, também, porque já tinha percebido que a maioria dos advogados militantes era praxistas, desatualizados. Não estudavam. Sabia que na advocacia iria levar mais tempo do que outros advogados para vencer, porque advogado sério, honesto, ético, leva mais tempo para despertar o respeito e a credibilidade. Mas o meu objetivo era a magistratura.

Olha, te digo sem medo de errar, hoje com mais razão ainda, como é difícil começar a advogar. Claro que as pessoas procuram os advogados com mais tempo no mercado, com mais experiência, aqueles que prometem inescrupulosamente ganhar a causa. Ah, lembre-se que o primeiro juiz da causa é o advogado. Os novatos, inicialmente, se limitam a fazer a advocacia social, dativa, aceitar as nomeações feitas pelo Juiz. Conseguir uma causa mediante recebimento de honorários é uma sorte e, quando consegue, quase sempre não recebe do cliente. Mas como tudo para mim sempre foi difícil, era um grande aprendizado, nunca me importei com isso. Tenho até hoje honorários para receber e o ‘cliente’ da época quando me vê ainda se esquiva. Ainda vou dizer-lhe para não se preocupar, já prescreveu.

Na época para prestar o concurso para a magistratura fazia-se necessário dois anos de bacharelado em Direito, nesse tempo, além de umas poucas causas, dediquei todo o tempo ao estudo em casa. Não tinha tempo e condições para cursar os famosos cursinhos. Depois eu sempre acreditei que toda matéria de que necessitamos estudar está nos ‘livrinhos’, e nos cursinhos irão ensinar exatamente as matérias que estão nos Códigos e nas legislações esparsas. Assim, paguei todos meus pecados estudando em casa como um verdadeiro condenado, mas condenado a ser bem sucedido no concurso para magistratura.

Então rapaz, fiz minha inscrição para o concurso. Meu primeiro concurso para Juiz. Prestei as provas. Fui vencendo as etapas uma a uma. Ao final, prova oral, bicho papão de todos os candidatos, ‘incarei’ os sabatinadores, ‘Deuses-embargadores’, com galhardia e seguro de minhas respostas. Cara, como é gratificante você estar bem preparado, e dar respostas às perguntas com segurança e com sabedoria. Assim que saí da sabatina, fui até um orelhão, nem celular eu tinha - pode?, liguei para a minha guerreira e disse-lhe que tinha passado no concurso, mesmo sem ter o resultado em mãos que, por certo, levou 40 dias para ser divulgado. Tinha certeza, a uma porque estava bem preparado; a duas, porque acreditava que se tratava de um concurso sério; a três, em nenhum momento pensei que poderia existir, nesses concursos, qualquer maracutaia; a quatro, pensei com meus botões: se esse concurso é sério como dizem e se não existe maracutaia, considerando o meu desempenho em todas as provas, eu teria que passar. E passei, lembro-me que três filhos de Desembargadores prestaram o concurso comigo e foram reprovados. Sabe, te digo que é impossível descrever a alegria de que fui tomado ao receber a comunicação de que fui aprovado no concurso, para decepção daqueles que torciam contra. É indescritível, você tem que vivenciar esse momento para apreender e sentir o que eu e minha guerreira sentimos.

Hoje, as vésperas de minha aposentadoria, sou Juiz de Direito em Monte Sião, isso após ter sido em Guaranésia, minha primeira Comarca, onde aprendi a ser Juiz com a ajuda dos meus amigos e familiares serventuários da Justiça – Ismael, Raul, a Poderosa, Ivana, Andiara, Élcio, Juninho e seu pai, Lucimara, Pratinha, Izabelzinha, Eliana, Maria Inês, bem como dos advogados militantes e do Cláudio, um dos melhores promotores com quem tive a honra de trabalhar.Você, já que queria saber, está lendo nesse exato instante parte da minha história de vida e gostei muito de compartilhá-la com você. É lógico que cada um tem a sua história de vida. Eu a minha que você está lendo, você a sua, que desconheço. Quando for enfrentar algum desafio em sua vida, lembre de que para chegar ao seu porto seguro terá que apanhar muito da vida, talvez não tenha que apanhar do papai, como apanhei tanto, mas uns ‘esporros’ é sempre bom, e saiba que nem eu e nem ninguém é melhor do que você. Trata-se apenas de ter disciplina e dedicação. É preciso que seja perseverante. Insistente. ‘Marrentu’. Ter objetivo. Sonhar e torná-lo realidade. Vá em frente. Deixe o seu sonho tomar conta de você e despertá-lo para a vida! Busque concretizá-lo. Se eu consegui, após tudo que passei, após apanhar tanto do papai e da vida, após ser gozado, humilhado, você também pode! Que digam os meus desafetos! Que digam os meus invejosos! Desperte o ciúme e a inveja nas pessoas, por certo o ciúme e a inveja delas é uma maneira de reconhecimento de que você é vencedor. E nunca esqueça que por trás da magnificência de uma toga, já que vesti-la é o seu sonho, como foi o meu caso, há, na essência, sempre, um homem, igual a qualquer outro, repleto de anseios, angústias, medos, esperanças e sonhos. Ah, vou confidenciar-lhe um segredo, até hoje não me sinto confortável quando me chamam de Doutor. Nunca atendo o telefone dizendo ao interlocutor que é o Dr. Fulanu. Tenho aversão ao terno, claro né, nem uma alpargata eu tinha para calçar os pés.

Bão sô, enfim, para você digo que para passar em concurso para juiz não tem segredo nenhum, basta conhecer o Direito e, para tanto, basta estudar, ser disciplinado, ser perseverante, não ser preguiçoso, abdicar de muitas coisas boas da vida enquanto se prepara, mas sabe ‘cara’, é ‘foda’ com PH.

Obs. Como redigi com a alma para responder-lhe a pergunta que me fez após assistir a audiência de instrução e julgamento, não tive a preocupação de fazer as devidas correções ortográficas. Escrever com a alma é muito bom, e o vernáculo a que estamos acostumados enche o ‘saco’. Deixo procê o meu abraço e espero que seja feliz e bem sucedido no seu propósito, mas repito, o que eu já dissera anteriormente, se não for projeto de vida, não vale a pena ser juiz, infelizmente.

Monte Sião (Reino Encantado), 15/11/11.

Milton Biagioni Furquim

Juiz

Milton Furquim
Enviado por Milton Furquim em 18/12/2012
Código do texto: T4041951
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