A visão libertária de Jorge Amado
Como tinha pouco mais de 5 anos quando a novela “Gabriela” foi exibida na Globo, em 1975, não são minhas as lembranças dessa adaptação para a TV do famoso romance de Jorge Amado. Lembro-me, no entanto, dos muitos comentários elogiosos que à época meus pais e irmãos faziam cotidianamente sobre a trama.
Assistir ao remake da novela é, de certa forma, reviver um pouco o clima de alegria que reinava em minha casa quando o assunto era Gabriela, Seu Nacib, Coronel Ramiro Bastos, Mundinho Falcão, Tonico Bastos, Dona Sinhazinha, Gerusa, Malvina, as quengas do Bataclã e outras tantas personagens que viviam o universo pitoresco da Ilhéus dos anos 1920. Além disso, a versão atual manteve praticamente intacta a trilha sonora original, que tanto ouvi no decorrer da infância e início da adolescência.
Na semana passada foi ao ar um dos capítulos mais fortes da novela. Órfã, sem dinheiro, prestes a ser despejada de sua própria casa e abandonada pelo noivo, que forçou a barra para desvirginá-la, Lindinalva é obrigada a se tornar prostituta no Bataclã, após constatar que todas as portas da chamada “sociedade de bem” estavam fechadas para ela. No "antro de perdição" mais cobiçado pelos homens da cidade, Lindinalva é recebida de braços abertos por Maria Machadão, a dona do prostíbulo.
Escrito em 1958, “Gabriela, Cravo e Canela” tem uma abordagem universal, mesmo sendo uma obra regionalista. Não por acaso o livro foi traduzido para mais de 15 línguas. Embora não tenha dado um tom maniqueísta para esse romance, Jorge Amado faz uma ampla crítica à moral predominante na época, ancorada no machismo, no racismo e na lei do mais forte.
Gabriela (vivida por Sônia Braga na primeira versão e agora por Juliana Paes) é a encarnação da liberdade feminina e da pureza espiritual, ambas conquistadas sem teorias ou concepções políticas e religiosas. A sertaneja retirante, que tem um histórico de pobreza e sofrimento, é alguém que vive intensamente o aqui e o agora, sem qualquer preocupação com as convenções sociais que aprisionam a quase totalidade das mulheres da ficção e, com certeza, das que viveram no período retratado pelo escritor baiano.
Outra personagem feminina que carrega o espírito libertário de Jorge Amado (que na década de 1950 era filiado ao PCB – Partido Comunista Brasileiro) é a jovem Malvina (Elizabeth Savala na primeira versão e Vanessa Giácomo no remake), filha única do Coronel Melk (um cacauicultor truculento e perigoso). Embora romântica, ela vai construindo uma visão tipicamente feminista e contestadora, ancorada nos livros que lia e nas próprias reflexões, sempre se negando a ocupar o lugar destinado às mulheres pelas famílias conservadoras.
Finalmente, Mundinho Falcão (interpretado por José Wilker na primeira novela e por Mateus Solano na atual versão) representa os novos ventos políticos numa sociedade construída sob a égide do coronelismo e dos mandatários corruptos. Mesmo representando um segmento político e empresarial bem aos moldes do liberalismo capitalista, Mundinho chega a Ilhéus para bater de frente com o pensamento retrógrado que reinou (ou ainda reina?) durante séculos no Nordeste e em praticamente todo o Brasil.
Leve e tomado de personagens hilárias, como Tonico Bastos e sua esposa Olga, Gabriela é o que se pode chamar de resultado bem sucedido do que há de melhor em nossa literatura e em nossa teledramaturgia. Que venham outros remakes!