LILA RIPOLL, MULHER DE LIRA E DE LUTA

    A poesia de Lila Ripoll não é dada a experimentalismos formais e linguísticos, à metapoesia. É toda ela um coração aberto, pulsando livre, falando tanto do leitor quanto dela mesma. Seu temas são universais; o amor, a infância, a solidão, o tempo inexorável, a rebeldia, o inconformismo diante de uma realidade excludente e injusta, o massacre dos valores de solidariedade. Sobre Lila, assim se referiu Manoelito de Ornellas em "Máscaras e murais da minha terra" (1967): “Se a poesia de Lila pode servir a uma causa, o motivo que arrebata o poeta para o canto incisivo e contundente não estará no enumerado dogmático de um programa, mas na vida palpitante das criaturas humanas, nas ruas da cidade ou nos múltiplos conflitos do mundo”.
    Os versos de Lila têm cadência, ritmos, assonâncias, aliterações, soluções naturalmente encontradas na inspiração, no brotar espontâneo da amealhação textual. Os versos heptassílabos de "Canção do esconde, esconde", do livro "Coração descoberto", mostram de sua maestria na tessitura do poema.

Solidão brinca comigo
um jogo de esconde, esconde.
Desaparece um momento
e surge não sei de onde.
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Solidão se esconde e volta,
mói a vida, o sonho, o amor.
Ai! jogo de esconde-esconde
Esconde também a dor.

    Os poemas sobre a infância mostram que a Lila poetisa já habitava a pequena e melancólica Lila que percorria o reduzido mundo da casa na bucólica Quaraí. A poetisa vê na natureza um refúgio diante de um mundo hostil, uma reiteração de si mesma nos elementos da natureza. Outro tema recorrente pode ser sintetizado em "Piedade para os meus mortos", de "Céu vazio" (1941). Ela canta o abandono dos entes idos, que um dia foram a afirmação da vida e hoje estão, indefesos, inertes, sob a ação indiferente da chuva, do frio e da instável memória dos vivos.

(...) Eu tenho pena dos meus mortos.
Está chovendo tanto agora.
Deve haver frio nos outros portos.
A chuva cai . Nossa Senhora
tenha piedade dos meus mortos.

    A solidão existencial está desnuda, inteira, a consumi-la no soneto "Quase sem mudança...", do livro "De mãos postas". Nele, ela inventaria sua vida com o realismo dos desesperançados.

Sozinha. Sem ninguém para querer
ou desprezar... Sozinha pelos dias,
pelas noites... Se o sol vai-se a morrer
ou se a sombra estendeu melancolias...

Sozinha. Nenhum laço a me prender.
Nem ódio. Nem amor. As mãos vazias.
Sem gestos para o adeus. Olhos sem ver...
– Fantasma, a suspirar por alegrias...

Voltar à terra quase sem mudança.
Corpo de velhinho, alma de criança.
– A vida, os meus brinquedos escondeu... –

Voltar à terra como vim: sozinha.
Os cabelos iguais aos da avozinha,
e a alma ingênua: assim como nasceu...

    A poesia de Lila Ripoll, sua “força inútil”, como a definia Vinícius de Morais, não ficará indiferente a um mundo desordenado, de subjugação do ser humano por outros seus pares. É preciso dar voz aos que não têm voz, é preciso cantar um novo tempo, é preciso sair do casulo, é preciso dizer que há dores imanentes à condição humana e há dores frutos de relações sociais desvirtuadas, com a ganância de uns corrompendo a felicidade de outros. Não há dores justas, mas há dores injustas. Para estas, a saída é instaurar um mundo reformado. Então surge a militante marxista, a poetisa das causas sociais, como em "Primeiro de Maio", um poema avulso editado como caderno em 1954. Retrata a repressão a uma passeata de trabalhadores em Rio Grande (RS), criminosamente reprimida pela Brigada Militar.

(...) Crianças, homens, mulheres
o povo unido cantava.
O povo simples da rua,
comovido se abraçava.
E o povo toma as ruas:
Espontâneas as filas se formavam
e ergueram-se a cantar.
Em seguida, em nome “da lei e da ordem”,
a polícia chega para dar o ar da sua
desgraça.
E logo uma palavra subiu clara,
atravessando homens e mulheres,
como um fino punhal.

“A polícia, a polícia, companheiros”
E houve um leve arquejar. E alguém falou:
“Avançar, companheiros, avançar”
Era Recchia investindo desarmado
E a onda contida transbordou.

    A pena da poetisa recorreu às brumas do tempo para eternizar em versos mais um episódio de crueldade contra os trabalhadores num país de memória curta, onde massacres como o de Carajás (PA), Leme (SP) e Praça da Matriz (RS) se banalizam sob a indiferença dos donos do poder, que se acumpliciam sem pudores com o crime.
    A poesia de Lila Ripoll pode ser visualizada em duas esferas, que se complementam. Uma é a do poeta voltado para seu mundo interior, numa herança simbolista, num enfrentamento meramente emotivo, desproporcional, ao caos impositivo do mundo circundante. O eu-lírico tenta inutilmente resistir e sua poesia é seu sangue a verter em feridas abertas, de cicatrização duvidosa na chaga individual.
    Outra linha da poesia de Lila temos na temática engajada, de cunho social. Essa produção é mais ordenada, mais narrativa, mais cartesiana, pois há um fim pedagógico nela: registrar e convencer o leitor a aderir aos seus propósitos. Neste caso, os fins justificam os meios e os fins são a decorrência natural dos meios. Uma boa causa não salva um poeta, já disse alguém. No caso de Lila, a causa lhe é um tema caro como qualquer outro e ela sobre ele discorre com sua costumeira maestria. Diz a poetisa que considera sua poesia social a parte mais frágil de sua obra. A crítica apressou-se a lhe fazer coro. Todavia, nem sempre podemos crer no que alguém fala de si mesmo, já alertava Marx. E a temática social da autora se nutre da mesma seiva de um Castro Alves, por exemplo, num canto de protesto pelas mazelas seculares de uma sociedade iníqua.
    Houve um tempo em que muito se falou em resgatar Lila Ripoll, olvidada num país sem leitores. Em seu favor, bradaram vozes como as de Walmyr Ayala, Patrícia Bins, Cyro Martins, Lara de Lemos, Elvo Clemente, Carlos Jorge Appel, Lea Masina e a professora Maria da Glória Bordini, responsável pelo fascículo dedicado à poetisa na coleção Letras Rio-Grandenses, do Instituto Estadual do Livro. Também Maria da Glória Bordini organizaria a antologia temática “Ilha difícil” (1987) pela Editora da Ufrgs.
    Em 1998, a dívida com a obra de Lila foi alentadamente abatida com o lançamento de sua "Obra Completa" pelo Instituto Estadual do Livro, então sob a presidência do escritor Arnaldo Campos, e Ed. Movimento, com a decisiva participação das professoras Alice Campos Moreira e, novamente, Maria da Glória Bordini.
    Hoje, talvez já não se possa mais alegar descaso com a poesia de Lila. Graças a alguns abnegados, ela está disponível para os leitores mais atentos. A poetisa muito pediu piedade e preces para os seus mortos. Nós, que por ora habitamos este mundo emaranhado dos vivos, podemos ler sua obra como uma homenagem póstuma para quem tanto se entregou em poesia. A voz de Lila Ripoll cada vez canta mais alto e é um canto de sereia para seduzir os corações abertos dos que encontram em seus versos lenitivos para as dores da alma e esperanças de contemplar uma nova aurora onde o sol surja no horizonte, sem eclipses, para iluminar a todos.


Revista Direito & Avesso, setembro de 2007.


Breve cronologia

1905 – Nasce em Quarai, a 12 de agosto.
1915 – Freqüenta o Colégio Elementar de Quarai.
1927/1928 – Muda-se para Porto Alegre e cursa o conservatório de música, hoje Instituto de Artes da Ufrgs.
1930 – Ingressa no magistério estadual.
1934 – Seu primo, irmão de criação e mentor intelectual Waldemar Ripoll é morto por conta de suas atividades políticas. Lila volta-se para o Partido Comunista.
1935 – Aprofunda sua ligação com o movimento da Aliança Nacional Libertadora e começa sua atuação cultural e política no Sindicato dos Metalúrgicos.
1938 – Lança De mãos postas pela Barcellos & Bertaso, futura Livraria do Globo.
1939 – Passa a integrar o gabinete do secretário de Educação do RS, Coelho de Sousa.
1941 – Lança Céu vazio pela Livraria do Globo, Prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras.
1944 – Casa-se com o engenheiro Alfredo Luís Guedes, que a apoiou nas atividades políticas e culturais.
1945 – Publica poemas em A Província de São Pedro a convite de Moysés Vellinho.
1947 – Lança Por quê? pela Editorial Vitória.
1949 – Falece o marido de Lila Ripoll.
1950 – Concorre a deputada estadual pelo Partido Comunista.
1951 – Exerce o jornalismo no comitê editorial da revista Horizonte.
1951 – Participa da organização do 4º Congresso Brasileiro de Escritores.
1953 – Participa de um encontro internacional pela paz em Buenos Aires.
1954 – Publica Primeiro de maio, poema social em quatro cantos.
1955 – Vai a Moscou para o Congresso Internacional dos Partidários da Paz como delegada do Brasil.
1957 – Publica Poemas e canções em cadernos da Horizontes.
1958 – Sua peça Um colar de vidro estréia no Theatro São Pedro; sucesso de crítica e público.
1961 – Lança O coração descoberto.
1964 – É presa pelo regime militar. Libertada logo após devido ao seu estado de saúde, debilitado por um câncer.
1965 – Finaliza Águas móveis, com maior apuro formal, segundo Cyro Martins.
1967 – Lançamento de sua Antologia poética, uma iniciativa do poeta Walmyr Ayala, com edição conjunta da Editora Leitura, Instituto Nacional do Livro/MEC. A autora participa da seleção, mas não chega a ver a obra impressa.
1967 – Morre Lila Ripoll e é enterrada no cemitério da Santa Casa em Porto Alegre.

Fontes: Coleção Letras Rio-Grandenses e Obra completa, org. de Alice Campos Moreira.

Bibliografia
1938 – De mãos postas, poesia.
1941 – Céu vazio, poesia
1947 – Por quê?, poesia
1951 – Novos poemas, poesia
1954 – Primeiro de maio, poesia
1957 – Poemas e canções, poesia
1958 – Um colar de vidro, teatro, inédita
1961 – O coração descoberto, poesia
1965 – Águas móveis, poesia, com edição posterior
1967 – Antologia poética, poesia
1968 – Cadernos do Extremo Sul, org. Sérgio Faraco
1987 – Ilha difícil, org. de Maria da Glória Bordini
1998 – Obra completa, poesia e teatro
Obs.: não foram relacionadas aqui obras
coletivas ou textos esparsos de periódicos.

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(...) Oh, enveredar
por esse mundo livre
e ser uma entre as árvores
que formam o volume
do teu rosto.

Enveredar por esse mundo livre.
Conhecer a geografia
do teu peito. Misturar-me
à conversa das folhas
e adivinhar o casamento secreto das raízes!

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“Chamem a Lila!”

   Sabemos que o livro aproxima as pessoas e, não raro, forja grandes amizades. A coisa que os intelectuais descobrem quando chegam a uma cidade.
   Foi assim, numa livraria, que conheci a Lila Ripoll e logo nos identificamos. E a Lila passou a freqüentar, além da Vitória, a minha livraria, o meu apartamento, ali na Lucas de Oliveira, onde minha mulher, Iara, a recebia como uma lírica mensageira da liberdade. Aí já estávamos no início da década de 60 e a Vitória, a livraria impertinente, já aprontava das suas. E foi justamente pela impertinência que a Vitória caiu no gosto da nossa inesquecível poetisa.
   Militante da esquerda revolucionária, a Lila estava sempre disposta a conquistar o Palácio, o que era desnecessário, pois o governador a considerava gente da casa.
   Nos sábados, quando acontecia, lá em casa, o que chamávamos de “salsichão lítero-musical dançante”, a Lila recitava seu poema mais recente.    Alguns do nosso grupo não conseguiam conter as lágrimas.
   Valente Lila, doce Lila, das letras e das músicas, da guerra e da paz. Os amigos, que eram muitos, andavam à sua volta, como a protegê-la. Mas, nas horas difíceis, quando, por exemplo, algum dos nossos ia preso, o que acontecia com certa freqüência, a ordem emanada da cúpula do partido era: “Chamem a Lila!”.

   Arnaldo Campos, escritor e amigo pessoal de Lila Ripoll, exclusivo para esta edição do Direito & Avesso.
 

 

Landro Oviedo
Enviado por Landro Oviedo em 06/03/2012
Reeditado em 18/08/2019
Código do texto: T3537837
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