O dom e a tarefa

Há algum tempo me chegou às mãos, enviado por um amigo, um texto do padre Fábio de Melo intitulado “Sobre Deus...”. Assim que o coloquei em uma pasta virtual que uso para guardar sugestões temáticas para meus artigos e crônicas, intuí que eu reconheceria o momento certo para retomá-lo. Este se deu numa conversa recente que tive com meus alunos da FDV (Faculdade de Viçosa), em Viçosa-MG, sobre a existência ou não de “sinais divinos” e de como somos instrumentos de Deus nas transformações que ocorrem na vida do outro.

O texto do sacerdote-cantor toca em um assunto que certamente intriga todos aqueles que creem na existência do Criador: como Ele permite que ocorram tantas tragédias envolvendo pessoas inocentes? São muitos os que se sentiram abandonados por Deus em momentos dolorosos de suas vidas, principalmente após a morte de entes queridos.

Ao iniciar seu texto com a questão “o que esperar de Deus?”, Fábio de Mello ressalta ser fundamental em todas as relações humanas (entre si e com Deus) uma definição clara do que seja “esperar” e “desesperar”. Ele as define: “esperar é a atitude que nos permite a serenidade de que o outro fará por nós aquilo que não podemos fazer a sós. Desesperar é chegar à conclusão de que a vida tem limites que terão que ser respeitados. Desesperar não significa sair gritando, esbravejando desaforos a respeito dos limites, mas consiste em serenizar o coração, aquietando-o e esperando os ensinamentos que virão do acontecimento que provocou a desesperança. E assim concluo: o desespero é o outro lado da esperança...”

Normalmente, nos momentos de esperança as pessoas tendem a acreditar ter sido lembradas/tocadas por Deus. Ao contrário, nos de desesperança, costumam pensar que foram abandonadas por Ele. É neste ponto que o padre relata um momento de perda, bastante doloroso, em sua vida: a morte de uma irmã num trágico acidente. Fábio de Mello diz que sua irmã foi vítima da imprudência humana, de uma bagagem que estava no lugar errado e que caiu sobre ela no momento em que o ônibus tombou. Conta também que naquele momento uma pessoa, na tentativa de oferecer consolo, chegou a dizer que o ocorrido tinha sido vontade de Deus.

“Naquele momento minha mente se iluminou para que eu não permitisse que Ele fosse injustamente acusado daquele crime. Prefiro desacreditar dos humanos a ter que pensar que Deus seja capaz de matar uma mulher que precisava viver para cuidar do seu filho... Prefiro encarar a dura realidade de que minha irmã estava morta, vítima da imprudência de um motorista que transgrediu a regra, a ter que dizer ao meu sobrinho que Deus não pensou na sua dor de menino, antes de permitir que o ônibus caísse naquela ribanceira... Preferi pensar que Deus estava chorando comigo, lamentando com meu sobrinho, consolando-o e o preparando para reacender nele a esperança que parecia diluída no ar...”, escreveu o sacerdote.

Esclarecendo um pouco o título deste texto, extraio o que considero a essência da mensagem de Fábio de Mello e retomo a questão debatida com meus alunos sobre os “sinais divinos”. Crer na proteção de Deus é acionar o dom que cada um de nós possui em manter o canal aberto com Ele. Isto, porém, não nos exime das nossas responsabilidades, das nossas escolhas. Aí entramos no campo da tarefa, a que nos convida/obriga a fazer a nossa parte. É exatamente o antigo e já tão debatido conceito de livre-arbítrio – o maior (e mais complicado) presente que Deus ofereceu ao ser humano.

De volta ao texto do padre-cantor, ele enfatiza que não haverá relação saudável com Deus se não descobrimos constantemente o dom e a tarefa como as duas realidades de nossas vidas. Diz ainda que em todas as situações humanas há sempre uma parcela de dom a ser recebida e uma parcela de esforço a ser executada. Diante da pergunta sobre onde estava Deus no momento em que a sua irmã morreu de forma tão trágica, ele respondeu de forma incisiva: “no mesmo lugar em que estava no momento em que mataram o Filho Dele”. Simples assim.