POÇO REDONDO: ASPECTOS SOBRE O REFÚGIO DO SOL (Vigésima viagem)
POÇO REDONDO: ASPECTOS SOBRE O REFÚGIO DO SOL (Vigésima viagem)
Rangel Alves da Costa*
Passados mais de 72 anos da morte de Lampião e alguns anos mais desde que a violência perpetrada por cangaceiros, jagunços e volantes deixou de ser uma das características marcantes do sertão nordestino, ainda assim as ações criminosas, com faces e motivações diferentes, tomaram seu destino rumo ao futuro e nos dias atuais diz por que o medo é cada vez mais feroz e assustador.
Os tempos modernos não civilizaram o homem, não fez com que surgisse no sertanejo uma cultura de vivência em cordialidade, não tornou possível nas mentalidades agrestes e caboclas uma cultura de paz. Basta lembrar das eleições de 58 em Poço Redondo, quando homens armados e montados em cavalos saíram pela sede do município e povoados roubando urnas, destruindo material da justiça eleitoral e espalhando o terror. Lá pelas bandas de Bonsucesso Dedé de Artur tombou como vítima dos atos de agressividade.
Desde a época do cangaço, onde talvez a violência já estivesse justificada no contexto social de então, até o momento presente, o que se observa é um incrível aperfeiçoamento da bestialidade como se o homem somente estivesse se preparado para praticar o mal.
Alguém já ouviu a música "Lampião falou", de autoria de Aparício Nascimento e Venâncio e cantada por Luiz Gonzaga? Se não ouviu preste atenção no que diz a letra:
Eu não sei porque cheguei
Mas sei tudo quanto fiz
Maltratei fui maltratado
Não fui bom, não fui feliz
Não fiz tudo quanto falam
Não sou o que o povo diz
Qual o bom entre vocês?
De vocês, qual o direito?
Onde esta o homem bom?
Qual o homem de respeito?
De cabo a rabo na vida
Não tem um homem perfeito
Aos 28 de julho
Eu passei por outro lado
Foi no ano 38
Dizem que fui baleado
E falam noutra versão
Que eu fui envenenado
Sergipe, Fazenda Angico
Meus crimes se terminaram
O criminoso era eu
E os santinhos me mataram
Um lampião se apagou
Outros lampiões ficaram
O cangaço continua
De gravata e jaquetão
Sem usar chapéu de couro
Sem bacamarte na mão
E matando muito mais
Tá cheio de Lampião
E matando muito mais
Tá assim de Lampião
E matando muito mais
Na cidade e no sertão
E matando muito mais
Tá sobrando Lampião.
Essas duas últimas estrofes lembram alguma coisa?: "O cangaço continua/ De gravata e jaquetão/ Sem usar chapéu de couro/ Sem bacamarte na mão/ E matando muito mais/ Tá cheio de Lampião/ E matando muito mais/ Tá assim de Lampião/ E matando muito mais/ Na cidade e no sertão/ E matando muito mais/ Tá sobrando Lampião". A letra da música reflete magistralmente a realidade atual do sertão, com a violência se expandindo de tal forma que as pessoas não podem dormir em paz e as portas fechadas não significam segurança alguma.
O problema é que no tempo de Lampião até a violência era ato praticado com um embasamento, com um fundamento, mesmo que nada sirva para justificar tanto medo, tanto sangue derramado e tantas vítimas. O que é grave e totalmente inaceitável nos dias atuais é que tudo na vida se torna motivo para se praticar a violência, para roubar, furtar, estuprar, ameaçar, ferir, matar.
Basta uma rápida olhada nas manchetes dos jornais que lá estará estampada uma das faces do Poço Redondo atual.
"A Polícia Civil prendeu na última sexta-feira, dia 13, no povoado Santa Rosa do Ermírio, município de Poço Redondo, Cosme Pereira Lima, 25 anos, acusado de estuprar uma adolescente de 12 anos. De acordo com o delegado Clever Farias, o acusado conviveu com a mãe da menina durante três meses na mesma residência onde morava com a vítima (...)" (Site do Bareta, 16/11/2009 - http://sitedobareta.com/seguranca/).
"Prisão preventiva – Também foi preso na última sexta-feira em cumprimento a um mandado de prisão preventiva José Barbosa da Silva, 43 anos, vulgo ‘Bigode’ acusado de tentativa de homicídio em desfavor de Quitério Ferreira de Lima. O crime aconteceu em 12 de fevereiro deste ano no município de Poço Redondo (...)" (Site do Bareta, 16/11/2009 – http://sitedobareta.com/segurança/).
No dia 26 de janeiro de 2010, o portal de notícias Infonet (http://www.infonet.com.br/cidade/), publicou uma reportagem de autoria da jornalista Kátia Susanna que demonstra bem a dimensão atual do problema, conforme abaixo transcrito:
"A rota do tráfico no sertão - Moradores de Poço Redondo sofrem com o aumento do tráfico de drogas e denunciam que quadrilhas impõem o medo e o silêncio no local - O alto sertão é o principal alvo dos traficantes - Roubos, furtos, aumento no consumo de drogas ilícitas, principalmente o crack são as principais reclamações de moradores do alto sertão sergipano. A população alega que a violência tem se tornado frequente nos povoados, principalmente os que ficam distantes das cidades e apresentam difícil acesso. A equipe do Portal Infonet ouviu ainda relatos de moradores que afirmam conviver diariamente com o medo e o silêncio impostos por quadrilhas que atuam no tráfico de drogas.
Moradores do município de Poço Redondo, distante 184 km da capital, relatam que a cidade vem sofrendo com a violência e com o aumento nos casos de jovens envolvidos com drogas. Com medo de mostrar o rosto, um comerciante diz que vive assustado com a violência do local e que apesar de ter sido assaltado algumas vezes não denuncia porque é intimidado pelos assaltantes.
Morador denúncia que quadrilhas mantém plantação de drogas: “Infelizmente a violência está crescendo bastante na cidade, já fui assaltado algumas vezes, mas não vou à delegacia porque os bandidos andam pelas ruas e podem até cometer um crime maior”, diz o comerciante.
Um ex-agricultor morador do povoado Areias, distante 15 km da sede do município de Poço Redondo, diz que nos últimos anos tem pensado em deixar a localidade com medo da violência. “Aqui é muito distante da cidade, a gente vive com muito medo da violência porque casos acontecem sempre, mas o que assusta mesmo é essa droga aí que inventaram, esse tal de crack, menina isso destrói uma família”, afirma Jackson Barbosa dos Santos, relatando que fica várias noites sem dormir para tentar fazer a segurança da família.
“Eu e minha mulher moramos aqui assustados, tem noites que nessa estrada de chão passa tanta gente que não dá para dormir. Acho que se continuar assim vou morar em outro lugar, porque aqui é distante e a gente chama a polícia e eles não chegam nunca”, conta o ex-agricultor, acrescentando que teme que os bandidos podem estar plantando maconha nas proximidades.
A dona de casa Cleide dos Santos, também moradora do povoado, diz que apesar de não saber de casos, teme que seja vítima de violência sexual. “Às vezes tenho que andar para tentar pegar um transporte para ir à cidade e muitas vezes encontro com alguns homens na estrada que ficam encarando de forma suspeita, fico com medo e sempre evito ficar sozinha”, alerta.
O esposo de Gleide afirma que tem redobrado os cuidados com a segurança com medo de assaltos. “Nunca pode sair de casa os dois porque se sair a gente sabe que quando voltar não vai encontrar nada na casa. Os bandidos aqui agem livremente e eles sabem que, como o povoado é isolado, a gente pode chamar a polícia que vai demorar bastante para chegar”, observa Daniel dos Santos.
O aumento do tráfico de drogas no sertão é confirmado pelo comandante responsável pelo Pelotão Especial de Policiamento em Área de Caatinga (PEPAC), Tenente Oliveira. “Desde a criação do batalhão em setembro de 2008 temos realizado várias prisões e apreensões de entorpecentes principalmente na área correspondente ao alto sertão sergipano. Somente no ano passado apreendemos cerca de 27 armas, mais de 80 cabeças de gado e cumprimos mandados de busca e apreensão”, diz o tenente.
O delegado Clever Farias, disse que no ano passado realizou uma das maiores apreensões de maconha da região. “Apreendemos mais de três quilos de maconha em Canindé do São Francisco. Isso mostra que o tráfico está crescendo bastante. Para realizar o policiamento ostensivo, o batalhão conta com apenas 28 policiais, observa o delegado.
O tenente Oliveira destaca que a divisa entre Bahia e Alagoas proporciona um maior fluxo de traficantes de drogas no sertão sergipano. “Canindé, Poço Redondo e Porto da Folha são as localidades mais afetadas pelo tráfico por conta da divisa entre Bahia e Alagoas. Sabemos que muitos aproveitam o Rio São Francisco para transportar drogas e isso dificulta o trabalho do batalhão que realiza diligências em uma grande faixa do território”, salienta Oliveira, ressaltando que é preciso a aquisição de um barco para realizar o trabalho.
Dificuldades - O efetivo de apenas 28 policiais é uma das principais dificuldades para conter o avanço das quadrilhas no sertão. “Trabalhamos com 28 policiais no batalhão de caatinga, quando seria necessário atuar com 56 homens de forma permanente. Mas apesar do efetivo reduzido estamos realizando um ótimo trabalho nas regiões, combatendo o roubo de gado e o tráfico de drogas”, completa o Tenente Oliveira".
Diante de tais fatos, que são exemplos mínimos do absurdo da violência que vem tomando conta de Poço Redondo, necessariamente que surgem algumas indagações: O que motiva a prática de tanta violência? Por que um município pacato se mostra desenvolvido demais quando se trata de violência? Até onde vamos chegar com tanta violência?
Tais indagações eu já havia procurado responder em dois artigos que escrevi há algum tempo atrás. No primeiro, intitulado "Uma abordagem sociológica da violência no sertão de Sergipe", publicado no site Nenotícias de 24/07/2009, defendo que a violência que se alastrou por Poço Redondo e toda a região se deve à invasão de forasteiros que se acentuou nos últimos anos com a chegada dos militantes do movimento dos trabalhadores rurais sem terra.
Eis o que diz o artigo:
"Não faz muito tempo, cerca de uns vinte anos atrás, quando os moradores da cidade de Poço Redondo, após muita fadiga do longo dia de trabalho e do sol escaldante a experimentar suas forças, ao anoitecer colocavam suas esteiras nas calçadas das casas e ali deitavam, proseando com os seus, e depois adormeciam sossegadamente, no ventinho bom da paz sertaneja até altas horas da madrugada. Não havia quem os importunassem, quem os ameaçasse ou praticasse qualquer tipo de violência. As portas e janelas podiam ficar abertas noite adentro; os noctívagos podiam vagar debaixo da lua até a hora que quisessem; a tranqüilidade reinava nas ruas e nos recantos. Eram raros os casos de homicídios, estes ocorrendo basicamente nos povoados e envolvendo gente forasteira; os roubos e furtos eram raramente constatados; as desavenças, sem graves conseqüências, eram quase sempre causadas pelas longas bebedeiras em dias de feira. Tempos idos, que nem de longe se compara com o crescente estado de violência que impera atualmente por todo o sertão.
Os atos de violência tão propalados nos tempos de Lampião, se verdadeiros ou lendários, agora ressurgem na sua mais cruel frieza e tragicidade. A imprensa é testemunha desse presumido ressurgimento e a cada dia noticia a disseminação da degradante realidade do semi-árido: “Ontem, o governador em exercício, Ulices Andrade, demonstrou preocupação com a onda de violência registrada no sertão sergipano, especialmente com a grande incidência de roubo de gado”( Jornal do Dia – 13/01/2009); “A população de Monte Alegre (SE) promoveu um ato público, na sexta-feira passada (4), em protesto contra os assassinatos de uma criança e de uma adolescente ocorridos no município, no dia 28 de abril” (site Direito2.com.br, em 08/05/2007; ) “O roubo dos animais de José, que pode parecer desimportante a quem não conhece a realidade do sertanejo, não está atingindo apenas a pequena propriedade dele, mas toda a região do alto sertão sergipano, na qual pequenos, médios e grandes criadores de gado do Estado vivem aterrorizados” (Cinform – 12/01/2009); “Suspeito de envolvimento em arrombamentos, homicídios e roubo de animais, o desempregado Antônio Júnior, foi assassinado a tiros e teve a cabeça decepada. O crime aconteceu às 2 horas de ontem, no povoado Capim Grosso, em Canindé do São Francisco” (Jornal da Cidade – 03/07/2009); “Policiais da delegacia de Porto da Folha, a 190 KM de Aracaju, prenderam o maior traficante de droga do sertão de Sergipe. Damião dos Santos agia há meses em Porto da Folha e segundo investigações da polícia local, negociava mensalmente mais de 12 quilos de maconha” (Boletim da SSP/SE, em 10/05/2007). Caberia citar centenas de outras notícias nesse mesmo teor, vez que os jornais e sites estão repletos da criminalidade sertaneja envolvendo assassinatos, roubos e furtos, tráfico de drogas, exploração sexual de menores etc.
As conseqüências da violência todos conhecem, e são as mesmas noticiadas pela imprensa, acrescentando-se a isto o pavor que se espalha naquele que deveria ser o romântico e bucólico mundo caipira, além do medo constante que se interioriza nas pessoas e no sentimento de impotência que é criado. Ora, alguém poderia perguntar: A que estágio chegamos meu Deus? Será que o desenvolvimento do sertão é somente nos aberrantes aumentos dos índices de violência e criminalidade? Como resposta inevitavelmente teria que esse é o preço que se paga quando os municípios são invadidos por forasteiros, tornam-se descaracterizados pela dispersão das famílias tradicionais e de outras famílias que constituem o núcleo de valorização da comunidade, perdem a importância que se dava antes às relações de parentesco e de amizade, deixam de lado a noção de vida comunitária e participativa e passam a ser regidos por disputas entre os velhos e os novos habitantes, enfim, quando o lugar perde a sua feição de cidade interiorana e torna-se cosmopolita, importando os modismos da cidade grande, incluindo-se aí a prática de todo tipo de violência e a proliferação do uso de drogas.
Neste sentido, a questão ganha um cunho sociológico, pois as possíveis causas citadas se constituem em fatos sociais novos, impostos por uma realidade forçadamente introduzida e que confronta com as regras da suposta pacificidade social até então existente. Essa realidade introduzida de forma abrupta, pois as mudanças negativas passaram a mostrar toda sua força do final do século passado para cá, redundou no que se pode chamar de “império da violência”. Qual seria, então, o principal fator de violência existente na estrutura social sertaneja moderna? Logicamente, como já foi dito, tem-se que o principal fator é o inchaço, o acúmulo de pessoas estranhas aos municípios que passaram a conviver nas localidades, seja como sem-terra, assentados, migrantes ou mesmo como simples opção de moradia.
Nesse contexto de proliferação de pessoas totalmente estranhas num mesmo município, onde cada estranho tem um passado desconhecido, com cada um querendo mostrar sua força perante o outro, o que se vê é que o lugar que era familiarmente estabelecido, torna-se terra de ninguém. Dessa desconfiguração do status próprio da comunidade, o fruto mais perverso é a proliferação da violência, e esta sendo praticada, na grande maioria dos casos, pelos forasteiros espalhados ali e acolá, nos assentamentos, povoados e nas periferias das cidades. Mas as manchetes dos jornais não falam sobre a naturalidade dos infratores, dos meliantes. São mostrados apenas como sertanejos".
No segundo artigo, que tem por título "Eu sertanejo, com orgulho da gente e não do povo", publicado também no Nenotícias em 19/08/2009 procuro fazer a exata divisão do que é ser sertanejo e não sertanejo, homem da terra e forasteiro, de modo a mostrar que dá orgulho ser sertanejo e conviver com os conterrâneos, fato que não se pode dizer com relação ao estranho à terra que vai chegando onde não tem raiz e vai disseminando a violência e tudo que é estranho ao lugar.
Eis o texto:
"Inicialmente, antes que haja deturpação nas palavras e pretendam crucificar o autor antes de ler o texto e entender o seu sentido, informo que os vocábulos gente e povo, mesmo que mantenham semelhanças de significado, são totalmente diferentes quanto aos destinatários aos quais são empregados, ou seja, possuem analogia mas cuidam de contextos diferentes.
Com efeito, gente é um conjunto de pessoas que possuem características comuns; é um grupamento humano natural de algum lugar; é ainda família, pessoas com afinidades. Por sua vez, povo é o conjunto de habitantes de uma localidade ou região; é o conjunto de pessoas que vivem em sociedade ou formam uma comunidade; é uma massa humana de uma forma geral. Os dois termos diferenciam-se, pois, pelo fato de que povo pode ser visto como um todo do qual gente faz parte; aquele se localizando de forma abrangente e este se situando de modo específico. Assim, povo sertanejo não é o mesmo que gente do sertão. O povo é de qualquer lugar e que lá está; a gente é de lá, com raízes fincadas no lugar.
Esclarecidos tais aspectos, verdade é que ser sertanejo dá um orgulho danado. Nascer naquelas paisagens áridas, desafiadoras, instigantes, e que somente seus filhos sabem usufruir, faz brotar e crescer no homem/terra um imenso sentimento de dignidade pessoal, de brio, altivez e amor-próprio. Como diz a letra da música caipira, “de que me adianta viver na cidade se a felicidade não me acompanhar, adeus paulistinha do meu coração, lá pro meu sertão eu quero voltar...”.
Quem está longe quer voltar porque sabe que se enfeiam as construções da cidade grande diante da beleza singela das moradias simples, rústicas, dispostas ali e acolá pelas vastidões dos campos e descampados; não há um jardim sequer em outro lugar, por mais cuidados que receba, que se compare com os terrenos tomados por mandacarus, xiquexiques, palmas, cabeças-de-frade. Os cactos também dão flores. Não há na cidade grande qualquer coisa que se assemelhe, nem de longe, com aquele cotidiano de lutas e esperanças por dias melhores. Os olhos curtidos pelo sol enxergam e vêem que tudo é possível. E ainda há as manhãs sertanejas, o entardecer do gado berrando, o outro dia que chega ainda na escuridão e logo se alimenta com o leite quentinho do peito da vaca.
Razão tinha Fernando Pessoa, o poeta português que também amava sua terra: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. Parafraseando, toda a beleza que possa existir além do sertão jamais será mais majestosa do que tudo que na aldeia sertaneja nasceu. E essa aldeia impregnada de aridez cativante é mais bela por uma razão muito simples: o sertanejo é tão misturado à terra, que não é pessoa, é chão do sertão. Sendo homem/terra, vê plantado em si a responsabilidade de afastar do lugar os desatinos do destino, buscando preservar de toda ameaça que há.
Se ter orgulho, amar a terra, é também procurar preservar, que se comece logo separando o joio do trigo. Assim, quando afirmo que tenho orgulho da gente e não do povo sertanejo, nada mais quero dizer do que a afeição com que vejo os meus conterrâneos não é a mesma que sinto com relação ao forasteiro que ali se instala como uma erva daninha em meio aos frutos da paz e da ordem que buscam florescer. É como se fosse a parábola bíblica do joio e do trigo nas distâncias nordestinas.
Aos poucos, o joio sorrateiramente começou a chegar e fez moradia por entre o trigal, e como não se pode, no início da gestação, arrancar o joio sem danificar o trigo, o sertanejo teve que forçadamente acolher o estranho, mesmo sabendo que a partir dali nada mais seria como antes. Atualmente, joio e trigo estão espalhados no sertão indistintamente, como se fossem uma coisa só. Conseqüência disso é que a gente da terra, o trigo que não pode mais ser dono do seu próprio destino, paga o preço de todos os tipos de aberrações praticadas pelo joio forasteiro. Para quem não vive o contexto, não conhece as novas situações criadas, o sertanejo se tornou, antes de tudo, também um malfeitor.
Como ter orgulho do estranho que chega, vai engolindo as cidades, espalhando-se desordenadamente pelos arredores, formando grupos de escusos interesses comuns, andando impunemente armado, semeando violência e confusões, tirando a paz do pacato interiorano, tornando o sertão tão negativamente maculado como jamais se viu na história? Não significa afirmar que há santidade, infinita bondade na gente do lugar, pois tem muito caipira que não é flor que se cheire, mas não se pode negar o óbvio: hoje, é preciso refazer, continuar vivendo o ontem para continuar admirando o sertão.
Não quero magoar ninguém, por isso mesmo vou culpar o progresso e o desenvolvimento por tudo que vem ocorrendo. Ademais, segundo afirmam, todos têm direito a um lugar debaixo do sol. Com o progresso, os lugares tornam-se descaracterizados, perdem a feição bravamente construída; com o desenvolvimento, infelizmente vão perdendo sua história. Se mais tarde ainda haverá lugar para a verdadeira gente sertaneja só Deus saberá responder. O povo vai continuar existindo, e talvez destruindo com maior ferocidade.
Mas hoje, insistindo em defender meu berço de flores e cactos, guio-me ainda por Fernando Pessoa e continuo a dizer: “Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo... Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer, porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura...”.
continua...
Advogado e poeta
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