Feliz às escuras
Teoria fácil de se constatar é a de que a humanidade já chegou há bastante tempo ao ponto de total dependência da eletricidade e da informática. Todas as tecnologias que fazem o planeta funcionar praticamente estão atreladas às duas, o que nos remete a um caminho sem volta no que diz respeito aos investimentos que precisam continuar sendo feito em ambas.
Uma hora apenas sem energia elétrica dá para perceber a dimensão do caos em uma situação mais drástica. Se o problema ocorrer à noite, então, o monstro fica ainda mais assustador.
Nem é preciso aqui detalhar a dimensão negativa do efeito dominó de um apagão. Quem reside em Viçosa-MG, como eu, sabe bem disto, já que a cidade constantemente é alvo de interrupções de energia em qualquer horário do dia. Já experimentei algumas em situações nada confortáveis (no meio de um texto, no meio de um filme, no meio de uma aplicação de prova numa turma noturna, no meio do trânsito no início da noite).
E lembrar que ficar às escuras já foi um dia motivo de extrema alegria para mim. Explico: na década de 1970 (época da minha infância) só havia energia elétrica em Boa Nova (minha cidade natal, localizada no sudoeste baiano) entre às 18 e às 23 horas. Foi assim até 1982, ano em que a então usina termoelétrica foi substituída por linhas integrais alimentadas por hidrelétricas, vindas de outras regiões. Também foi o mesmo ano em que chegou o telefone num posto de serviços (nas casas, somente em 1983).
Novelas da Globo no estilo “Roque Santeiro” já retrataram essa realidade, que hoje ainda é bastante comum em municípios isolados da Amazônia. Caso alguém já tenha morado ou visitado alguma cidade assim, entenderá melhor o que estou contando.
Na Boa Nova da minha infância o racionamento já estava embutido no próprio horário de funcionamento do “Motor da Prefeitura”, como era chamado popularmente. Às 18 horas um barulho ensurdecedor para quem morava nas imediações anunciava o início da fraca luz dos poucos postes de madeira e da possibilidade de uso dos escassos eletrodomésticos disponíveis – entre eles a TV (em preto e branco), a geladeira e o liquidificador (artigos de luxo numa sociedade em que bem poucos os possuíam).
Como naquela época a maior parte dos programas de televisão à noite era destinada aos adultos, nós – as crianças – nos divertíamos nas ruas, livres e rodeados de muitas brincadeiras. Foram várias as ocasiões em que a bendita usina de energia nos presenteou com apagões repentinos que chegavam a durar uma semana. Naquelas noites absurdamente estreladas (como nunca mais tive o prazer de ver) a poesia se fazia presente, traduzida em situações bem pouco comuns nos dias de hoje.
As cenas se repetiam cidade afora: famílias inteiras colocavam cadeiras nas calçadas em frente a suas casas e passavam horas “proseando” como o melhor dos passatempos. A criançada, por sua vez, encontrava uma forma intrigante (e nada ecológica, é bom que se diga) de brincar: com os mais diversos tipos de frascos de vidro (com as tampas devidamente furadas), lá iam meninos e meninas “caçar” vaga-lumes para fazer dos bichinhos lanternas naturais. Em algumas residências o papo sempre terminava em casos de assombração e noutras fogueiras ardiam como as únicas luzes a varar a escuridão completa.
Em pleno terceiro milênio essa visão poética de um apagão é quase uma heresia. Algo para se vislumbrar apenas na imaginação de alguns poucos ou em obras de ficção. Na crua realidade de qualquer cidade contemporânea faltar eletricidade é como faltar o chão.