Indiciar, crime e processar – três palavras que atingem proporções dramáticas nas matérias denunciatórias
A notícia é o principal produto da mídia, e o impacto é o ímã de atração para o o leitor; como consequência, as matérias denunciatórias e acusatórias são frequentes e rotineiras.
Mas nos textos os redatores usam algumas expressões jurídicas de difícil compreensão para o leitor leigo.
Pior: o clima denuncista leva este mesmo leitor leigo a atribuir um significado mais grave e duro do que o real valor delas.
A consequência é um grande dano à honradez dos acusados, que ficam acuados após a divulgação do que, em muitos casos, não passa de simples investigação ou de uma suspeita infundada. Ou mal fundamentada.
Destaco três palavrinhas que se prestam a esta distorção semântica: indiciar, crime e processar.
Indiciar – Quando uma mera investigação é entendida como acusação formal e direta
Segundo o dicionário Houaiss, indiciar significa, na rubrica termo jurídico, “submeter (alguém) a inquérito policial ou administrativo”.
É originário do substantivo indício que, segundo o mesmo dicionarista, é uma “circunstância que possui relação com o fato delituoso, possibilitando a construção de hipóteses com ele relacionadas sobre a autoria e seus demais aspectos, e que pode ser utilizada como prova em processo judicial”.
O dicionário Michaelis optou por esta definição de indício: “sinal ou fato que deixa entrever alguma coisa, sem a descobrir completamente, mas constituindo princípio de prova”.
Ambos querem dizer o seguinte: o indício nada mais é do que uma circunstância que uma autoridade com o poder de investigação — geralmente um delegado de polícia — usa como motivo para pesquisar a existência de uma possível irregularidade, ou de um suposto ato criminoso.
Em resumo, o indício também pode ser nada ou quase nada, embora também possa ser um ponto de partida para uma descoberta relevante.
Exatamente por causa desta imprecisão, o anúncio do indiciamento não deveria comprometer o indiciado, pois é apenas parte de um processo investigatório.
Mas uma distorção semântica impregna a este ato um significado pesado, negativo, principalmente quando impresso em manchetes de jornal.
“Fulano foi indiciado pela polícia sob a acusação de crimes sexuais”: alguém consegue recuperar totalmente seu bom nome após uma manchete semelhante?
O fato é que, na cultura popular, indiciar desligou-se do originador indício e virou sinônimo de acusação grave ou — pior — de provável culpa.
Algumas autoridades investigativas se aproveitam da imprecisão e da amplitude conceitual de indício para convocar o constrangido investigado sob a forma de “indiciamento”, quando poderiam fazer uma convocação discreta para um testemunho, palavra de menor impacto.
Um exemplo, e bem frequente: durante a investigação de supostos pagamentos de propinas e sonegação de impostos em alguma grande empresa os policiais encontram anotações a mão ou planilhas com os nomes de políticos e autoridades favorecidas.
Pela lógica, a autoridade policial deveria apenas “convidar” o dono do nome para prestar informações enquanto faz investigações paralelas, mas frequentemente opta pelo indiciamento, ganhando uma boa cobertura da mídia.
A intenção é tirar proveito da interpretação popular equivocada do verbo indiciar.
Crime – Uma palavra que abrange do acidental culposo até o terrível doloso
A palavra “crime” tem um sentido forte, brutal: indica sempre a existência de um delito de graves consequências.
Mas existe um problema semântico: o ato tanto pode ser praticado por autores conscientes de fatos graves — os criminosos, na mais forte acepção da palavra — quanto pelos inconscientes ou acidentais.
O primeiro caso é do crime doloso que, segundo o dicionário Houaiss, significa “aquele que resulta de uma ação positiva do criminoso”.
O outro, mais brando, tem o nome de crime culposo e significa “aquele em que o agente não tinha a intenção de alcançar o resultado delituoso, mas que acabou sendo causado por sua negligência, imprudência ou imperícia” (mesma fonte).
A presença da palavra “culposo” aumenta a confusão e exige maior atenção pois, embora derivada de ”culpa”, significa uma quase ausência dela, por pressupor inconsciência e ausência de intenção.
Mas estes detalhes léxicos não chegam ao entendimento do grande público, que associa o “criminoso” à imagem de um terrível bandido.
Os incêndios são bons exemplos: quase todos são investigados como possíveis crimes, pois geralmente são causados por erro humano e a consequência é sempre o dano material, ainda que pequeno.
A investigação policial parte de três hipóteses básicas: acidente natural, acidente provocado por erro humano e crime intencional.
Tecnicamente, o acidente por erro humano é um ato criminoso, mas do tipo culposo, não intencional; só pode levar à adequada punição do responsável quando existir dano material.
Mas a população só relaciona a expressão “incêndio criminoso” ao ato intencional, e sempre crucifica o infeliz e desastrado causador.
Um exemplo de incêndio que caracteriza um crime culposo: quando o perito encontra resíduos de substância inflamável em um escritório incendiado, seu relatório deverá indicar que ocorreu um crime.
Escritórios são locais que sempre guardam muito material que facilita a propagação do fogo, como papéis, mesas de madeira, cortinas, tapetes; por isso, deixar material inflamável no local ou descuidar da manutenção da rede elétrica é um ato de risco, é uma falha do responsável.
Mesmo se foi a humilde faxineira quem deixou a garrafinha de querosene perto da instalação elétrica, tecnicamente a ocorrência foi um crime culposo.
O trabalho do perito é parcial, restrito, e não cabe a ele levantar outras informações essenciais; cabe ao delegado que preside o inquérito fazer este levantamento e agir com a discrição ou sigilo necessários para encaminhar o processo até quem tem o poder constitucional do julgamento, que é o Judiciário.
Esta é a lógica, a ética, o correto.
Mas quando a tentação dos holofotes é mais forte, basta anunciar a suspeita de incêndio criminoso que o espaço na mídia é garantido.
E a audiência do público também, que aumenta ainda mais quando o caso inclui ingredientes fortes como vítimas fatais, ou dinheiro público, ou documentos incriminadores.
Tudo consequência de uma questão semântica, pois falar em suspeita de incêndio criminoso sempre produz forte impacto junto ao público, um poder praticamente condenatório.
Processo – Uma palavra que pode significar um impacto na vida ou apenas se referir a um ato burocrático
Processar é outra expressão de conotação semântica muito complexa nas matérias denunciatórias.
Em seu sentido original representa apenas a abertura de um processo por um órgão público, um ato que pode resultar em condenação, em absolvição e — coisa comum neste país — em meros arquivamento, esquecimento, falta de julgamento, engavetamento ou abandono.
Abrir um processo não é uma consequência exclusiva dos crimes; longe disso, são comuns em situações brandas como os pequenos delitos e corriqueiras cobranças pecuniárias.
Uma das três definições de processo na rubrica termo jurídico do Dicionário Houaiss diz que se trata do “conjunto das peças apresentadas por uma outra parte para servir à instrução e ao julgamento de uma questão”.
Para o Dicionário Michaelis, é o “conjunto das peças que servem à instrução do juízo; autos”.
A abrangência de “processo” na administração pública é abismal: servem para estudos, informações, alterações regimentais, verificações.
Os principais envolvidos em um processo, aqueles que possuem responsabilidade sobre seus efeitos, são geralmente chamados de “partes”; nos processos criminais os acusados são denominados “réus”, um substantivo de forte impacto na sociedade.
Portanto, ser processado, por si só, nada significa, mas a expressão “Fulano está sendo processado” sempre tem um peso elevado no cotidiano brasileiro; raramente é falada em tom normal de voz.
Ou é dita aos sussurros, por fofoca ou por medo das consequências, ou é dita em alto tom, para dar um teor incriminatório ao “acusado”.
Não deveria nem poderia ser assim, mas no imaginário popular só é processado quem não é honesto.
Um caso ocorrido em minha vida profissional que se encaixa com perfeição no preconceito contra o “processado”: duas décadas atrás, uma colega de trabalho escondeu da família até o jornal oficial do Estado de Minas Gerais por causa de um processo administrativo; na verdade era vítima de uma acusação infundada e acabou absolvida.
Outro colega — incurso na mesma acusação — só dormia à custa de ansiolíticos durante o transcorrer do processo, que também terminou favorável a ele.
Ambos assustados, apavorados mesmo, com a conotação que a sociedade — incluindo, preocupantemente, seus familiares — aplica à palavra.
Fechando a torneira da memória, observo que a mídia sempre explorou esta dualidade, esta ambiguidade, esta contradição.
Ter sido ou estar sendo processado é um dado sempre citado no perfil do personagem quando o repórter ou editor que dar um destaque negativo.
Em época de eleições o processo é um perigo para a campanha do candidato.
Perigo que recrudesceu no primeiro semestre deste 2010, quando a mídia estampou uma campanha contra a participação dos “fichas sujas”, uma referência aos políticos processados, que inicialmente incluía até mesmo os que ainda não tinham sido julgados e condenados.
Se uma ideia tão extensa fosse acatada pelo poder Legislativo, todo candidato a qualquer cargo seria alvo de algum processo aberto por um adversário, ou por um laranja deste.
Sob a pressão eleitoral, o Congresso aprovou às pressas uma lei específica sobre a questão, que teve o mérito de evitar a perigosa abrangência de incluir qualquer processado.
No dia 05/06/2010 entrou em vigor a já batizada Lei da Ficha Limpa que, segundo texto do site UOL, “permite vetar candidaturas de políticos com condenação na Justiça, nos julgamentos em instâncias colegiadas (decisão de mais de um juiz) e amplia de 3 para 8 anos a inegibilidade. Serão contempladas pela lei as condenações por crimes dolosos (onde há a intenção, e com penas acima de dois anos), atos de improbidade administrativa, abuso de poder político e crimes eleitorais que resultem em pena de prisão.”
Certamente é contrária aos interesses de boa parte da classe política, que preferia deixar o assunto sem regulamentação, mas prevaleceu o medo da opinião pública em ano eleitoral.
Antes tarde do que nunca (e o quanto demorou...).