Apartheid entranhado
O interessante de eventos esportivos da dimensão de uma Copa do Mundo de Futebol ou de uma Olimpíada é também a atenção que a mídia dá para a cultura do país-sede. Além das abordagens que podem ser consideradas chavões, por retratarem os aspectos mais óbvios da nação anfitriã, há sempre histórias de personagens anônimas que trazem à tona aspectos ricos de outro tipo de informação.
Na edição da última segunda-feira (7) do Bom Dia Brasil, na Globo, foi mostrado um senhor de 80 anos que é um exemplo vivo das profundas cicatrizes deixadas pelo regime do apartheid na alma dos negros sul-africanos. Apresentado como “Seu Clak”, ele é o funcionário mais antigo do hotel onde está hospedada a Seleção Brasileira em Joanesburgo.
No texto da matéria o repórter diz que aquele homem nascido em 1930 (ano da primeira Copa do Mundo da história, realizada no Uruguai) “está há 66 anos trabalhando de cabeça baixa no bairro onde só brancos moravam”. A reportagem enfatiza ainda que “Seu Clak teve que se acostumar a ver o mundo passar primeiro pelos pés por causa do apartheid, a política de segregação racial da África do Sul”. Mesmo após quase duas décadas do fim do regime político discriminatório, o funcionário de serviços gerais ainda carrega o pior dos traumas deste tipo de desumanidade: durante a entrevista ele não conseguia olhar nos olhos do repórter, por ele ser branco.
Essa matéria foi encerrada com o seguinte texto: “Tivemos que insistir para tirar o medo e dar a Seu Clak coragem para me olhar nos olhos. Ele disse que está muito feliz pelos jogadores brasileiros estarem aqui. Seu Clak conheceu o branco Kaká e o negro Robinho. Viu que não há diferença. Somos todos iguais”.
A história desse senhor, que deve ser bem parecida a de milhões de outras vítimas de discriminação no mundo inteiro, é uma prova do que foi e do que é capaz o ser humano. Existe outro tipo de fratura exposta que nada tem a ver com as que uma radiografia pode mostrar. Uma mente ou um espírito fraturado demora muito a cicatrizar. Às vezes isto nunca acontece.
Praticamente todas as nações do planeta já tiveram (e ainda têm) as suas versões do apartheid (palavra africânder que significa separação). Todas elas, guardadas as suas devidas particularidades e motivações, trazem o mesmo cerne: uma parcela da população (muitas vezes uma minoria), respaldada pelo poder econômico, pela truculência política e por um aparato repressor, oprime e decide o destino dos demais.
Felizmente, o caminhar dialético que faz impérios ruírem e civilizações perecerem debaixo de escombros também aponta novos rumos para a história. No caso do apartheid da África do Sul, quando ele estava no auge seus principais agentes provavelmente acreditavam que manteriam para sempre os seus privilégios e as suas crenças focadas numa sociedade segregada. Estavam enganados, como também se enganaram os escravagistas brasileiros. Talvez isto seja apenas o simples girar da roda-viva da história. No entanto, é também possível acender a fé que aponta para algum tipo de Justiça Divina, capaz de equacionar os nossos piores erros.