Evolução em Evolução
Marcos Pereira Magalhães
Museu Paraense Emílio Goeldi
Quando se fala em evolução a primeira idéia que vem à cabeça é a teoria elaborada pelo naturalista inglês Charles Darwin e publicada em1859 no livro A origem das espécies. Esta teoria, conhecida como Darwinismo, explica a evolução dos seres vivos por meio da seleção natural. A seleção natural ocorre quando os seres que apresentarem uma vantagem numa determinada situação têm uma grande prole, que transmitem as suas características e com o tempo tornam-se dominantes.
Porém, apesar do sucesso da teoria darwinista para explicar a evolução dos seres vivos, na história da ciência, conforme vamos re-interpretando os dados científicos e acrescentando a eles novas informações, a narrativa daí derivada contribui para a superação de alguns de seus preceitos. Atualmente, é isto que está acontecendo com o conceito fundamental de evolução. E, claro, a Amazônia tem uma parcela de “culpa” nisto.
Antes de 1900, a palavra evolução, que provém do Latim evolutio, significando "desabrochamento", referia-se à processos pré-programados. Uma tarefa pré-programada, como uma manobra militar, ou um desfile de escola de samba, segundo esta definição, podia ser considerada uma "evolução". Somente no século XIX evolução passa a ser identificada com melhoria. Entretanto esta idéia, que se contrapunha à de que os seres vivos foram criados e permaneciam iguais e imutáveis, foi sendo elaborada desde o despertar do Iluminismo (Século XVII). Para os pensadores europeus de então se tornara claro que as sociedades humanas haviam evoluído e o mesmo tinha acontecido com as espécies. Daí em diante há todo um processo de revolução científica, alavancado pelas idéias transformacionistas decorrentes dos avanços da física, da astronomia e principalmente, da geologia. Por outro lado, a maioria das idéias sobre a evolução das espécies, antes de Darwin, como por exemplo, as idéias de Lamarck, interpretavam igualmente as mudanças biológicas como uma melhoria.
A partir de Darwin, porém, além da palavra "evolução" significar seleção natural; não implicar em qualquer forma de melhoria "absoluta", rumo a uma perfeição ideal; ser o mero resultado do acúmulo de características hereditárias vantajosas ao longo do tempo, em seus respectivos ambientes; também passa a indicar a teoria científica de como este processo de organismos substituindo organismos ocorreu. Assim, "evolução" é um modelo científico que procura explicar o fato evolução. Por isto que ao longo dos anos, os processos evolucionários vêm sendo interpretados segundo a evolução do próprio pensamento científico. No século XX foram feitas interpretações que defendiam a interferência humana sobre a seleção natural, na busca do aperfeiçoamento e do progresso constantes, contudo, na virada para a segunda metade do século a maioria dos cientistas e filósofos passa a rejeitar a estrita definição de mudança social e cultural como melhoria.
Reforma e Purificação do Darwinismo
Pode-se afirmar que desde o século XIX, com o sucesso científico da explicação evolucionária da vida, existem diversas teorias da evolução. Apesar de atualmente haver muito debate científico em torno da freqüência relativa e importância de cada um dos modos de especiação, nenhum desses debates se preocupa com a existência ou a inexistência da mudança evolucionária. Para a ciência, a evolução é um fato irrefutável! Afora isto, inesperadamente, as teorias evolucionárias progrediram lentamente, em especial por conta do sucesso das explicações genéticas e da associação da evolução com idéias racistas, só superas no último quartel do século XX.
Foi só a partir dos anos de 1970, que duas bem sucedidas teorias “reformistas” complementam a teoria da evolução darwiniana tradicional. A teoria darwiniana original considera que o aumento de mudanças que produz uma nova espécie ocorre por toda a população das espécies "parentais", e que a população completa só é substituída por uma nova espécie gradualmente, em um cenário conhecido tecnicamente como "especiação simpátrica" (simpátrico significa "o mesmo lugar"). Em 1972, Stephen Gould e Niles Eldredge propuseram que a maior parte das populações de organismos de reprodução sexuada experimenta pouca mudança ao longo do tempo geológico e, quando mudanças evolutivas ocorrem, elas se dão de forma rara, localizada em uma área geográfica isolada e por um período relativamente curto de tempo. Este cenário é conhecido como "especiação alopátrica", que significa "lugar diferente".
A outra teoria é mais conhecida como "deriva genética". Na visão darwiniana, todas as características de um organismo resultam da seleção natural, que continuamente se livra das variações inadequadas e seleciona as adequadas para serem conservadas na próxima geração. Entretanto, ao menos em alguns momentos, a presença de uma característica genética particular pode ser somente o resultado de uma mudança fortuita. Em uma população pequena na qual uma porção dos indivíduos são possuidores de uma característica e uma porção é possuidora de outra, é possível, por um conjunto de circunstâncias acidentais tais como uma doença ou um desastre natural, aniquilar todos os possuidores de uma dessas características, restando somente a da outra. Assim, essa característica seria conservada não através da seleção natural, mas unicamente devido a circunstâncias casuais. Segundo esta teoria, também parece haver um grande número de características causadas por mutações genéticas, que são iguais em sua "aptidão", nenhuma delas, com isto, possuidora de qualquer vantagem de seleção sobre as outras. Desta maneira, essas características são referidas como "neutras" - ou são selecionadas a favor ou selecionadas contra, e a proporção de uma característica para outra numa população poderia mudar, casualmente, através de métodos puramente estatísticos.
Atualmente mutação e seleção são consideradas processos adaptativos complementares. A cada geração, a mutação traz novas variações genéticas para as populações e seria a seleção natural, ao realizar uma triagem, que reduziria as variações não adaptáveis e aumentaria as adaptáveis em determinado ambiente em transformação. A seleção natural detectaria, entre os tipos genéticos, diferenças extremamente sutis na adaptabilidade. Assim, a aleatoriedade da deriva genética seria neutralizada pela seleção natural, que direcionaria, de acordo com os elementos neutros favoráveis, a mudança evolutiva, mesmo nas seqüências de nucleotídeos no DNA.
Porém, na história da ciência, somente quando a genética se esgota na explicação das mudanças vitais, nos últimos anos do século XX e os evolucionistas recuperam a pureza das idéias darwinianas, é que a teoria evolucionária volta a ter importância científica. Talvez por conta dos percalços enfrentados pela teoria evolucionária no passado recente é que na perspectiva da maioria dos cientistas, não se afirme mais que a história (tanto humana como biológica) é inevitavelmente "progressiva", movendo-se inexoravelmente do "bom" para o "melhor", ou tampouco que a história move-se do "menos complexo" para o "mais complexo". Por outro lado, complementando tal perspectiva, parece haver consenso de que o processo da evolução é totalmente ad hoc (aleatório) e sem direção.
Complexidade e progresso
No entanto, estudos recentes geralmente relacionados à química e à cosmologia, têm mostrado como a entropia direciona a seta do tempo, no sentido de uma maior complexidade da natureza. Complementarmente, a própria química, a meteorologia, a ecologia, a informação e a economia, têm atenuado a idéia de casualidade e da aleatoriedade da estatística, afirmando que nas longas séries de acontecimentos, ou nos grandes sistemas há uma passagem da incerteza à “quase-certeza”. Ou seja, ainda que ocorra o acaso, os processos evolucionários podem ser descritos em termos de criação e de transmissão de mensagens genéticas, de modo que a própria casualidade é restringida pelas condições específicas do organismo. Enfim, a seleção natural ao agir sobre os tipos genéticos acaba por associar as informações contidas nos tipos selecionados à organização do próprio ambiente.
Com isto, ao longo do tempo, os acontecimentos não estão sujeitos a uma casualidade absoluta, mas a possibilidades imanentes, nas quais as condições ambientais favoreceram em detrimento de outras. Ainda que a vida não seja predeterminada, ela tem direção e essa direção tem sentido e informação. Mas qual direção? Ora, na teoria evolucionária associada à entropia, que segue a linha do tempo passado, presente, futuro, o progresso não só é possível, como é inerente. Porém, as implicações dessa progressão assumem características que parecem sair da ficção científica.
De fato, estudos com sistemas complexos dinâmicos mostram que em sistemas compostos de vários subsistemas, como nos sistemas vivos, além da possibilidade de se ter uma evolução temporal complicada e não meramente simples (que estaria restrita aos estados estacionários), eles evoluem juntos. Isto é, a seleção ocorre em níveis múltiplos, de forma constante e simultânea, de modo que a evolução é coletiva, ocorrendo em grupos ou conjunto de espécies. E, ainda, que na evolução a condição global futura não é forçosamente dada, mas é construída pelo devir. Não é o que está determinado, mas o que é possível vir a ser pelo o que está sendo. Mas o que está sendo já vem com informação e, portanto, com uma ordem, que reorganiza e de modo cada vez mais complexo, o mundo segundo as conexões que se estabelecem no encontro entre os diferentes seres constituintes de um conjunto ecossistêmico.
Por tudo isto, compreende-se que a questão evolucionária é, ela mesma, sujeita à evolução do pensamento científico. A evolução evolui; seus próprios processos evoluem. Contudo, a evolução evolui por conta da evolução de nossa própria percepção da natureza. Assim, dizer que os processos evolutivos se configuram de um jeito e não de outro, é resultado do modo como a natureza está sendo percebida e do modo como esta percepção descreve a história da ciência.
Conexões Evolucionárias
Um dos aspectos mais interessantes da teoria evolucionária em desenvolvimento, que defende a idéia dos processos conectivos, coletivos e providos de planos e sentidos, aos quais podemos chamar de conexões evolucionárias, é que ela está baseada na história da ciência contemporânea. Deste modo, ela não é uma simples narrativa, mas a construção dessa mesma história. Essa teoria, ainda que não tenha a obrigação de se basear em fatos observáveis, pode e deve apresentar indícios que estejam de acordo com a natureza.
E há muitos desses indícios na Amazônia. Nela há evidências de que no ambiente não existe indivíduo isolado e que nem a sociedade ou um grupo social humano está separado do mundo circundante. Eles interagem, comutam. Eles interagem absorvendo as experiências exteriores, porém conforme as experiências particulares dos sujeitos com o seu mundo circundante específico.
Nos tempos anteriores à conquista européia, populações amazônicas nativas deixaram muitas evidências de que Homem e natureza se inteiravam e que os ambientes ocupados ou explorados por essas populações antigas eram transformados em espaços familiares, através da construção de paisagens que eram culturais e cognitivamente conceituadas pelos grupos humanos. Porém, os membros dessas populações entendiam que os elementos da construção cultural eram fundamentalmente naturais. Era desse modo que eles perpetuavam ou mudavam a ordem das configurações políticas, sociais, ou econômicas das suas sociedades. Assim, os ambientes transformados em paisagens culturalmente reconhecidas não podem ser vistos como um mero substrato natural ou cultural. Neles, há toda uma dinâmica entre o mundo natural e a imagem socialmente construída da paisagem, que permanece permanentemente em obra em favor dos interesses culturais, sociais e políticos dos Homens, mas segundo a natureza do ambiente que se apresenta.
Alguns estudiosos afirmam que os seres vivos e ambientes mudam juntos através de um contínuo acoplamento inteirativo, que ocorre passo a passo no encontro do ser vivo com a sua circunstância. E mais, que o ser e o fazer de um sistema vivo são inseparáveis, uma vez que não há rompimento entre produtor e produto em uma vida integrada. Por outro lado, também vem sendo observado que numa relação integrativa, o todo é que deve ser alvo da seleção evolutiva, já que, neste caso, os indivíduos dependem da cooperação harmoniosa de seus membros. Nas espécies sociais, em particular, a cooperação tem tanta força, que a própria seleção natural favorece o comportamento altruísta. E embora existam grupos evidentemente egoístas que levam a melhor sobre os altruístas, os grupos altruístas sempre superam os egoístas.
Idéias como a de uma evolução coletiva nas sociedades humanas, de seleção natural co-evolutiva e, inclusive, da integralidade entre as espécies, ganham força com as novas abordagens evolucionárias lançadas sobre a natureza da região amazônica. E quando focamos as sociedades humanas que se instalaram na Amazônia milhares de anos atrás, chegamos a três pensamentos não convencionais. Quais sejam: I - a refutação de que a domesticação de plantas só pode ser feita por espécie e de que a própria evolução das espécies seja individual; II - a afirmação de que a domesticação pode ser a construção cenográfica da paisagem através da seleção coletiva de espécies e de que as especiações só ocorrem num processo coletivo de transformação ambiental; III – a idéia de que a seleção cultural pode ser um fator importante nos processos evolutivos naturais.
Por tudo isto pode-se dizer, que finalmente a idéia de evolução parece encontrar-se diante de um novo horizonte de possibilidades, graças às mudanças sensíveis pelas quais as sociedades contemporâneas transpõem frente à vida. Essas mudanças são possibilidades oferecidas pela história toda vez que ocorrem alterações na percepção sensível dos Homens, que passam a olhar, ouvir ou sentir o mundo com “outros olhos”, com outra sensibilidade. Quando isto ocorre, não é só o Homem que muda, mas também o próprio mundo em que vive e observa. Porém, essas mudanças não são homogêneas e nem simultâneas. E mesmo na ciência, elas são irregulares e dinâmicas.
Podemos concluir, enfim, que as conexões evolucionárias, históricas e/ou ambientais, implicam na compreensão de uma natureza, na qual tudo está ligado e agindo coletivamente. E isto está bem representado em Avatar, o filme de James Cameron, onde a arte parece imitar a vida. O importante é compreender que a ligação coletiva, pelo potencial de informação que carrega, possui um plano que se constitui no momento mesmo da sua integração. O plano é desenvolvido no momento do encontro entre os seres vivos e, portanto, todo corpo material é a composição intricada de uma característica informativa que planeja a si mesma. Por outro lado, a posição do ser humano frente a uma ordem associativa e sensível na natureza, também retira das suas produções socioculturais, qualquer caráter de pura artificialidade.
Para saber mais:
DAWKINS, R. A Grande História da Evolução: na trilha dos nossos ancestrais. São Paulo, Cia. Das Letras, 2009.
MAGALHÃES, Marcos Pereira. Evolução e Seleção Cultural na Amazônia Neotropical. Revista Amazônia: Ci. & Desenv., Belém, v. 3, p. 93-112, 2007.
PRIGOGINE, Ilya, O Fim das Certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo, UNESP, 1996.