O vazio que acompanha os vivos que perderam parentes e amigos

Sempre que passo em frente à Sorveteria São Domingos, na avenida Getúlio Vargas, em Belo Horizonte, sinto um estranho vazio na mente.

É que foi lá que vi, pela última vez, o meu amigo Júlio Queiroz, em dezembro de 2003: ele morreria em 17 de março de 2004.

O mesmo sentimento confuso, mal compreendido, se repete quando passo pelo caminho que liga o Supermercado Extra ao Minas Shopping.

Este foi o local de alguns encontros ocasionais – os últimos – com o também falecido amigo Asdrúbal Martiniano Giovannini.

Em comum, o fato de eu não ter ido ao velório deles.

Elza, viúva do Júlio, ainda se lembrou de me avisar da missa de sétimo dia, mas eu não conhecia a família de Asdrúbal e estava meio afastado dele – afastamento normal, imposto pela falta de tempo livre na vida corrida da cidade grande –; por isso só descobri dois anos depois.

Estes dois casos me levaram à idéia de que a ausência ao velório produz um sentimento diferente, uma estranha sensação de um vazio permanente, mal compreendido pelos neurônios das emoções.

E, em consequência, à ideia de que é necessário ver o corpo para se ter certeza da morte, para que o fato seja integralmente absorvido pela psique.

Como não compareci aos enterros de Júlio e Asdrúbal, herdei estes sentimentos que não sei explicar, mal consigo definir, e sobre os quais não tenho conhecimento técnico para teorizar.

Imagino que esta sensação deve ser ainda mais grave nos familiares dos que desapareceram de fato, ou dos quais só restaram corpos destroçados, como as vítimas de desastres aéreos.

Esta questão foi muito discutida na mídia após os três grandes desastres do país (voo Gol 1907 em 29/09/2006, voo TAM 3054 em 17/07/2007 e voo Air France 447 em 31/05/2009).

Nos dois primeiros ainda foi possível a cerimônia de enterro, ainda que de corpos incompletos; no terceiro, alguns poucos corpos boiaram, mas a maioria desapareceu na vastidão profunda do Atlântico.

Psicólogos e psicanalistas explicaram que a falta de um corpo produz um impacto maior do que a morte comum, uma sensação de perda que não desaparece de todo.

Um problema que nunca se resolve.

Parentes das vítimas do desastre do Aeroporto de Congonhas criaram até uma associação (Afavitam) não só para defender os interesses financeiros mas também para continuar procurando culpados.

A norte-americana National Geographic Channel (TV) já mostrou no programa documentarista Mayday – Desastres Aéreos vários casos de familiares que se dedicam durante anos a atos diversos relacionados ao acidente ou às vítimas, como pesquisa de causas, punição de culpados ou um interminável prantear às suas memórias.

Como homenagem final, deixo na cyber-rede alguns comentários e informações sobre ambos:

JÚLIO QUEIROZ — Nasceu na cidade mineira de Patrocínio, em 15/07/1936, e faleceu em 17/03/2004, aos 67 anos. De família de fazendeiros, concluiu o curso de medicina veterinária na UFMG no final dos anos 1960 e começou a trabalhar no Hipódromo Serra Verde desde a sua fundação, como assistente do professor João Batista. Não se especializou em equinos, mas seguiu trabalhando no clube, no atendimento das corridas, até 2002, quando elas acabaram. Tinha várias outras atividades na veterinária: fiscal de produtos de origem animal da Prefeitura de Belo Horizonte, uma clínica de pequenos animais mantida por uma drogaria veterinária, e sua fazenda em Patrocínio. Trabalhei com ele no hipódromo e na clínica. Júlio era alto, gordo sem ser obeso, mas não foi eficiente para controlar a diabetes, que atacou a visão e o coração. Estive com ele um mês antes de se internar para uma cirurgia cardíaca (ponte de safena), mas ele não me contou a respeito. Certamente estava com medo. Teve complicações durante a cirurgia e morreu dois meses depois. Não teve filhos.

ASDRUBAL MARTINIANO GIOVANNINI — Deve ter nascido em torno de 1958 e faleceu em 29/04/2000. Eu o conheci em 1979, no cursinho pré-vestibular Pitágoras, onde ele se preparava para tentar o curso de medicina, após se desanimar com o curso de história, do qual creio que nem se diplomou. Inteligente, foi aprovado sem maiores dificuldades, mas no decorrer dos estudos passou por momentos de indecisão e atrasou a formatura. Com limitações financeiras, teve que trabalhar para ajudar o sustento e chegou a ser revisor gráfico no extinto Jornal de Minas, onde eu também trabalhei (como repórter) uma década antes. Era comunicativo e sempre deu especial atenção aos profissionais de serviços auxiliares como porteiros, secretárias, enfermeiras. Risonho e falante, não se queixava do passado; eu só tomei conhecimento da história de sua vida, repleta de abandonos e perdas, por informação do falecido telexista (operador de telex, aparelho de comunicação em extinção) Pedro Pimentel, que era seu vizinho. A mãe de Asdrúbal era minha colega de trabalho, mas não me lembro dela. Ela não criou o filho, que entregou aos pais do pai dele, e faleceu precocemente, com cerca de 46 anos. Os avós de Asdrúbal já eram idosos e também faleceram. Ele foi transferido para uma tia, também idosa, e que também viria a morrer, talvez um pouco depois que eu o conheci.

Asdrúbal iniciou a carreira médica em 1990 e a partir daí se estabilizou. Acertou seus rumos na carreira e na vida, e casou-se (com Geordana, que comentou este texto). Mas com pouco mais de 40 anos sofreu um infarto e morreu. Atravessava o melhor momento de sua vida, como disse o primo dele Nei (que foi meu colega de jornalismo em O Globo, hoje no jornal Hoje em Dia). Ele foi um exemplo de como os caminhos da vida seguem desígnios fora do controle humano e de suas lógicas: teve uma vida problemática, se estabilizou, mas pouco depois morreu. Mal aproveitou o seu melhor momento.