Jornalista só se for de raça, “o resto” é marketing do capital
Muita gente que se formou em jornalismo, preferiu o caminho fácil de um emprego reacionário, de uma assessoria de imprensa medíocre, ou até mesmo desistiu da profissão em troca de um concurso público para um cargo refrigerado no governo. Poucos foram os que abriram mão de um objetivo carreirista, para se dedicar ao verdadeiro jornalismo, sem mentiras, tendências, máscaras, ambições e interesses particulares (tanto inviduais quanto coletivos). Tudo bem, temos que admitir, hoje em dia é muito difícil encontrar veículos com uma linha editorial adequada para jornalistas recém-formados. E por causa disso, os jovens (para se sustentar) precisam trabalhar em lugares onde se faz de tudo, menos jornalismo.
Mas, o problema mesmo, é quando o jornalista entra nesse sistema viciado, e de lá não quer mais sair. Pois já se acostumou com o privilégio de beber uísque com políticos, celebridades, andar em carro do ano, morar em lugares confortáveis e comer em restaurantes da moda.
E ao menos que você seja filho de algum barão da cultura brasileira, como Gilberto Gil, Chico Buarque, Franklin Martins ou Ricardo Kotcho, dificilmente você vai começar trabalhando numa Folha ou num Estadão. Pois esses programas de trainee são a maior farsa que os jornalões já inventaram, serve apenas para a burguesia paulistana (ou para famílias com muito dinheiro) que podem sustentar seus filhos em apart hotéis de São Paulo enquanto durar o treinamento. Para o jornalista que se forma nos bolsões fora do eixo Rio-Minas-São Paulo, restam apenas os jornalecos de uma imprensa totalmente subserviente. Onde, ao invés do patrão investir na carreira do funcionário, ele chupa seu sangue até que não reste mais nada (e entre outro mais novo em seu lugar).
Esse é um ciclo interminável, a troca de uma mercadoria por outra. Sendo assim, a única opção que resta ao jovem periférico, que persegue (e respira) o verdadeiro jornalismo, e vê na profissão um sacerdócio (não apenas um trampolim para uma carreira bem sucedida) é a perseverança de investir em si próprio. Sem esperar por qualquer tipo de paternalismo, indicações ou privilégios. Porque, se esse jovem mantêm a indignação ao ver as pessoas aos farrapos, comendo lixo, sem emprego, exploradas, e se ele manter o sonho de “ser um jornalista engajado”, ele vai ser um profissional muito mais preparado do que qualquer outro jovem bem alimentado do Leblon, do Morumbi ou daqueles intelectóides da Usp, Mackenzie ou Cásper Líbero.
Não adianta o jornalista recém-formado nos ”bolsões” querer competir logo de cara com esse estudante “mais bem alimentado”, pois como acontece muito, antes mesmo de terminar a faculdade esse “moço” já fez intercâmbio no exterior, e domina pelo menos duas línguas. Justamente o perfil que os jornalões querem: jovens bonitinhos, com perfil de intelectual paulistano (ou carioca) e que já estejam dentro do sistema, pois assim será mais fácil de se adequar à linha maniqueísta do jornal. Os jornais não querem mais aquele “jornalista de raça” como dizia João Antônio, eles querem técnicos, gramatiqueiros, gente que use de todos os mecanismos para escrever uma matéria, menos o coração. Pois isso é proibido.
Então agora vai a pergunta. O que fazer diante de um quadro como esse? Onde jovens sul-mato-grossenses, sergipanos e amazonenses estão excluídos de uma imprensa onde se tenha pelo menos um ambiente sadio para trabalhar com dignidade. Resta, talvez, uma das maiores atitudes que ainda temos: a resistência. Enquanto estiver trabalhando (para sustentar a si e a família) em jornais sem ética, subservientes ao interesse de políticos e empresários corruptos, jamais se pode desistir do sonho do jornalismo “aquele que retrata a realidade tal como ela é, e que sempre luta para transformá-la naquilo que tem de errado, injusto, desumano. Pois só assim vale a pena ser repórter”, como um dia disse Ricardo Kotcho (o que infelizmente deixou de fazê-lo). Outro segredo é seguir o discurso de Guevara, que sempre dizia aos jovens que: “Para chegarmos em algum lugar, devemos estudar forte, estudar pesado”.
Sem falar também que devemos sempre nos espelhar em outros marginais que um dia foram desacreditados, mas que mesmo (tendo nascidos na lama podre das periferias brasileiras) contrariando todas as expectativas, conseguiram colocar o povo (e a sua profissão) num lugar de destaque. Um dos espelhos (junto com Lima Barreto, Jack Kerouac, John Reed e Hunter Thompson) deve ser João Antônio, que cresceu entre a miséria dos botecos na Boca do Lixo, e se tornou um escritor de sucesso, o único a vencer dois prêmios Jabuti no mesmo ano (melhor livro de contos e melhor livro revelação). E a única coisa que ele fez foi estudar, ler muito, e escrever apenas sobre as coisas que conhecia com profundidade: os marginais, os mendigos, os desdentados, as prostitutas, o trabalhador: o povo brasileiro. “Literatura para o povo e pelo povo”. Antes disso, trabalhou num boteco com o pai, foi office boy, e nos tempos da faculdade foi redator em uma agência de publicidade (quer estágio pior para um estudante de jornalismo?). Mas, apesar de todas as dificuldades, nunca desitiu do sonho de ser um “jornalista de raça”, como ele defendia. Nas horas de desânimo, devemos sempre sonhar com uma cartada final, exatamente como João Antônio fazia.
E a única forma de competir com esse jornalista “colonizado na Europa e radicado em grandes cidades com o dinheiro do papai”, é o estudo, pois esse é o único fuzil que ainda nos resta. É nossa última artilharia pesada: a dedicação, o estudo e a perseverança. Ao jovem periférico resta apenas a preparação, mas sem nunca se esquecer da realidade onde viveu e, principalmente, daquele que deve ser o objetivo final de todo jornalista: a informação sem maquiagens ou pintada com enfeites.
Tokyo, 8 de agosto de 2006
Danilo Nuha – Começou trabalhando aos nove anos de idade como jornaleiro e balconista de bar. Foi açougueiro, limpador de fossa, descarregador de caminhão e operário em fábricas japonesas. Formou-se em jornalismo, tem 24 anos e atualmente está desempregado.