Todo mundo acha que é poeta, mas...

DA TECHNÉ AO DOM: UM DIÁLOGO ENTRE LONGINO E DRUMMOND .

RESUMO: Este artigo analisa os conceitos apresentados na arte poética clássica de Longino, Do sublime (séc.I) em comparação com a arte poética de Drummond, “Procura da Poesia” (1945), a fim de mostrar sua relevância na função que esta “nova” arte poética cumpre na obra de Drummond e, conseqüentemente, no contexto do Modernismo brasileiro. Tanto Longino como Drummond compartilham a firme convicção de prescrever regras em suas poéticas, apesar de elas também possuírem elementos descritivos e, igualmente, a convicção de que, se o método (técnica) é de suma importância, não existe poesia sem o dom (inspiração).

ABSTRACT: This article analyses the concepts presented in the classic poetic art of Longino, Do sublime (séc. I) in comparison with the poetic art of Drummond, “ Procura da poesia” (1945), in order to show his relevance in the function that this "new" poetic art carries out in the work of Drummond and, consequently, in the context of the Brazilian Modernism. As many Longino as Drummond shares the firm conviction of prescribing rules in his poetics, in spite of them also have descriptive elements and, equally, the conviction of which, if the method (technique) is of abridgement importance, there is not poetry without the gift (inspiration)

Palavras-chave: Longino, Drummond, Arte poética prescritiva, Modernismo Brasileiro.

Key Words: Longino, Drummond, Prescriptive poetic art, Brazilian Modernism

Hoje o termo “poética” vem sendo usado pelas mais diversas áreas do conhecimento humano com um significado que não vai muito além de “teoria”. Porém, no decorrer deste ensaio, o termo será focado como uma teoria geral de poesia que define a poesia, suas várias ramificações e subdivisões, formas e recursos técnicos, discutindo os princípios que a regem e a distinguem de outras atividades criativas (PREMINGER e BROGAN, 1974, p. 636). Dentro dessa concepção, pode-se notar a existência do que poderíamos chamar de duas correntes de “artes poéticas”: a que está mais focada em formular uma regra geral para a produção da poesia e, portanto, dá mais valor à sua definição, o que se denomina arte prescritiva, e a que dá mais ênfase à sua discussão, ou seja, a arte descritiva.

Sejam prescritivas, descritivas ou um meio termo entre essas vertentes, pode-se observar que as artes poéticas antigas ressoam nas poéticas concebidas posteriormente, às vezes se somando a estas, enquanto que outras vezes; colocam-se em absoluta contradição. Segundo Abrahms , tais poéticas podem ser classificadas como teoria mimética ─ a arte como imitação de aspectos do universo – que está presente em Aristóteles; teoria pragmática ─ em que o poema é construído com o objetivo de surtir efeitos nos leitores – que pode ser encontrada em Horácio; teoria expressiva – a obra de arte como resultante do processo criativo que opera sob o impulso do sentimento e concretiza as percepções, sentimentos e pensamentos do poeta – poética de Longino; ou ainda a teoria objetiva ─ a obra de arte como entidade autônoma, julgada somente por critérios intrínsecos a seu modo de ser – encontrada em Landino.

Apesar de essa classificação buscar estabelecer uma clara distinção entre as várias formas que as poéticas podem assumir, não se pode levar totalmente em conta que essas teorias são mutuamente exclusivas, e o que Abrahms sugere é que o elemento básico para a classificação é o elemento dominante dentro de uma poética.

Neste ensaio, a proposta é buscar uma das diversas possibilidades da relação dialética entre uma poética antiga e uma atual, uma vez que elas ─ apesar de terem sido produzidas com quase vinte séculos de diferença ─ parecem compartilhar de uma poética prescritiva. Para isso, comparou-se a arte poética Do Sublime , de Longino - que estudiosos acreditam ser datada do séc. I d.C. – com uma das diversas artes poéticas escritas por Drummond, Procura da Poesia, publicada no livro A rosa do povo em 1945.

Essas duas poéticas, além de possuírem um caráter prescritivo, apresentam com clareza a suma importância da téchne e do dom na elaboração de uma poesia. A téchne,, ou seja, o método, apresenta-se como o caráter formal de uma criação artística, como uma espécie de contraponto ao dom, considerado a genialidade inata. Para os dois poetas, é impossível, sem uma perfeita harmonia entre a téchne e o dom, atingir-se o sublime, que pode ser designado como uma verdadeira criação literária aliada à grandeza da concepção e emoção.

Assim, apesar do caráter prescritivo das duas artes poéticas, a importância da téchne não elimina o dom, o outro lado da moeda para se produzir uma obra de arte. Essas artes poéticas prescrevem que o método e o dom sozinhos são insuficientes; portanto, é o poeta que, mediando as duas propriedades, vai produzir a obra de arte, o que permite inferir que essas duas poéticas ─ como representativas do conjunto da obra desses dois autores – têm uma predominância para a orientação dentro de uma arte poética expressiva.

O “sublime” de Longino pode ser considerado como um conceito anticlássico e está associado à grandiosidade, elevação e transcendência. Esse conceito vai ser de grande importância na passagem do neoclassicismo para o romantismo, ocupando um local central na estética do século XVIII. Longino inicia a sua poética criticando o mestre da retórica, Cecílio, porque julgava a sua obra insuficiente, no que diz respeito à essência da arte, por haver apresentado o “sublime” somente através de exemplos, não se preocupando em estabelecer “como” e por quais métodos poderia ser obtido. Para Longino, Cecílio teria se limitado a mostrar o “sublime”, sem manifestar como a própria natureza chegaria a determinada elevação.

Desse modo, em seu tratado, Longino não pretende nem definir o sublime ─ uma qualidade inefável ─ , nem apresentá-lo através de exemplos, mas sim identificar as suas fontes. Para o autor, tais fontes estão divididas em dois grupos de capacidades: as que dizem respeito ao gênio inato, e as capacidades ligadas às fontes práticas. No primeiro grupo, considera uma determinada elevação do espírito para formular elevadas concepções, e o afeto veemente e cheio de entusiasmo, capaz de provocar paixões inspiradas. No segundo, leva em conta a disposição das figuras de pensamento e de dicção, que seriam uma espécie de desvios provenientes da imaginação e criatividade, a formulação nobre e a composição magnífica, dignificante e elevada (LONGINO , VIII-1).

O sublime aparece como a principal virtude literária, como o eco da grandeza do espírito, o poder moral e imaginativo do escritor presente no seu trabalho, trazendo pela primeira vez a importância das qualidades inatas desse escritor (dom) e não somente as da sua arte (téchne). Longino constata ainda que, na criação da arte, existe natureza e técnica e que é preciso pensar no seu encontro, o que corrobora Pigeaud que, na introdução à Do Sublime (LONGINO, 1996, p. 9-39), observa que o autor encontra, evidentemente, a questão da fronteira, da passagem entre o inato e o adquirido, entre o dom e a técnica, avatar da oposição entre physis e nômos, a natureza e a norma, o dom biológico e a regra. Elabora a sua questão teórica sobre como podemos estimular os dons naturais para a obtenção do sublime:

(...) se examinarmos a natureza, embora quase sempre siga leis próprias nas emoções elevadas, não costuma ser tão fortuita e totalmente sem método (...), compete ao método estabelecer âmbito e conveniência (...), os gênios correm perigo maior, pois se às vezes precisam de espora, muitas outras, de freio.(II,2)

Diferentemente de Longino, que contrapõe sua poética à de Cecílio, a arte poética de Drummond, um dos artífices do modernismo no Brasil, vai ser criada a partir de idéias que já tinham superado as poéticas românticas, parnasianas e realistas. E, num segundo momento, conforme Aschar (2000, p.11-12), vai se distinguir pela mistura de estilos, em que se combinam o elevado e o banal, o grave e o grotesco, pela aplicação da linguagem vulgar a assuntos sérios e vice-versa, pela renovação da temática existencial, ou seja, a busca de novos registros para temas como o tempo, o amor e a morte, pela elaboração de imagens surpreendentes, envolvimento do escritor nas questões sociais e pela reflexão da poesia sobre a própria poesia.

Esses novos registros se aproximam da poética de Longino, na medida em que recusam a simples imitação da realidade. A metapoética drummondiana, como pode ser verificado nos metapoemas Procura da poesia, Consideração do poema, Poesia, O lutador e Segredo, encontra-se, na maioria das vezes, intrinsecamente relacionada à confessada luta do escritor com as palavras, na busca de expressão (AGUILLERA, 2002, p.196).

Como já foi comentado, a poética Procura da Poesia faz parte de um dos mais discutidos e apreciados livros da poesia moderna brasileira, A rosa do povo, obra em que Drummond, além de mostrar sua preocupação social numa época sombria, que foi a ditadura de Vargas, apresenta o seu entendimento sobre “o que é” e “como escrever poesia”. Esse tratamento assemelha-se muito à poética de Longino, no que diz respeito às capacidades necessárias para se criar o sublime. Também para o poeta mineiro, a poesia deve ser encontrada na relação dicotômica entre a téchne e o dom, uma vez que é, ao mesmo tempo, a linguagem de determinados instantes, sem dúvida os mais densos e importantes da existência ─ o que denota a importância da inspiração ─ e também o trabalho com palavras, com o compromisso com a linguagem, isto é, baseia-se num método.

Logo no início de Procura da Poesia, nota-se que Drummond vai se utilizar de uma prescrição negativa, ou seja, como não se deve fazer poesia, quando da utilização de temas cotidianos na sua criação, podendo parecer, àquele a quem a poesia drummoniana não é familiar, que tal prescrição é um convite para não se escrever sobre a cotidianidade. No entanto, a obra de Drummond, assim como toda poesia moderna, traz um forte apelo à utilização de temas do dia-a-dia e da expressão verbal cotidiana que é transcrita para o plano das artes. Portanto, o que o poeta mineiro quer deixar claro, é que a simples emoção que as coisas do dia-a-dia podem evocar no chamado poeta, ou seja, o simples falar das coisas do cotidiano, um falar sem estar sendo regido pelo método, não pode ser confundido com a verdadeira poesia:

Não faças versos sobre acontecimentos.

Não há criação nem morte perante a poesia.

Diante dela, a vida é um sol estático,

não aquece nem ilumina.

As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Não faças poesia com o corpo,

esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica .

Drummond não busca relatar o ritmo cotidiano da vida e da morte, do calor e da luz, da confusão e tumulto, mas sim, como apresenta Costa Lima, através do verso “Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida ”, indicar o tempo de gasto, de corrosão, a partir do qual sua obra será ladrilhada (COSTA LIMA, 1995, p.131):

Corrosão, como a empregaremos, não se confunde com derrotismo o ou absenteísmo. Ao contrário, no contexto drummondiano ela aparece como a maneira de assumir a História, de se por com ela em relação aberta. É deste modo que a vida não aparece para o poeta mineiro como jogo fortuito, passível de prazeres desligados do acúmulo dos outros instantes. Ela não é tampouco cinza compacta, chão de chumbo. Ao invés dessas hipóteses, a corrosão que a cada instante a vida contrai há de ser tratada ou como escavação ou como cega destinação para um fim ignorado. Em qualquer dos dois casos — ou seja, quer no participante quer no de aparência absenteísta — o semblante da História é algo de permanente corroer. O princípio-corrosão é, por conseguinte, a raiz que irradia da percepção do que é contemporâneo (COSTA LIMA, 1995, p.131).

Essa negativa de assumir um mero fato cotidiano como poesia também se apresenta como um elemento da mais profunda importância na obra de Longino: “Mas a propósito de todas as coisas desse tipo poderíamos dizer isso: o que é útil e mesmo necessário ao homem está ao seu alcance, mas o que ele admira sempre é o inesperado” (XXXV,5). Aqui a “cotidianidade” pode ser confundida com o que “está ao seu alcance”, e o inesperado na construção da poesia não tem a finalidade de persuadir, e sim de trazer novos significados para os símbolos. O choque suspende o julgamento e nos faz sair de nós mesmos, mergulha-nos no êxtase, tira-nos o fôlego, de emoção e de surpresa (PIGEAUD apud LONGINO, 1996, p.37).

Com relação à emoção, a crítica que Longino faz à poética de Cecílio está baseada, sobretudo, no fato de Cecílio ter omitido a emoção em sua poética. Longino não deixa de advertir que a inclusão da emoção num poema pode ser vista como uma das inúmeras possibilidades de se obter o sublime; essa simples inclusão, porém, como se observou na “cotidianidade” em Drummond, não significa de forma alguma que o sublime e o patético devam andar sempre juntos como se fosse uma regra geral. Para o poeta da Antigüidade, algumas emoções estão separadas do sublime e são totalmente sem grandeza, tais como a pena, o sofrimento e os temores (VIII, 2). Essas emoções tão reais, tão “miméticas”, não são uma garantia para se atingir o sublime, o que também pode ser constatado em Drummond ao apresentar as suas prescrições poéticas:

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro

são indiferentes.

Não me reveles teus sentimentos,

que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.

O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Mais uma vez a advertência de que a simples emoção, sem estar fortemente apoiada do dom e do método, jamais atingirá o sublime se faz presente. Para Antonio Candido, essa mistura perfeita entre dom e método encontra-se na base do trabalho poético drummondiano, o que possibilita que em seus versos o lugar comum se torne uma revelação:

Para ele (o poeta), a experiência não é autêntica em si, mas na medida em que pode ser refeita no universo do verbo. A idéia só existe como palavra, porque só recebe vida, isto é, significado, graças à escolha de uma palavra que a designa e à posição desta na estrutura do poema. O trabalho poético produz uma espécie de volta ou refluxo da palavra sobre a idéia, que então ganha uma segunda natureza, uma segunda inteligibilidade. Tanto assim, que o poema é geralmente feito com o lugar-comum (...). Nas mãos do poeta o lugar- comum se torna revelação, graças à palavra na qual se encarnou (CANDIDO, 2004, p.92).

Outro importante aspecto em que ambos os poetas concordam plenamente é a importância da liberdade ao se formular outras inteligibilidades, novos sentidos para o lugar-comum, para a “mesmice” do pensamento:

Hoje em dia, porém, (...) desde a infância nos educam para uma escravidão; só falta enfaixarem-nos, desde os mais tenros pensamentos, nos mesmos costumes e cogitações; por não termos provado a mais bela e fecunda fonte de facúndia, refiro-me à liberdade, não passamos de bajuladores geniais. (...) a razão é que a falta da liberdade de palavra efervece imediatamente e ele sente-se como um preso, acostumado aos murros no rosto (LONGINO, XLIV, 3 e 4).

Essa “mesmice” causada pela escravidão do pensamento parece estar de acordo com a consciência de rebanho preconizada por Nietzsche (2001, p.201), para quem: “(...) o pensamento consciente não faz parte propriamente da existência individual do homem, mas antes daquilo que nele é natureza de comunidade e de rebanho”.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.

Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

Assim, para Drummond, a “mesmice” do lugar-comum deve aparecer como algo novo dentro de uma poesia; este deve ser enunciado de uma forma muito mais clara e renovadora, como o preparo de “uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças” (DRUMMOND citado em BRAYER, 1978, p.101) ou ainda:

Entendo que a poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Até os poetas se armam, e um poeta desarmado é, mesmo, um ser à mercê de inspirações fáceis, dócil às modas e compromissos (DRUMMOND citado em BRAYER, 1978, p.101).

Para Emanuel de Moraes (MORAES citado em BRAYER, 1978, p.101), a palavra drummoniana, longe do lugar-comum, apresenta-se como um instrumento de luta e mostra o seu posicionamento no mundo e na arte, e a sua função social:

O canto não é a natureza

nem os homens em sociedade.

Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.

A poesia (não tires poesia das coisas)

elide sujeito e objeto.

O poeta lembra que o canto, no sentido de poesia, não é nem Natureza, o que pode ser configurado como dom, nem tampouco Sociedade, que assume o sentido de téchne ou método, visão esta que está de acordo com Longino ao prescrever:

(...) como na maioria dos casos, a impecabilidade se deve à correção da arte, enquanto o sublime, embora não mantenha um plano uniforme, é fruto da genialidade, convém, em tudo, pedir a arte que ajude a natureza, pois talvez consista a perfeição numa aliança estreita de ambas (LONGINO, XXXVI, 4).

Nessa perspectiva, a poesia não pode ser criada apenas a partir de uma das variáveis mencionadas. Não se constrói só com o dom, nem tampouco só com o método (téchne), mas sim com o perfeito trabalho de harmonização entre ambos; ou, como nos ensina Drummond, na eterna luta entre a emoção e a razão, no conflito, na ambigüidade, numa guerra contínua, que acaba por partir o poeta ao meio:

De um lado, as palavras – e com elas, as idéias, a tradição poética, as teorias, o pensamento; de outro, as coisas, isto é, os elementos que se conectam com o real, sentimentos, paixões, os objetos do cotidiano. Drummond escreve entre um “Eu todo retorcido” e a busca de um “sentimento do mundo”. Assim é a poesia de Drummond, em dupla face, uma coisa e ao mesmo tempo seu contrário. (CASTELLO, 2007, p.195)

Após as primeiras três estrofes e parte da quarta estrofe, que são construídas num paralelismo negativista, aparece um primeiro verso afirmativo: “a poesia (não tire poesia das coisas) elide sujeito e objeto”. A ressalva “(não tire poesia das coisas)” está relacionada ao fato de a poesia ser algo que se contém a si mesmo, um misto de conteúdo-continente. Para Drummond, a poesia não pode ser vista como finalidade, como mero atributo circunstancial: “Não acho que a poesia seja meio para se comunicar qualquer coisa, senão que ela própria é algo que se comunica” (DRUMMOND apud SANT’ANNA, 1992, p.195).

Esse sentido “não-utilitário” da poesia, da poesia não como um meio e sim como a própria “coisa”, o sentido de uma poesia que não é um mero portador de uma determinada comunicação e que não se constitui simplesmente em um instrumento para falar sobre qualquer assunto contrapõe-se à sua real significação, ou seja, ser a própria forma que se reflete sobre si mesma, ser o seu próprio assunto, aquilo sobre o que versa. Essa mesma visão “não-utilitária” da poesia apresenta-se em Longino, em suas imagens e aparições, aparecendo concretamente aos “olhos” do auditório:

(...) se o nome aparição é comumente atribuído a toda espécie de pensamento que se apresenta, engendrando a palavra, agora o sentido que prevalece é esse: quando o que tu dizes sob efeito do entusiasmo e da paixão, tu crês vê-lo e tu o colocas sob os olhos do auditório. (LONGINO, XV,1)

Seguindo esse raciocínio, em torno de uma poesia definida como a própria “poesia”, pode-se ainda constatar que, em relação à quarta estrofe de Procura da Poesia, a elisão (“elidir”) do sujeito e objeto esclarece a posição da supressão do cogito cartesiano em sua relação sujeito-objeto. Essa relação sujeito-objeto é vista pela Teoria do Conhecimento em sua vertente cartesiana como a forma com que o sujeito deve buscar o conhecimento, ou seja, de uma maneira “objetiva”, acreditando na possibilidade de se conseguir uma exterioridade absoluta e livre de interferências subjetivas (ou uma subjetividade absoluta livre de interferências objetivas).

A fusão do sujeito e objeto proposta por Drummond elimina toda a possibilidade de uma leitura objetiva da realidade, e o coloca próximo a uma postura existencialista de Heidegger que, através do seu conceito de “ser-no-mundo”, traz uma nova relação espacial e funcional entre o ser (sujeito) e o mundo (objeto). Tal relação elimina a relação de contenção do sujeito pelo mundo (como a relação da água com o copo), ou ainda a associação a uma posição de manipulação, transformação ou de interpretação do mundo, seja ela subjetiva ou objetiva (HEIDEGGER, 2001, p.92).

Sant’Anna (1992, p.195) explica essa elisão através de algumas categorias de objetos que Bachelard apresenta em seu estudo A Poética do Espaço e que nomina como “objetos que se abrem”, “objetos-sujeitos” e “objetos-mistos”, cuja função é “guardarem” outros objetos, ou seja, espaços que condensam outros espaços. Seguindo a linha proposta pelo crítico e poeta brasileiro e, ainda, calcando-se na concepção bachelardiana dos devaneios materiais, pode-se perfeitamente entender essa “fusão” através da imaginação material do fogo íntimo, em que aparece de maneira clara a elisão na dialética fundamental do sujeito e do objeto. “O ser amante quer, então, ser puro e ardente, único e universal, dramático e fiel; e por fim, instantâneo e permanente” (BACHELARD, 1999, p.163). Também pode ser compreendida (a fusão) em relação ao elemento terra e suas cavernas, no sentido bachelardiano de “se perder”, no medo de se perder, perder a nós mesmos, a obliteração da relação sujeito e objeto (BACHELARD, 2003, p.163).

Assim compreendida, a poesia é uma procura que se realiza enquanto procura, é um composto sujeito-objeto resultante do conflito inicial Eu versus Mundo. E como tal, ela se ergue como um produto autônomo, acabado, válido por si mesmo. (SANT’ANNA, 1992, p.195)

A seguir, Procura da Poesia volta a seu paralelismo sob uma prescrição negativa realçando-se a busca do sublime que, nessa poética, pode ser visto como a própria busca da verdade:

Não dramatizes, não invoques,

não indagues. Não percas tempo em mentir.

Não te aborreças.

Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,

vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família

desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Nessa estrofe, Drummond trata da inutilidade do lirismo exacerbado e do uso excessivo da linguagem figurada e rebuscada, que acabam por fenecer com o tempo. Essa posição ecoa na arte poética Poética e Lirismo, de Manuel Bandeira, em que o poeta declara estar farto do lirismo comedido, comportado e de repartição pública, e na poética de Longino, que através de Platão critica o lirismo rebuscado e fútil:

Aqueles, diz ele, que não experimentaram a razão e a virtude, sempre metidos em banquetes e quejando deleites, são puxados por assim dizer, para baixo; por isso vagueiam vida em fora, sem jamais erguerem os olhos para a verdade (...) (PLATÃO in LONGINO, XIII,1).

Longino vai, ainda, além em sua reprimenda à utilização de palavras “ornamentais” para atingir o sublime, pois para ele esse excessivo embelezamento do estilo é o caminho mais curto para o malogro:

(...) nada é grande quando haja grandeza em desprezá-lo; por exemplo, riquezas, honrarias, fama, realeza, tudo mais que apresenta uma exterioridade teatral, ao sensato não pareceriam bens superiores, (...) mais ou menos assim se deve examinar se os passos elevados em verso e prosa não têm uma aparência de uma grandeza semelhante, a que se tenha juntado grande soma de elementos forjados ao acaso, removidos os quais, aliás, eles se revelam ocos, havendo mais nobreza em desprezar do que em admirar. (LONGINO, VII,1)

Nesse direcionamento, não só para Longino e Drummond, como também para Bandeira, o sublime e a grandiosidade não coadunam com os “banquetes” e sim com aqueles que conheceram a razão e a virtude, tendo a capacidade de se desprender de si e de constituir outro corpo, essencial, desvencilhado do acessório, do não-significante, do tumulto confuso. Para Drummond, mais do que a grandiloqüência, a poesia está relacionada à destruição, ao tempo “corrosivo”, a uma consciência espaço-temporal que, segundo Affonso Romano de Sant’Anna (1992, p.144), vinha se dilatando já nos primeiros escritos e que se expande amplamente sobre a cidade, o país, o mundo:

Seus poemas são depositórios vocabulares de um período da História, documento crítico de uma época. Por isso, não há de se estranhar que na expansão da consciência temporal viesse inserido o germe da destruição, que compromete e impulsiona a consciência em trânsito (SANT’ANNA, 1992, p.144).

Drummond, assim como o filósofo alemão Walter Benjamin, toma o propósito de liberar a enorme energia da história confinada no “era uma vez” da narrativa histórica clássica: “(...) a história que mostrava as coisas como elas ‘realmente foram’ revelou-se o narcótico mais forte do nosso século” (BENJAMIN citado em TAUSSIG, 1993, p.15). Esse germe da destruição parece querer levar a palavra à morte, pois como ainda expõe Benjamin, ao falar sobre a alegoria, “um objeto só assume um caráter novo, quando queremos expressar por meio dele não as suas características naturais, mas as que nós por assim dizer lhe atribuímos” (BENJAMIN, 1986, p.36).

Finalizando o primeiro movimento do poema, Drummond continua aludindo a um dos seus repertório mais constantes; ou seja, o desdobramento do seu próprio “eu interior” numa outra pessoa, “tu”; ordenando a esse “tu” que não faça versos sobre ele próprio, sobre a sua própria história ─ “Não recomponhas tua sepultada e merencória infância”─ o que, como já foi visto, aparenta, num primeiro momento, contradizer a sua própria obra (memórias, cotidiano, etc.).

A ênfase histriônica ou fanática no lado misterioso do misterioso não nos leva longe; penetramos no mistério apenas na medida em que reconhecemos no mundo cotidiano, graças àquela ótica dialética que percebe o cotidiano como algo impenetrável e o impenetrável como algo cotidiano. (BENJAMIN,1986,p. 29)

Ainda, segundo Marlene Correia (2002, p.41): “Essa intertextualidade paradoxal e dramática mobiliza a expectativa do leitor, inseguro diante desta ‘pedra no meio do caminho’ entre ele e o poema, que lhe lança o desafio de um entendimento adequado do paradoxo”.

Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.

Não osciles entre o espelho e a

memória em dissipação.

Que se dissipou, não era poesia.

Que se partiu, cristal não era.

Após esse primeiro movimento, na procura pela “verdadeira” poesia, em que trata de alertar para a problemática da suficiência poética em relação aos assuntos a serem abordados e da profunda necessidade do dom, o poeta retorna, num segundo movimento do poema, à sua busca pela poesia, afirmando que o seu traço definidor – a poeticidade propriamente dita – radica no nível material, e sua específica manipulação no “reino das palavras”. Para Correia (2002, p.41) esse procedimento “(...) convence mais eficazmente o leitor, antes submetido à difícil prova da perplexidade, solucionado-lhe o impasse e devolvendo-lhe a distensão”:

Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.

Estão paralisados, mas não há desespero,

há calma e frescura na superfície intacta.

Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Nessa estrofe encontramos um paradoxo, pois se as palavras estão mudas, o poeta está surdo e não há nenhum movimento, como se pode “colher” os poemas que repousam calma e frescamente? Para Antonio Candido (2004, p.92), a solução está na inspiração:

O trabalho necessário a isto é grande parte do que chamamos inspiração. Consiste na capacidade de manipular as palavras neutras, “em estado de dicionário” (que podem servir para compor uma frase técnica, uma indicação prática ou um verso) e quebrar o seu estado de neutralidade pelo discernimento do sentido que adquirem quando combinadas, segundo uma sintaxe especial. Inicialmente, é preciso rejeitar os sistemas convencionais, que limitam e mesmo esterilizam a descoberta dos sentidos possíveis.

De forma semelhante, Longino, na sua busca pelo sublime, concorda que a inspiração é chave para a colheita dos poemas e, portanto, do sublime:

(...) educar as almas em direção ao grande e torná-las prenhes, se pode assim dizer, de uma exaltação genuína. (...) De que maneira dirás? Escrevi em algum lugar: o sublime é o eco da grandeza da alma. Disso decorre que mesmo sem voz seja admirado às vezes o pensamento totalmente nu, em si mesmo, pela própria grandeza da alma (...) (LONGINO, IX, 1 e 2).

Assim, a ligação entre o sublime e a inspiração se apresenta na forma de um eco, pois conforme Pigeaud no prefácio de Do Sublime (LONGINO, 1996, p. 19):

(...) o eco é aquilo que ressoa sem expressão. O sublime pode ser aquilo que não se diz, que não se enuncia, mas que se pode ter contato. Essa admiração bruta é o encontro com o pensamento nu, o pensamento em si mesmo, o grande pensamento. Pode-se ouvi-lo, de alguma forma, ressoar no silêncio. Ele tem força suficiente para se fazer ouvir sem voz, por sua própria grandeza.

O poeta mineiro mostra a importância da imaginação na utilização das palavras em suas relações umas com as outras, a necessidade de se ordenar estruturas e de se associar vocábulos que transformam o lugar-comum em revelação, o que, segundo Candido (2004, p.93), faz com que se perceba que a germinação do poema como um todo é o que guia o leitor nessa aventura órfica:

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.

Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.

Espera que cada um se realize e consume

com seu poder de palavra

e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.

Não colhas no chão o poema que se perdeu.

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.

Ainda, seguindo Candido (2004, p.93):

(...) o poema é, para além das palavras, uma conquista do inexprimível que elas não contêm e diante do qual devem capitular, mas que pode manifestar-se como sugestão misteriosa nas ressonâncias que elas despertam, uma vez combinadas adequadamente; e que, indo perder-se nas áreas de silêncio que as cercam e se insinuam entre elas, são uma propriedade do poema no seu todo. A obsessão mallarmeana da palavra como violação de um estado absoluto, que seria a não-palavra, a página branca, mas que ao mesmo tempo é nosso único recurso para o naufrágio no nada, se insinua neste poema decisivo e explica o recolhimento, a cautela com que o poeta segue na busca do equilíbrio precário e maravilhoso, o arranjo da estrutura poética, que só pode ser obtido ao fim de um empenho de toda a personalidade.

Para fazer frente a toda essa forma (espaço) inexprimível e torná-la definitiva e concentrada, Drummond mais uma vez recorre a um tempo que também não pode ser contabilizado, pois é um tempo de convivência, um tempo de paciência, que encontra eco na arte poética de Horácio, para quem não se deve contrariar Minerva, a deusa da sabedoria: “Se (...) escrever algo, sujeite-o aos ouvidos do crítico Mécio, aos de seu pai e aos meus e retenha-o por oito anos, guardando os pergaminhos; o que você não tiver publicado poderá ser destruído; a palavra lançada não sabe voltar atrás” (HORACIO, 1992, p.67).

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível que lhe deres:

Trouxeste a chave?

No entanto, mesmo com o domínio da paciência, para se obter essa forma no espaço ─ a configuração objetiva que encerra o sentido global também exige que cada palavra seja escolhida, entre tantas outras possibilidades de metáforas ( o poeta tem que se ver frente a frente às mil faces das palavras), e incluída dentro da cadeia sintagmática do poema; numa combinação perfeita entre o dom e a techné:

Como entidades isoladas, as palavras espreitam o poeta e podem armar-lhe tocaias. Ele então as propicia, renunciando ao sentimento bruto, à grafia espontânea da emoção, que arrisca confundi-las num jorro indiscriminado; elas capitulam e deixam-se colher na rede que as organizará na unidade total do poema. Obra difícil, perigosa, pois essa exploração depende da sabedoria do poeta, único juiz no ato de arranjá-las. (CANDIDO, 2004, p. 94).

Essa obra perigosa só pode ter êxito se, como já foi destacado, for usada a chave da inspiração, única possibilidade para se adentrar no reino das palavras e se obter o sublime:

(...) as mais das vezes o pensamento e a linguagem se implicam mutuamente, (...) a escolha dos vocábulos próprios e magníficos maravilha e fascina os ouvintes e constitui a máxima preocupação de todo orador e todo escritor, porque florindo de per si, depara aos discursos, como esculturas belíssimas (...). Realmente a beleza das palavras é a luz do próprio pensamento. (LONGINO, XXX, 1)

Na passagem a seguir, Drummond alerta que a poesia é frágil e relativa, pois as palavras estão prontas a cada instante para escapar ao comando e se recolherem à ausência de significado poético, ao limbo do cotidiano, onde são veículos sem dignidade especial. Também adverte da possibilidade de elas permanecerem no universo inicial do sonho e do inconsciente em que se encontravam, tornando infrutífero o trabalho de colheita do poeta, avaliando-o como quem falhou, como quem não soube dispô-las na unidade expressiva. “O gelo do malogro, na fímbria entre a deliberação e o acaso, passa nos versos finais deste poema, um dos mais admiráveis da literatura contemporânea.” (CANDIDO, 2004, p.94)

Repara:

ermas de melodia e conceito

elas se refugiaram na noite, as palavras.

Ainda úmidas e impregnadas de sono,

rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

Para trazer um pouco de luz aos últimos versos, cabe recorrer novamente à imaginação bachelardina, ao comparar o “rio difícil” à figura de um calabouço: “O calabouço é um pesadelo e o pesadelo é um calabouço” (BACHELARD, 2003, p.172). Ainda, considerando-se a imagem de calabouço e de rios subterrâneos, é fácil imaginar a presença do frio (do gelo, do malogro), que se apresenta como uma das maiores proibições para a produção imaginária em sua busca pelas imagens dos símbolos e das poesias. “Enquanto o calor faz nascer imagens, o frio cadavérico é um obstáculo a elas” (BACHELARD, 2003, ps.204, 207).

Tal dificuldade na busca do sublime se encontra nas duas artes poéticas analisadas: a mesma preocupação que Drummond apresenta em forma de um fio tênue que separa a conquista de um espaço elegantemente preenchido pelas palavras e a frieza de palavras ermas de melodia e conceito pode ser encontrada em Longino:

(...) Difere Cícero de Demóstenes nas passagens grandiosas. Este, com efeito, eleva-se ordinariamente a um sublime alcantilado. Cícero se espalha. O nosso orador (Cícero), visto como, por assim dizer, queima e juntamente despedaça tudo com a sua violência e mais a sua rapidez, o seu arroubo, o seu engenho, pode ser comparado a um tufão ou um raio; Cícero, creio, é como uma queimada alastrada, que grassa por toda parte, devoradora, de fogo abundante e duradouro, sempre a arder, distribuindo aqui e acolá e realimentando espaços (LONGINO, XII,4)

Após essa análise, pode-se afirmar que esse compartilhamento de idéias contidas nas poéticas de Longino e Drummond pode contribuir, sobremaneira, não só para o entendimento da importância da poesia – nos seus aspectos culturais, sociais, e por que não dizer existenciais ─, como também para fazer um alerta aos poetas pós-modernos da fundamental importância da dialética entre o dom e a téchne. Além disso, o estudo realizado pode ainda evidenciar a extrema dificuldade que o poeta encontra ao escrever o poema, seja pela necessidade de tornar o arranjo das palavras sublime, seja para evitar cair no campo do patético ou na “mesmice”.

Enfim, as poéticas de Longino e Drummond parecem trazer em seu cerne a mensagem preconizada por Zaratustra” (NIETZSCHE, s/d, p.49): “Uma nova altivez ensinou-me o meu eu, e eu a ensino aos homens: não mais enfiar a cabeça na areia das coisas celestes, mas sim, trazê-la erguida e livre, uma cabeça terrena, que cria o sentido da terra. (...) Assim falou Zaratustra”.

Luiz Zanotti
Enviado por Luiz Zanotti em 13/02/2010
Código do texto: T2084869
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