A fé é um farol
Quando ocorrem catástrofes na dimensão do terremoto que há pouco mais de uma semana surpreendeu o Haiti, é comum muitas pessoas perderem a fé numa proteção divina. É ainda mais comum muitas delas se sentirem sem rumo e sem prumo em relação ao seu próprio caminhar.
No caso da população do Haiti, considerado o país mais pobre das Américas e um dos mais pobres do mundo, manter acesa qualquer forma de fé neste momento crítico é quase um milagre. Não é para menos: o que pode pensar alguém que, de uma hora para outra, perde tudo em meio ao quase nada em que estava inserido?
Felizmente, entre as imagens que chegaram de lá pelas TVs do mundo todo eu vi a de um grupo de católicos participando de uma missa ao ar livre, cercado de escombros por toda parte. Estes, que certamente têm parentes e amigos entre os mortos e desaparecidos, compartilham do refrão da música “Andar com fé”, de Gilberto Gil. “Andar com fé eu vou que a fé não costuma falhar”... Analiso o “não costuma falhar” como a certeza de que há alguma luz no fim do túnel a apontar outros caminhos melhores do que o que se está seguindo.
Há pouco mais de seis anos escrevi um texto no jornal Tribuna Livre, de Viçosa-MG, sobre o mesmo tema, com a diferença de que na ocasião eu vivia um momento pessoal bastante difícil com o internamento do meu pai numa UTI, em decorrência de uma súbita infecção pulmonar. Era a primeira semana de outubro de 2003; lembro-me que viajei às pressas para Salvador para estar perto dele e da minha família e enviei o texto quatro dias antes dele ser publicado. Eu acreditava que no exato momento em que ele estivesse sendo lido o meu pai já estaria são e salvo. No entanto, ele faleceu um dia antes do jornal circular.
Apesar de toda aquela vivência ser totalmente diferente da tragédia gigantesca que se abateu sobre o Haiti, abalou o chão sob os meus pés. Até então nunca havia perdido alguém tão próximo e tão querido. Sinto-me aliviado por ter a convicção de que já naquele instante tão difícil para todos da minha família a minha fé continuava intacta.
Relendo o texto que escrevi antes da morte do meu pai, posso tranquilamente manter aqui, na íntegra, um trecho em que arrisco a definir o que Gil abordou em sua canção: “andar com fé é estar pronto para se reerguer depois de uma queda, mesmo sabendo que outras virão e que novamente o chão será provisório. Andar com fé é saber que se ganhou mesmo quando todas as fichas acabaram de ser perdidas.”
Também há mais de seis anos eu dizia que fé é uma palavra bem pequena para tão gigantesco significado. Palavra que precede qualquer religião, qualquer crença, qualquer credo. Não é preciso licença de quem quer que seja para tê-la; basta querer tê-la; ela se basta.
O que deve ser uma unanimidade é o mistério da sua aparição! A fé é elástica e toma a forma do corpo inteiro, da alma inteira. O seu conteúdo é que vem de fonte externa. Para inúmeros é consenso chamá-la de Deus, mas muitos preferem identificá-la por outros nomes. Na verdade, esta é a parte que menos importa. Nomes são tão-somente símbolos criados para podermos evocar imagens, conceitos. Mas não são a parte mais importante. Fundamental é o que possamos intuir, sentir, sintetizar, transformar.
Os que têm fé encontram sinais na paciência, recompensas na persistência. Espalhá-la é o mesmo que preparar a terra para a semeadura; é confirmar a promessa de que o trigo colhido se tornará pão sobre as mesas. Em suma: a fé é um farol tanto para o marinheiro da embarcação segura quanto para o náufrago.