As armadilhas da democracia
Muitos dos que mais precisam dos efeitos benéficos de se viver sob um regime democrático são os que menos entendem a essência da democracia. Após quase 25 anos em meio ao totalitarismo e truculência da Ditadura Militar, pessoas ditas “de esquerda” usam de métodos parecidos para defender o que consideram seus direitos e ideais.
A recente invasão do MST (Movimento dos Sem Terra) a uma fazenda de laranjas no interior de São Paulo, deixando no local um rastro de violência e destruição, é um claro exemplo das possíveis armadilhas da democracia. É aquela velha história de “a voz do povo é a voz de Deus” ou “em nome do povo tudo é permitido”.
Talvez a maior dificuldade de se viver numa democracia seja dar a esta palavra um sentido mais amplo, capaz de ultrapassar as fronteiras do seu significado primeiro de “governo do povo”. Num país como o Brasil, em que grande parte da população ainda carece de formação e informação das mais elementares, é difícil acreditar que os governantes escolhidos pela maioria possam realmente conduzir a nação para um real amadurecimento.
Um país é o reflexo do seu povo e um povo para se tornar maduro social e politicamente precisa antes crescer enquanto indivíduo. As pessoas querem um país melhor, uma vida mais digna, porém em suas escolhas individuais seguem, muitas vezes, exatamente o caminho inverso. Quantos não são aqueles que pregam contra os governos estabelecidos – militando até em partidos de esquerda e levantando bandeiras tidas como socialmente corretas – mas que em seu pequeno universo pessoal e profissional se comportam como perfeitos ditadores?
Logo que entrei na faculdade, aos 17 anos, já me causava espanto o comportamento dos estudantes que, no meu entendimento de adolescente, deveriam representar uma espécie de vanguarda cultural e política do país. Ledo engano! No período em que passei pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (1987 a 1990) por várias vezes vi saírem de Salvador representantes do DCE (Diretório Central dos Estudantes) rumo aos congressos da UNE (União Nacional dos Estudantes), normalmente realizados em São Paulo ou no Rio de Janeiro. No primeiro retorno deles pensei de imediato que aqueles muitos braços quebrados e olhos roxos não poderia ser outra coisa senão repressão policial. Que decepção! Eram frutos de verdadeiras guerras travadas entre os partidários do PT e do PC do B para saber quem comandaria a entidade.
Alguém imagina que tenha mudado muito de lá até hoje? Constatar as demagogias, as corrupções, as ideias e ideais antidemocráticos dos velhos políticos já conhecidos e denunciados do Brasil, é chover no molhado. Difícil é engolir o discurso de muitos políticos de esquerda, sindicalistas e estudantes – fragilizados pela falta de coerência de suas ações tão dignas de repúdio quanto às daqueles a quem combatem. Alguns deles, inclusive, não perdem a mania de pautar suas vidas pelo cômodo pensamento maniqueísta. De um lado o bem, do outro o mal; socialismo versus capitalismo; governo versus oposição; Estados Unidos versus resto do mundo, e por aí vai.
A democracia é construída a partir das diferenças, no entanto essas precisam de liberdade para coexistir. Não aquela liberdade nascida de meros interesses individuais, capazes de invadir e ferir a liberdade do outro, mas a que se ergue com base na autocrítica, no respeito e no discurso coerente com a prática. As teorias e práticas típicas de ditaduras surgem de pessoas e entidades tidas como insuspeitas.