O que é Arqueologia?

Por Marcos Pereira Magalhães

Não, a História do Brasil não começa com a conquista das Américas pelos europeus. Nem mesmo com o início da colonização portuguesa. Muito antes disto (na verdade milhares de anos antes) o Brasil já existia, mas como um imenso território sem fronteiras políticas definidas, colonizado por centenas de povos com línguas, etnias e costumes diferentes. Esses povos, de mesma origem genética, mais precisamente, mongolóides provenientes do nordeste asiático, chegaram aqui há mais de 10.000 anos. Dizem até que nem mesmo eles teriam sido os primeiros. Há quem defenda que os primeiros habitantes das terras que hoje conhecemos como Brasil, foram povos pleistocênicos, provenientes do sudeste da Ásia, mas de origem africana. Com isto, é até possível que a história do Brasil tenha começado bem antes da formação do mundo Ocidental e tenha se consolidado quando os povos mongolóides holocênicos, finalmente, substituem os primeiros habitantes negróides e se adaptam à floresta úmida amazônica.

Ficamos sabendo disso tudo porque existe uma ciência, a Arqueologia, que é quem perscruta as entranhas mais profundas do tempo histórico. Graças à Arqueologia ficamos sabendo que todos os continentes americanos, além de terem sido colonizados há muitos milhares de anos atrás, foram ocupados por grandes e importantes civilizações. Civilizações que desenvolveram culturas importantíssimas para a nossa evolução social e que, inclusive no Brasil, prosperaram e alcançaram uma grande população, cujo legado, muitas vezes ignorado, se manifesta na nossa própria identidade nacional.

Ora, o estudo da Arqueologia, assim como o da História, tem como pano de fundo a sucessão temporal. Mas enquanto a História estuda acontecimentos que contam com documentos escritos (e hoje gravados, filmados, digitalizados e etc.), os objetos de pesquisa da arqueologia não necessitam desses tipos de documentos para serem estudados. Por conta disto, diz-se que a História do Brasil começa com a chegada dos portugueses em 1500, porque só a partir de então são produzidos documentos escritos que relatam os acontecimentos históricos a nós relacionados. Daí, tudo que aconteceu aqui antes de 1500 chamamos de Pré-história. A Pré-história brasileira, por sua vez, teve início quando o homem chega aqui, isto por enquanto, uns 50.000 anos atrás. Aliás, aqui como em qualquer outro lugar do planeta, a Pré-história começa quando o Homo sapiens sapiens aparece, fato que só acontece 60 milhões de anos depois dos dinossauros, há 300.000 anos.

Mas veja bem, a subdivisão da História em Pré-história é só uma convenção para melhor situarmos os acontecimentos na linha sucessória do nosso tempo histórico. Na verdade, do mesmo modo que possuímos uma História real que não gerou qualquer documento escrito, a própria arqueologia pode estudar acontecimentos históricos, com documentos escritos e/ou iconográficos, já que possui métodos e técnicas fundamentais para esclarecer dúvidas, cujas soluções não podem ser encontradas contando apenas com esses documentos.

Como conseqüência, os arqueólogos brasileiros trabalham com dois grandes períodos de tempo: o pré-histórico e o histórico. A Arqueologia Pré-histórica, portanto, estuda os acontecimentos anteriores a 1500 e a Arqueologia Histórica, por sua vez, estuda os acontecimentos iniciados a partir de então. Porém, a Arqueologia Histórica pode ser subdividida em Arqueologia do Contato, Arqueologia Colonial, Arqueologia Industrial, Urbana e etc. Na verdade, uma vez que o método arqueológico nos fornece ferramentas para o entendimento de acontecimentos não registrados por documentos escritos, ou seja, exclusivamente históricos, pode-se fazer arqueologia de quase tudo que tenha uma sucessão temporal identificável. Assim, falam também de outras arqueologias mais subjetivas como a Arqueologia do Inconsciente, a Arqueologia do Saber, a do Poder e de outras mais, conforme a imaginação e o discernimento lógico do estudioso.

Segundo já disse, os objetos de estudo da Arqueologia têm como pano de fundo a linha sucessória do tempo. Ou melhor, o que a atividade humana produziu ao longo de sua existência. Isto quer dizer que, seja pré-histórico ou histórico, o tempo humano estudado pela arqueologia está sempre no passado. Não é verdade? Afinal, qualquer dado acontecimento, resultado da ação humana, só pode vir a ser estudado depois de sucedido. Nenhum acontecimento produzido pelo homem pode ser perscrutado antes de acontecer. Isso parece ser muito óbvio e é. Mas aí temos um problema muito sério. Acontece que nenhum instante passado, seja ele de que natureza for, pode ser repetido do mesmo modo no presente. E pior, o presente é apenas uma sucessão de instantes cuja apreensão é o seu congelamento, isto é, uma vez apreendido, deixa de ser presente real para ser um “presente” passado. Um presente contemporâneo são instantes que agora só podem ser vistos no passado.

Isso é fato conhecido desde o início do século passado (o XX), quando Einstein, um físico alemão, mudou o rumo da ciência ao descobrir que o tempo é relativo e que a sua divisão pode ser infinita. Digamos assim: não há instante que não possa ser subdividido em instantes ainda menores, ou multiplicado em outros maiores, também infinitos. Pois bem, menores ou maiores, mas nunca os mesmos porque, por outro lado, eles nunca se repetem. Simplifiquemos com um exemplo: no instante em que escrevo este texto, tudo que escrevo, até cada letra que se sucede antes mesmo de terminar a palavra, já está no passado. Antes de concluir a frase ou, ainda, o pensamento que quero registrar, o próprio registro, enfim, é passado. Contudo, quando a frase ou o pensamento estão concluídos, temos então um resultado que, obviamente, não é o mesmo se comparado com as palavras vistas separadamente. Você pode antever o sentido da mensagem de uma frase antes dela ser concluída, mas não a mensagem em si. Assim, toda vez que paramos para olhar qualquer evento, só podemos vê-lo no passado. E a repetição nunca será do mesmo evento, porque sempre será um outro evento, por mais semelhante que seja, se sucedendo. Resumo da ópera: a Arqueologia estuda o passado, mas o passado estudado não pode retornar no presente. Dilema: se o tempo não pode voltar, isto é, se a Arqueologia não pode retornar à experiência passada, então para que serve a Arqueologia?

Agora vamos a um segundo exemplo. Imaginemos um jogo de futebol, um jogo de arrepiar até os não simpatizantes desse esporte. A decisão entre o Brasil e a Argentina no Campeonato Sul Americano que, além do título, dá direito ao campeão a participar da Copa do Mundo. O jogo é em Buenos Aires. A equipe argentina fez melhor campanha que a brasileira e já entra em campo com o empate a favor. Ao Brasil só resta a vitória. Como se sabe, um jogo de futebol, pelas regras atuais, dura 90 minutos corridos, divididos em dois tempos de 45 min. Desenrolada a partida, cada instante passado não pode voltar atrás. Se o juiz comete um erro, esse erro terá que ser absorvido, não haverá retorno. O tempo vai passando. O primeiro tempo acaba em zero a zero. Mas no segundo tempo, logo aos 6 min., a Argentina faz um gol. A torcida portenha explode em emoção e alegria. Os brasileiros sentem o baque e parecem perdidos em campo. Incentivados pela torcida alucinada a equipe argentina não sai do ataque. O nosso goleiro faz milagres. Já estamos com mais de 80 min. jogados. Numa dessas defesas, o goleiro dá um chutão para frente. A defesa argentina, bastante calma, desdenha, falha e acaba deixando a bola sobrar nos pés de Ronaldinho Gaúcho, que dispara para cima do único zagueiro à sua frente. Zagueiro no chão, goleiro vencido e GOLLLLLLLL.

Os brasileiros pegam a bola no fundo do gol e correm até o centro do gramado para o juiz reiniciar logo a partida. O tempo já avança para os minutos de acréscimos. Depois do susto inicial a torcida adversária logo se recupera. Afinal, o empate dá o título para a Argentina. Ela incentiva, canta e grita vitória. Mas o gol dá novo ânimo aos brasileiros que tomam a bola dos argentinos e atacam em peso. O juiz olha o relógio. Faltam poucos instantes para a Argentina ser campeã e deixar o Brasil, pela primeira vez, fora da Copa. A bola é passada para Ronaldo que dá um passe, recebe de volta, dribla dois zagueiros e chuta uma bola indefensável, no canto à esquerda do goleiro argentino. O estádio desmorona num silêncio ensurdecedor. O juiz corre para o centro do campo apontando não só a validade do gol como o fim do jogo. Brasil campeão. Argentina desclassificada.

Nesse inusitado jogo de futebol citamos uma palavra que fará toda a diferença. É claro que numa partida os instantes se sucedem e não se repetem. Você pode até dividir qualquer um desses instantes em outros infinitos. Mas o caso que uma partida, daí ser uma partida, tem uma duração. Um jogo de futebol só acaba depois de 90 min jogados e o seu resultado só pode ser definido depois do apito final. Quero dizer com isto que toda duração tem início, meio e fim. Daí, mesmo podendo ser divididos até o infinito, os instantes que compõem uma duração podem ter um início e um fim identificável, que caracterizará, objetivamente, a duração de um evento e/ou a de um acontecimento histórico. Além disto, um acontecimento pode ter uma duração tão longa (um período histórico), que embora aconteça em um passado remoto, o seu fim não pode ser identificado no presente, já que pode se prolongar até um futuro imprevisível.

É a duração, portanto, que vai dar à Arqueologia a sua finalidade objetiva. Com a possibilidade de identificar e compreender um acontecimento de longa duração, a Arqueologia pode produzir conhecimento capaz de transformar a realidade. A finalidade da Arqueologia, consequentemente, como a de toda ciência, enfim, é a de produzir conhecimento capaz de transformar uma dada realidade.

O tempo arqueológico não tem apenas duração. Ele também conta com um sentido e uma intensidade. O sentido é fácil de entender, pois tudo na vida tem um sentido, ainda que na maioria dos casos, ignorado. O sentido não é apenas uma questão da direção em que os eventos históricos são direcionados, mas também das características das suas expressões. Você pode entender isso do seguinte modo: o sentido da democracia é a liberdade de escolha e as suas características podem ser resumidas na liberdade de expressão; já o sentido da ditadura é o autoritarismo e as suas características se resumem à falta de liberdade de expressão. A intensidade é um pouco mais complicada, entretanto, o exemplo acima também ajuda. No caso da ditadura, a sua intensidade é fundamental para definir a duração e o grau de influência sobre a sociedade. Quanto mais intensa uma ditadura, maior é a influência sobre a organização social do povo, que fica, praticamente, sem liberdade de escolha e, consequentemente, temporariamente sem influência sobre os rumos da história.

Resumindo, a Arqueologia é a ciência que perscruta o passado para identificar a intensidade, o sentido e a duração de um acontecimento, capaz de transformar uma realidade histórica presente.

A arqueologia faz isso através dos seus objetos de estudo. Os objetos de estudo dela são a cultura material (objetos, ferramentas, utensílios e estruturas) produzida pelo homem, os vestígios da ação humana sobre a natureza (represas, aterros, seleção e concentrações de plantas e animais) e as expressões simbólicas sem sintagma (gravuras e pinturas rupestres, motivos decorativos em superfície de cerâmicas, tecidos e outros materiais) deixadas também pelo ser humano. A evolução e os modos de expressão desses objetos é que revelavam a existência e as características de um acontecimento histórico de longa duração.

A cultura humana, desde a mais remota idade produziu uma quantidade enorme de restos materiais e de evidências. Entretanto, da Pré-história, só os mais resistentes às intempéries e aos diversos outros agentes destrutivos (químicos, físicos, bacteriológicos e etc.) restaram para serem estudados. Esses restos, geralmente caracterizados por lascas líticas (rochas diversas), fragmentos de cerâmica, eventuais restos alimentares como conchas e carapaças, escamas e espinhas de peixes, ossos e sementes queimadas, e ossos humanos resultado de enterramentos organizados e, eventualmente, até tecidos, se apresentam concentrados no solo de um terreno, ao qual chamamos de sítio arqueológico.

Existem diversos tipos de sítios arqueológicos, que são o resultado dos diversos modos possíveis que o homem pode se organizar em sociedade e explorar os recursos naturais. Além disso, os tipos de sítios também são o resultado da evolução social alcançada em determinada época e lugar, pelo homem. Assim, temos os sítios em grutas e abrigos rochosos; sítios em aterros artificiais como os sambaquis marinhos e fluviais, que são o resultado da concentração de material conchífero descartado pelo homem, ou do aterramento deliberado para tornar o local mais alto, como nos próprios sambaquis, mas principalmente, nos tesos habitacionais e cemitério da ilha de Marajó. Temos, ainda, os sítios de terra preta, geralmente resultado do acúmulo de restos orgânicos (alimentares ou não) produzidos pelos habitantes de antigas aldeias. Mais difíceis de serem achados por serem muito pequenos, temos sítios relacionados às estações de caça e oficinas de trabalho (extração e ou lascamento de rochas e cristais de rocha) e etc. Há, por fim, um outro tipo de sítio que é identificado pela interferência na paisagem ou na gravação e pintura de paredes rochosas e rochas isolados.

Os sítios podem ser encontrados no litoral, nas margens dos rios, no alto de serras, no sertão e nas florestas. Isso mostra apenas a capacidade de adaptação do homem que, por outro lado, sempre escolhia locais estratégicos, seguros, confortáveis e próximos aos recursos naturais disponíveis à fontes ou cursos d’água. Ao longo do tempo, um mesmo sítio podia ser ocupado por diversos povos diferentes, com etnia, cultura e tecnologia também diferentes (do mesmo modo que um povo da mesma etnia podia evoluir cultural, técnica e politicamente no mesmo local).

É a escavação que permite aos arqueólogos saberem como foi que a deposição do refugo arqueológico se formou. Por ser muito importante, o procedimento de escavação exige técnicas de controle precisas e confiáveis. Antes de mais nada é preciso fazer o levantamento topográfico de toda a área do sítio. Auxiliado por mapas e com a curva de nível, o arqueólogo analisa o contexto paisagístico e subdivide o sítio em quadrículas. Essas quadrículas permitem ao arqueólogo definir os locais a serem escavados e permitem que ele saiba o local exato de onde saiu o material coletado durante a escavação.

A escavação é feita observando a estratigrafia natural do solo, já que a estratigrafia é um dos principais meios de datação disponíveis. A superposição das camadas estratigráficas indica que a formação delas foi em épocas diferentes. Assim, qualquer material obtido de uma camada estratigráfica bem definida será, naturalmente, mais antigo do que aqueles obtidos em camadas situadas acima e mais recente do que aqueles obtidos das camadas situadas abaixo dessa. Mas há complicadores. Interferências diversas podem fazer com que o material deixado em certa estratigrafia acabe migrando para uma outra, mais antiga ou mais recente. Daí, o arqueólogo contar, também, com métodos físicos e químicos para fazer datações, dos quais o mais conhecido é o carbono 14. Todo ser vivo absorve carbono radioativo através da alimentação e da respiração. Quando ele morre começa a emitir, regularmente, a radiação desse carbono. Como ela pode ser contada e se conhece o tempo relativo necessário para a diminuição da radiação, é possível saber a idade aproximada da matéria em análise (madeiras, cochas e ossos, especialmente se estiverem queimados).

Até onde sabemos, o Homo sapiens sapiens chegou na Amazônia há 11.000 anos. Pode ser que tenha chegado antes, mas ainda não temos evidências. Nessa época o mundo se encontrava no final do Pleistoceno e início do Holoceno, quando importantes mudanças climáticas esquentaram o clima do planeta, aumentando a precipitação de chuvas e o nível do mar, por conta do derretimento de geleiras. A floresta Amazônica já estava constituída, mas com o favorecimento climático pode se consolidar em termos de expansão e diversidade. O homem chega em pequenos grupos de caçadores-coletores, atrás de caça, pesca e da coleta de frutos, castanhas, tubérculos, raízes, plantas medicinais e alucinógenas.

Com o tempo, esses caçadores-coletores constituem sociedades perfeitamente adaptadas aos recursos naturais disponíveis na floresta úmida, desenvolvendo costumes e hábitos que se tornaram tradicionais. Eles moravam em grutas e em pequenos acampamentos próximos a cursos d’água. Geralmente não ficavam muito tempo, já que dependiam da disponibilidade sazonal dos recursos naturais. Entretanto, ao mesmo tempo em que iam explorando a natureza, iam compreendendo seus regimes e potencialidades. Por isso, desde muito cedo, o homem foi interferindo na paisagem. Ao selecionar e privilegiar espécies em detrimento de outras, eles acabaram por reformular a paisagem, interferindo na própria formação das florestas, dos campos e dos serrados amazônicos. Por isso, em áreas onde se encontram vestígios de ocupação humana, por mais antiga que seja, a paisagem encontrada é mais cultural do que natural.

Além de ter exercido importante papel na consolidação de alguns dos ecossistemas amazônicos, os caçadores-coletores foram os pioneiros na domesticação de algumas plantas, que se tornaram fundamentais para o regime alimentar das populações nativas antigas e, inclusive, de populações que povoam as comunidades atuais. Foram eles que formaram as bases das sociedades agricultoras posteriores, uma vez que ao longo dos milhares de anos que percorreram os diversos rincões da Amazônia, conheceram, interferiram e desenvolveram uma sociedade cultural e politicamente adaptada à diversidade da floresta úmida.

Com o cultivo regular de certas plantas na Amazônia, especialmente de tubérculos e raízes, mais o desenvolvimento da tecnologia necessária para o processamento de algumas delas, como o da mandioca brava, as antigas sociedades de caçadores-coletores são substituídas por sociedades agrícolas. Não sabemos ao certo quando isso aconteceu, embora haja indícios de que tenha ocorrido a partir de uns 5.000 mil anos atrás. Por outro lado, certas tecnologias como a da fabricação de cerâmica, apesar de ter se aperfeiçoado, popularizado e se tornado um ícone das civilizações agrícolas posteriores, na verdade teria sido inventada por caçadores-coletores ancestrais, uns 2.000 a 3.000 anos antes delas (as sociedades agrícolas) virem a se desenvolver.

Com a ascensão das sociedades agrícolas, não são só os modos e os meios de exploração dos recursos naturais que mudam. A mentalidade, necessária para a ação em larga escala e consciente na natureza, implica em uma outra percepção de mundo. Há uma alteração cognitiva nos antigos caçadores-coletores, que se tornam agricultores sem precisar ter que inventar nada que já não tivessem inventado. Talvez isso tenha sido o resultado, em algum momento, do direcionamento das experiências e tecnologias existentes para a satisfação das novas necessidades que elas geravam. O resultado das novas necessidades foi a reorganização cultural e política das sociedades, sendo uma dessas necessidades, provavelmente, a subsistência e a satisfação de uma população comunitária muito maior, com laços familiares e comerciais com outras do mesmo porte.

Foi assim que as populações nativas da Amazônia antiga passam a se constituir em sociedades agricultoras. Essas sociedades se organizavam em aldeias, algumas eram sedentárias e outras não, mas sempre mantendo elos familiares, culturais, comerciais e políticos entre si. Algumas delas apresentavam origem étnica distinta, outras, além disso, expressões culturais diferentes. Entretanto, como elas tinham tido as mesmas origens culturais, ou seja, como foram o resultado da transformação de antigas sociedades de caçadores-coletores, com milhares de anos de adaptação bem sucedida à Amazônia, logo compartilhavam de uma mesma noção comum cultural, sedimentada na floresta úmida.

Chamamos essa noção comum de cultura neotropical. Demos esse nome ao conjunto das sociedades agricultoras da Amazônia porque, além das suas características formativas estarem pré-figuradas em sociedades de caçadores-coletores tropicais ancestrais, sua generalização, numa região geograficamente definida, representa um processo civilizador. Por isso que a cultura neotropical abrange não só as pequenas sociedades agricultoras semi-sedentárias ,como, inclusive, aquelas que desenvolveram grandes aldeias sedentárias, elaboraram rituais complexos em torno dos quais eram produzidos grandes quantidades de aparatos materiais, como, urnas funerárias, imagens etc.

O processo civilizador da cultura neotropical deu origem a civilizações que sustentaram grandes populações, que construíram aterros artificiais, onde moraram e enterraram seus mortos, tal como fizeram os Marajoaras e a outras que não construíram aterros, mas que tinham uma arte cerâmica muito refinada, aldeias muito extensas com inúmeras ramificações para o interior e que ocuparam grandes extensões territoriais, como os Tapajós. Eles praticavam o comércio de escambo, tinham rixas e alianças políticas, mas as fronteiras eram abertas, a mobilização da população era acentuada e as lideranças centrais eram, facilmente, suplantadas por líderes carismáticos e mesmo por tradições populares.

A cultura neotropical teve fim com a conquista européia. Ao darem início à colonização, os portugueses introduziram um novo processo civilizador, desarticulando completamente as antigas civilizações amazônicas. As populações nativas assediadas por sacerdotes ávidos por almas inocentes e comerciantes de escravos, abandonam seus antigos territórios. Muitos são capturados, outros sobrevivem organizando-se em aldeias menores e até multiétnicas, porém, sempre mantendo o básico da cultura neotropical em seus sistemas culturais e sociais. Por fim, nem mesmo essas populações resistem ao avanço da colonização portuguesa, muito menos ao avanço da nova civilização inaugurada por esta colonização: a civilização brasileira.

A colonização da Amazônia pelos portugueses foi um pouco tardia em relação ao restante do Brasil. Entretanto, ela foi antecipada não só pelos exploradores das “drogas do sertão” como, principalmente, pelos caçadores de índios, para fazê-los fiéis e/ou escravos. Foi Marquês de Pombal, ministro da coroa portuguesa da segunda metade do século XVIII, que reformula a política portuguesa para a região, implantando, de fato, a colonização na Amazônia. Com isso teve início a exploração sistemática das terras despovoadas, especialmente daquelas próximas aos centros urbanos em formação. Na região foi implantada a indústria açucareira, com mão-de-obra escrava negra. Essa indústria teve um relativo sucesso, especialmente no início. Porém, por ameaçar, seriamente, a hegemonia nordestina na produção de açúcar e pelo maior peso político do Nordeste junto ao governo colonial, ela vai entrando, gradativamente, em decadência. Entretanto, as sedes das fazendas, com seus engenhos movidos à maré, suas Casas Grandes e, principalmente, com sua população negra e mestiça, acabam por se tornar núcleos de geração de muitas das comunidades tradicionais atuais.

A exploração da castanha e, em especial, a do látex, por outro lado, interioriza a colonização, agora brasileira, reanimando uma gente temporariamente esquecida pela economia colonial portuguesa. Ou seja, índios “civilizados” e caboclos (mestiços de índios com brancos) encontram uma oportunidade para se expandirem populacional, cultural e politicamente. Enquanto isso os antigos remanescentes indígenas, heróicos herdeiros da cultura neotropical, são confinados em reservas e, definitivamente, desarticulados econômica e politicamente.

Neste resumo da nossa formação sociocultural, percebe-se que a Arqueologia e a História podem se confundir, tão próximo são os objetos estudados. O que as diferenciam são os métodos empregados. Entretanto, não é só com a História que a Arqueologia conta para solucionar os problemas que se apresentam. A Antropologia, a Genética, a Geologia, a Ecologia e muitas outras, dependendo da questão levantada, são disciplinas que podem auxiliar, efetivamente, os procedimentos de pesquisa da Arqueologia. Como a recíproca é verdadeira, isto é, a Arqueologia também pode ser imprescindível para diversas outras disciplinas, concluímos que o conhecimento, na verdade, faz-se pelo somatório de todos os saberes que podemos alcançar, descobrir, construir e refazer.

Enfim, a Arqueologia é uma ciência que, longe de se preocupar em recuperar e/ou resgatar dados ou acontecimentos passados, apreende o evento que, apesar de ter tido origem no passado, pode solucionar problemas que grassam no presente e comprometem o futuro não só da história como, até mesmo, o de um processo civilizador.

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Onna Agaia
Enviado por Onna Agaia em 02/06/2009
Reeditado em 02/06/2009
Código do texto: T1628429