As benesses da anticivilização
Na visão do filósofo inglês Thomaz Hobbes, o ser humano não nasce com o instinto de sociabilidade. Por isto, sem a existência de uma sociedade política organizada, sua tendência é lutar pela própria sobrevivência com todas as armas. Por este prisma, o outro é sempre um obstáculo aos interesses individuais e a discórdia, uma forma de resolver os impasses.
Esse pensador empirista nascido no século 16 conseguiu influenciar governos e Constituições exatamente por defender o Estado como o único meio de socializar os instintos primitivos da humanidade. Sua frase célebre – “o homem é o lobo do homem” – é até hoje debatida com grande atualidade, principalmente porque ninguém ainda conseguiu refutá-la, por mais que haja bons exemplos contrários.
Revendo recentemente o ótimo filme “A Vila”, do diretor indiano M. Night Shyamalan, é possível entender os motivos que levaram os fundadores do vilarejo fictício a criar um mundo à parte para as futuras gerações. O filme, de 2004, é inserido no gênero “suspense” por conta de sua história central em torno de uma lenda sobre criaturas aterradoras que vivem na floresta. Estas são o empecilho para que os moradores cultivem o desejo de deixar o único lugar que conhecem.
Longe de quaisquer tecnologias do mundo exterior, as pessoas da vila descrita por Shyamalan (o mesmo diretor de “O Sexto Sentido”, “Corpo Fechado” e “Sinais”) vivem em regime comunitário, numa agricultura de subsistência e sem o dinheiro como referência. Uma tentativa de fuga da fatídica constatação de Hobbes a partir de uma organização social teoricamente sob controle (no caso do filme, pelo Conselho de Ansiãos). A condição aí para não ser o lobo do outro é manter a comunidade num certo espírito de inocência e com medo do que ela supõe ser mais forte (as criaturas da floresta).
No século 21, mesmo os vilarejos recônditos e sem qualquer tecnologia ainda existentes em algumas partes do planeta não conseguem fugir, por exemplo, da intromissão dos satélites das nações desenvolvidas. Também já ficou para trás a época em que morar na zona rural era sinônimo de tranquilidade. Além dos bandidos que invadem sítios e fazendas para roubar, em muitos deles o cotidiano de misérias e tragédias bate à porteira através da TV e até da internet.
Trilhamos um caminho sem volta no que diz respeito ao megacontato entre as pessoas. Ainda que de forma virtual e à distância, nunca foi tão fácil para o homem ser o lobo do homem. Quanto ao Estado, que Thomaz Hobbes via como o único capaz de controlar a barbárie, há muito se comporta como um lobo contratado para tomar conta do galinheiro. Nesta metáfora popular cabem perfeitamente os políticos e servidores corruptos, os administradores desonestos e burocratas, os carreiristas sedentos por riqueza e poder.
Por mais otimista que alguém seja, torna-se cada vez mais difícil negar a afirmação feita pelo filósofo inglês há mais de três séculos. O mesmo vale para quem tenta encontrar as possíveis veredas que ainda possam levar à anticivilização e suas benesses. Para não ser tão fatalista deixo para um conterrâneo – o cantor e compositor baiano Moraes Moreira – a árdua tarefa de apontar alguma luz no fim do túnel. No refrão da música “Pão e Poesia” ele ensina: “felicidade é uma cidade pequenina, é uma casinha, é uma colina, qualquer lugar que se ilumina quando a gente quer amar”.