Depois do fundo do poço
Quando se chega ao fundo do poço só há duas alternativas: ficar lá de vez ou encontrar alguma maneira de sair dele. A máxima, bastante óbvia até, vale tanto para o poço individual quanto para o coletivo.
Não sei bem se já dá para chamar a atual crise mundial econômica de fundo do poço, uma vez que é consenso de que ela ainda está em curso. De qualquer forma, mesmo que se aprofunde e fique bem mais grave, dá para dizer que esta crise é, no mínimo, uma queda livre rumo ao fundo do poço.
Além dos números negativos da economia em todo o planeta e do exército de desempregados que se avoluma em cada país (quem diria que veríamos acampamentos de sem-teto, oriundos da classe média nos Estados Unidos!), há uma onda crescente de pessimismo. Este, mais abstrato do que real, é como um vírus que afeta o ânimo, a vontade de deixar a escuridão do poço rumo à luz do Sol.
Nos últimos meses há momentos em que me vejo contaminado por esse vírus. Fito o horizonte, mas meu olhar parece só alcançar alguns poucos metros. Nestas horas pessoas da minha idade, que já podem olhar para trás em blocos de décadas, costumam ser assaltadas por ondas de saudosismo. Saudade de uma época em que tudo parecia caminhar mais devagar: o relógio, o tempo de escola, a passagem da infância para a adolescência, desta para a vida adulta; época em que o mundo parecia ser bem maior, em que as notícias ruins demoravam a chegar e a nos afetar...
Assim que a virose do pessimismo arrefece chamo a minha razão e volto a olhar para o presente. Aí me vem à mente aquela frase dita no final da década de 70 pelo beatle John Lennon: “pense globalmente e aja localmente”. Inserido no rol daqueles que tinham uma visão da realidade bem à frente de seu tempo, Lennon enxergava soluções simples para problemas tidos como complexos pela sociedade e por governantes, aos quais sempre incomodou com suas canções de letras críticas e com declarações bombásticas.
Essa frase traz embutida toda uma carga política, social e cultural. Carga esta que alimenta todos aqueles que resolveram parar de esperar tudo dos poderes constituídos e começaram a assumir sua parcela de responsabilidade na construção de um mundo melhor. Pessoas que iniciaram esta mudança com uma revolução individual, buscando qualidade de vida desde a escolha de uma alimentação mais saudável até a busca de satisfação plena no trabalho e nos relacionamentos.
Dessa revolução silenciosa surge um ser humano mais maduro, que anseia recuperar exatamente a sua humanidade perdida. Alguém que tenta superar a doença da ganância e do individualismo; que entende o próprio bem estar como parte inseparável do bem estar do restante do planeta; que deseja de verdade fazer algo de concreto por isto. A atual crise econômica é uma crise do capitalismo selvagem, da ganância de alguns que desejam ficar com tudo, em detrimento de bilhões de semelhantes que morrem de fome, de sede e de doenças perfeitamente curáveis.
É nas organizações não governamentais (ONGs), nas associações de bairro, nos movimentos de cunho religioso onde mais vejo os que resolveram descruzar os braços. Normalmente fazem parte deles indivíduos que se reúnem em torno de um mesmo ideal e fazem o melhor que podem em algum lugar do globo. Geralmente agem nas cidades onde moram, atuando em áreas específicas, como educação, saúde, cultura, meio ambiente.
É angustiante assistir pela TV aos entraves existentes do outro lado do mundo sem poder fazer nada para resolvê-los. E esta angústia pode facilmente se transformar em estresse e depressão – males que não param de crescer, embalados por uma sociedade que se espelha no frio funcionamento das máquinas que criou.
Nossas limitações são bastante evidentes. Não somos oniscientes, onipresentes ou onipotentes. Podemos, no entanto, conhecer de perto os problemas que afligem a nossa rua, nosso bairro, nossa cidade e estar presentes e atuantes para resolvê-los, sem prejuízo de nossas vidas particulares. É fácil usar a velha máxima de que já se pagam impostos para que os administradores públicos resolvam as pendências sociais. Sair do fundo do poço começa sempre com a decisão de que se quer realmente deixá-lo.