Causalidade e acidentes de Aristóteles a Espinosa

A maioria dos grandes filósofos da humanidade tratou da causalidade como um de seus temas. Desde Tales de Mileto até os filósofos contemporâneos, passando por todos, inclusive os escolásticos da idade média.

AS CAUSAS SEGUNDA ARISTÓTELES

A concepção de Aristóteles, visava explicar a natureza e portanto preocupava-se com observar aquilo que existia no seu sentido mais completo. Certo evento deveria possuir quatro diferentes causas que seriam:

CAUSA FINAL O evento causado ocorre por certa finalidade que aqui se chamará de finalidade causadora. É fácil entender que objetos e ações intencionais possuam finalidade, mas é difícil entender a finalidade de todas as coisas. Nem tudo parece ter um propósito. Por exemplo: qual é o propósito (finalidade) de um acidente? Acidentes por definição são “eventos” que não eram esperados e portanto parecem não possuir finalidade.

Retorne-se ao texto acima: Acidentes são eventos? Não! Acidentes são processos e são compostos de uma série de eventos encadeados. Acidentes podem não possuir finalidade, mas os eventos que os constituem podem possuir, veja-se o seguintes exemplo:

A finalidade das Inundações é conduzir uma massa de água ocupando menor área possível nas condições geográficas reais. Inundações serão chamadas de acidentes se ocorrerem onde possam produzir danos e/ou forem indesejadas. Em outras palavras a causa final das inundações é a mesma causa final da correnteza fluvial.

CAUSA EFICIENTE. O evento causado ocorre de certo modo que aqui se chamará modalidade causadora. Por exemplo: as inundações ocorrem por meio de transbordamento da água para áreas fora do leito fluvial menor.

A causa eficiente pode aceitar níveis diferentes de detalhamento, ou seja, pode-se explicá-la de maneira mais ou menos detalhada, veja-se:

A causa eficiente da inundação pode ser o transbordamento de águas fluviais para além do leito menor do rio derivado de pluviosidade excessiva e agravado pela impermeabilização do solo antropizado na área da bacia hidrográfica.

O grau de detalhamento da causa eficiente pode variar entre analistas e é certamente um aspecto subjetivo no estudo das causas.

CAUSA FORMAL. O evento causado ocorre com característica tal que aqui se chamará caráter causador. Por exemplo: uma inundação pode possuir características de enxurrada, alagamento, inundação de alta energia cinética, inundação de alta capacidade de transporte de sólidos, etc.

As causas formais (também chamadas de causas motoras) utilizadas na concepção aristotélica definem a forma do evento causado, note que neste caso, não é obrigatória a precedência temporal do evento causador em relação ao evento causado. Na verdade, este conceito aristotélico de causalidade é anterior a busca pela origem temporal das coisas.

CAUSA MATERIAL. O evento causado ocorre por ser feito de certo tipo de material que aqui se chamará de matéria causadora. Por exemplo, inundações podem ser de água, resíduos industriais, lama, etc..

A causa material dos acidentes é o conjunto de materiais envolvidos no acidente, ou seja, um acidente de avião só pode ocorrer se houver um avião envolvido no acidente, mas em casos específicos, podem haver outras causas materiais ligadas ao eventos, que seriam por exemplo: a pista, chuvas, outro avião, etc..

CAUSAS ARISTOTÉLICAS E O MUNDO CONTEMPORÂNEO

No universo científico atual, muito já se modificou sobre a concepção aristotélica de causas. As aitias de aristóteles podem ser consideradas como ancestrais das modernas teorias causais, contudo seu valor ainda pode ser percebido, mesmo na sociedade moderna.

Note que ainda hoje, os aspectos avaliados numa típica investigação de acidentes são quase as mesmas que Aristóteles propunha, ou seja:

Porque este acidente aconteceu? (causa final)

Como este acidente aconteceu? (causa eficiente)

Do que se compõe este acidente? (causa material)

Como se comportou este acidente? (causa formal)

As noções causais tornaram-se diversificadas e mais complexas, contudo Aristóteles ainda é seu inventor formal. Note que não foi o primeiro a se perguntar sobre a causa das coisas. Antes dele, Tales de Mileto já havia feito esta indagação, mas não foi tão bem sucedido em suas conclusões.

ALGUNS FILÓSOFOS MEDIEVAIS E A CAUSALIDADE COMO MORAL

Santo Agostinho foi inicialmente um Neo-platônico que acreditava na solução das coisas pela solução de princípios opostos. Um modelo racional parecido com a dialética de Sócrates e Platão, contudo sua maior contribuição ao estudo de causalidade foi trazer para o mundo cristão o conceito moral de essência das coisas. Para Agostinho, a luz que clareava o corpo era um ente físico tão palpável como a iluminação que esclarecia a alma. Na verdade, este conceito já era pensado mesmo antes de Aristóteles e sua teoria das causas, quando Parmênides, que acreditava na essência imutável das coisas discutia com Heráclito, que não acreditava nesta essência.

Agostinho acredita em uma essência divina para todas as coisas e que o mal é a privação de Deus. Em Agostinho, a noção de causa imiscui-se na discussão da origem das coisas e Deus é ao mesmo tempo origem e causa.

Muito tempo depois, por volta de 1150 D. C., Maimônides, um dos mais importantes filósofos do judaísmo, parece concordar com Agostinho quando propõe que o mau é causado pela ausência de Deus. Quase ao mesmo Ibn Rushd (Averróes), um dos mais importantes filósofos do islã propõe que o destino não rege todas as coisas e que o homem não tem completo controle sobre o seu destino. Note que estes filósofos, apresentam a causalidade como força motriz para a busca de Deus, mas ainda não apresentam uma estrutura lógica que tente acalmar o desconforto de nada sabermos sobre as causas do universo e nem sobre os destinos deste mesmo universo.

Ainda no espectro dos filósofos religiosos, encontra-se Tomás de Aquino que por volta de 1250 D.C. formula a teoria da causa primeira, demonstrando que a todo evento causado, corresponde um evento causador numa sucessão em direção ao passado. Na origem dos eventos causadores estaria Deus. Tomás de Aquilo foi o inventor da noção de encadeamento causal com limitações.

FILÓSOFOS ESCOLÁSTICOS E O MUNDO CONTEMPORÂNEO

O mundo contemporâneo parece ainda mais distante da escolástica, do que estava em relação aos filósofos gregos e parece tentador simplesmente ignorar a influência de Agostinho ou Tomás de Aquino sobre o mundo moderno. No que se refere as causas e efeitos, sobretudo quando se reconhece a importância da ciência, que se opõe a religiosidade como principio motor. A honestidade intelectual não permite que se ignore a contribuição dos escolásticos ao mundo moderno.

Uma das contribuições da duradoura da filosofia escolástica para a ciência dos nossos dias situa-se na busca da perfeição da natureza (Deus) em oposição a falibilidade humana.

Em outras palavras, durante o período da escolástica, as pessoas olhavam o céu e buscavam harmonia e precisão no movimento das estrelas. Viam o mesmo nas marés e em toda a natureza. Isto tudo vinha de Deus e se opunha as paixões e pecados dos seres humanos.

Ainda hoje, muitos acreditam no comportamento perfeito da natureza, que pode ser sempre previsto por meio de equações determinísticas e que toda a imperfeição é introduzida pela ação antrópica.

No mundo moderno, a ciência já não necessita de Deus como causa primeira, conforme afirmava Tomás de Aquino ou como origem das coisas, mas conserva ainda a noção Agostiniana de perfeição da natureza.

Se por um lado, o Deus "Causa primeira" de Tomás de Aquino já não pode ser aceito, ainda assim a noção de uma linha de interrupção na estrutura causal do universo é uma imagem recorrente, que aparece em postulados e teorias tais como o Big bang - o que havia antes do big bang? - nada! este evento é uma interrupção no encadeamento causal em direção ao passado, é algo muito parecido com o Deus "Causa primeira" de Tomás de Aquino, ou seja, tudo o que existe no universo tem sua origem no Big Bang e nada havia antes dele - trocando a expressão Big Bang por Deus, chega-se a Tomás de Aquino.

AS CAUSAS DE UM MUNDO REDONDO

Pouco depois de São Tomás, um outro religioso percebe que a natureza (ou Deus) ainda que possua o atributo da perfeição deve ser observada de por seres imperfeitos, ou seja, por nós. O padre Guilherme de Occam busca então uma definição de perfeição que combine com a busca de Deus e estamenta o princípio da parcimônia ontológica “pluralitas non est ponenda sine neccesitate” Não acrescente coisas sem necessidade.

Este conceito é ainda hoje um dos pilares da ciência e apresenta a crença de que a natureza (de Deus ou não) é simples e que as complexidades são falhas de raciocínio daqueles que a observam.

Se antes da navalha de occam acreditava-se que a Natureza era perfeita e que, portanto todas as causas naturais poderiam ser conhecidas, depois de Occam, passamos a ter uma definição de perfeição.

A perfeição era (e talvez ainda seja) a simplicidade.

Pouco depois da descoberta do mundo novo, uma Inglaterra protestante sob o reinado de Elisabete I seguida por Jaime I, conhece o pragmático Visconde de S. Albano, Lord Fracis Bacon. Bacon era um político importante que chegou a ser condenado por corrupção, mas foi perdoado pelo rei. Pois é! não adianta dizer que o mundo da política de hoje está perdido. Ele sempre esteve perdido

Nos estudos de Bacon, encontra-se a recuperação dos princípios aristotélicos de causalidade. A ciência da Natureza, que é chamada por Bacon de filosofia natural, divide-se em física especial que busca as causas eficiente e material das coisas e metafísica que busca as causas final e formal.

Bacon propõe um método de investigação experimental para a busca das causas e define que a experiência e observação através do raciocínio intuitivo explicam melhor os fenômenos causais que a contemplação Aristotélica ou Agostiniana.

Nesta mesma época Galileu, que tambem acreditava na experiência ao invés da contemplação, estudava experimentalmente a velocidade de queda livre dos corpos. Mostrou em seus experimentos que a contemplação de Aristóteles enganou-se ao atribuir relações causais entre os pesos dos corpos e suas velocidades de queda.

Contrariamente a Bacon e Galileu, uma outra face da causalidade renascentista vem do francês René Descartes que afirma que o mundo pode e deve ser compreendido pelo pensamento, através de formas educadas de pensar. Descartes divide o saber entre res-extensa (o que existe) res-cogintans (o que pensamos) e res-infinita (Deus) e para iniciar a abordagem daquilo que existe através do pensamento é preciso encontrar o elo de ligação entre o subjetivo e o objetivo, ou seja, as causas das coisas são reais (objetivas, perfeitas) mas nossos pensamentos são irreais (subjetivos, imperfeitos) é preciso buscar o certo partindo-se do incerto (ceticismo metodológico). Tudo é mentira até que se possa demonstrar o contrário ou que se torne impossível negar. “cogito ergo sum”.

Descartes elabora uma demonstração epistemológica da existência de Deus através da causalidade e a partir daí a ciência perde a necessidade de buscar as causas finais e deve concentrar-se nas causas formais, materiais e eficientes.

Talvez seja Espinosa o mais radical dos filósofos deterministas. Para ele, os acontecimentos acontecem por serem necessários. Cada acontecimento é pré-existente a si próprio na medida em que torna-se necessário antes de acontecer.

Note que Espinosa não apresenta o destino como coisa, ou seja, Espinosa não pensa que existam elementos previamente planejados, que são seguidos por tudo que existe no universo, pelo contrário, Espinosa é cético com relação a existência de Deus (o grande planejador), mas propõe que um evento desencadeado em um passado distante, iniciou uma seqüência causal que persiste até hoje, que é inexorável mas não segue necessariamente à um plano.

Tudo aquilo que está ocorrendo hoje determina que outras coisas aconteçam no futuro numa seqüência inexorável. Mesmo as nossas decisões são ilusórias, pois só podem ser tomadas com base no nosso passado, ou seja, cada uma de nossas decisões depende do que sabemos, do que sentimos e de como estamos no momento atual, ou seja. Nossas decisões de hoje são inexoravelmente escolhidas pelas nossas decisões do passado. O livre arbítrio é mera ilusão.

No próximo texto, pretendo examinar as implicações do pensamento causal destes três filósofos sobre o mundo moderno e quem sabe, se sobrar algum tempo tratar de Newton.