O cânone como resolução de problemas.
Muito se tem discutido em torno da questão do cânone literário, ou seja, do conjunto de obras, e seus autores, materializadas numa lista, que em determinado momento são vistas como “grandes”, “geniais” e intemporais, bem como produtoras/reprodutoras de valores, normalmente ditos universais, sendo por isso dignas de estudo e transmissão às futuras gerações. No centro das discussões em questão têm estado os processos de selecção que determinam quais as obras que são incluídas e excluídas, bem como os critérios que orientam essa selecção. Assim, o objectivo deste artigo será tentar compreender em que medida o cânone pode, ou não, ser a solução para os problemas que têm girado à sua volta. Para melhor atingir esse objectivo, tentarei, de forma resumida, explicar a evolução histórica do conceito e as principais problemáticas que o têm rodeado, tentando depois perceber, tal como referi, de que forma pode o mesmo ser visto, ou não, como resolução para os problemas que tem enfrentado.
Com a institucionalização social do cânone, que ocorreu no século XIX, primeiro à margem das universidades que privilegiavam o estudo dos clássicos da Antiguidade Greco-Latina canonizados por séculos de imitação e interpretação, e depois, já no começo do século XX, no meio académico onde se concretizava através de listas de textos a serem lidos e interpretados pelos alunos, bem como com a generalização da escolaridade obrigatória nas sociedades ocidentais, que fez com que a escola passasse a funcionar como um factor importante de fixação e transmissão de cânones, o cânone foi assumindo uma visibilidade crítica cada vez maior, que culminou, mais recentemente, com a sua ascensão a problema central no seio dos estudos literários organizados como disciplina, não só a nível do campo de conhecimentos, mas também da estrutura institucional que o suporta. Este facto tem origens diferentes, embora relacionadas entre si, entre as quais se destacam: a desvalorização da grande literatura como componente do capital cultural das sociedades pós-modernas, onde passa a ter que competir com outros produtos e saberes culturais; a reivindicação de representatividade cultural por parte de estratos sociais discriminados, como são exemplo as mulheres e as minorias étnicas, e o seu efeito no meio académico; a ascensão de modelos funcionalistas e relativistas do conhecimento na filosofia e outras áreas do saber.
Entre outras razões, a reivindicação de representatividade cultural por parte de estratos sociais discriminados, como são exemplo as mulheres e as minorias étnicas, vai levar a que a partir dos anos 80, com especial incidência nos Estados Unidos da América, o cânone passe a ser encarado como fonte de controvérsia, sendo de destacar, a título exemplificativo, o êxito com que os estudos feministas trouxeram à luz do dia tantas obras escritas no passado e que hoje circulam em edições de bolso, sendo estudadas nas escolas (fazendo, por isso, parte do cânone estabelecido) e lidas pelo público em geral. Assim, neste ambiente multicultural, o cânone das grandes obras, e respectivos autores, que havia dominado durante a maior parte do século XX, mudando apenas pontualmente, passou a ser encarado como uma ferramenta de repressão e discriminação ao serviço dos interesses dominantes, do poder branco e masculino, bem como de uma ideologia com contornos patriarcais, racistas e imperialistas. Esta contestação em torno da legitimidade do cânone estabelecido acabou por levar ao aparecimento de várias reivindicações, entre as quais, a menos formal, aparece sob a forma de revisão e consequente abertura do cânone estabelecido a textos representativos de saberes, classes e minorias tradicionalmente excluídos.
Do lado dos opositores à abertura do cânone, alguns defendem que por um lado os apologistas da abertura do cânone se esquecem que, em termos históricos, o processo de exclusão não é o resultado de conspirações políticas da classe dominante, ocorrendo antes ao nível dos meios de produção cultural, nomeadamente no acesso à literacia, e por outro lado que o ataque ao cânone estabelecido é um sinal do declínio das humanidades no mercado dos valores culturais. Ainda do lado dos contestatários da mudança, é de destacar a posição, vinda, entre outros, de sectores mais conservadores do meio académico, que critica as motivações políticas e o que encara como a dissolução moral e pedagógica das instituições escolares, propondo um regresso àquilo que chama a pureza dos valores da civilização ocidental e cristã.
Antes de avançar para o principal objectivo deste artigo, gostaria de salientar dois aspectos que considero importantes para uma melhor compreensão dos conceitos de cânone e canonização: em primeiro lugar, que se tratam de processos de selecção que determinam o que é incluído e excluído, bem como os critérios que determinam essa selecção; e, em segundo lugar, que estes processos implicam sempre a produção e transmissão de juízos de valor.
Face ao que acima foi exposto, relativamente às principais discussões em torno do cânone literário e que estiveram na base das chamadas “Canon Wars”, importa então perceber de que forma o cânone pode, ou não, ser visto como resposta para os referidos problemas em que tem estado envolvido. A resposta a esta questão não é simples, porque, antes de mais, o cânone é o resultado de um processo de escolha, materializado numa lista, em que as obras que o integram são escolhidas por um determinado grupo dominante, reflectindo por isso os valores morais, sociais e políticos com que esse grupo se identifica. Assim, para que o cânone pudesse ser efectivamente a solução para os problemas de legitimidade com que se tem confrontado, teria, antes de mais, de ser revisto e, muito provavelmente, alargado, para que pudesse incluir também textos representativos de saberes, classes e minorias tradicionalmente excluídos, que assim passariam a identificar-se com os valores nele produzidos/reproduzidos. No entanto, para que esta revisão do cânone pudesse resultar, a lista de obras escolhidas deveria, antes de mais, ser o resultado do consenso entre os grupos envolvidos e, não menos importante, independente das pressões do poder político, que é, na maioria das vezes, o mecenas dos meios de produção cultural e que acaba por, directa ou indirectamente, influenciar os referidos meios.
Fontes e Bibliografia:
· Pierre Bourdieu, “The Market of Symbolic Goods”, The Field of Cultural Production, Polity Press: Cambridge: 1993, pp. 112-141.
· C.J. van Rees, “How a Literary Work Becomes a Masterpiece: On the Threefold Selection Practised by Literary Criticism”, Poetics, 12 (1983), 397-417.
· Douglas Shields Dix, “The Other Canon: Literary History and Marginalized Texts”, Brno Studies in English, 20 (1993), 51-61.
· William Paulson, “The Literary Canon in the Age of Its Technological Obsolescence”, J. Tabby and M. Wutz (eds.), Reading Matters: Narrative in the New Media Technology: Cornell Univ. Press: Ithaca and London: 1997, pp. 227-249.
· Douwe Fokkema, “A European Canon of Literature?” European Review, 1(1), 1993, 21-29.
· João Ferreira Duarte, s.v. "Cânone", E-Dicionário de Termos Literários, coordenação de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, <http://www.fcsh.unl.pt/edtl> (24/11/2008).
· DUARTE, João Ferreira, A lição do Cânone: uma auto-reflexão dos estudos literários – (Cadernos de Anglística; 12), Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa e Edições Colibri: 2006.