Entre a vida e a morte
A morte continua sendo o mistério mais enigmático que foi dado ao ser humano desvendar. Certa desde os primórdios da humanidade e totalmente banal nos dias atuais, ela é um estágio da existência que a maioria tenta esquecer ao longo da vida.
Sem entrar em nenhuma crença religiosa sobre o que possa haver após a morte, o que vemos é uma luta ferrenha do ser humano (e de todas as demais espécies animais) em preservar a vida. Mesmo se considerando o suicídio (literal através do ato em si e lento, a partir de certas escolhas) uma possibilidade cogitada por alguns, o que prevalece mesmo é a vontade de viver.
Constatar essa afirmação é um tanto simples, já que existem bilhões de seres fazendo de tudo para vencer as doenças, as catástrofes naturais, as crises econômicas ou mesmo as desilusões amorosas. Sem dinheiro, mas vivo; sem estudo, mas vivo; sem família, mas vivo; sem amor, mas vivo. É como se houvesse em nosso código genético um dispositivo a nos impulsionar sempre para seguir adiante.
O que me deixa confuso é a definição do que possa ser vida. Nas últimas semanas a imprensa do mundo inteiro noticiou os capítulos finais do drama da família da italiana Eluana Englaro, de 37 anos, que desde os 20 (quando sofreu um acidente de carro) viveu em estado vegetativo num hospital, mantida através de máquinas. Seus familiares lutaram na Justiça por mais de dez anos para ter o direito de decidir pelo fim da vida de Eluana (o que ocorreu na última segunda-feira, dia 9). A população da Itália (e o restante do mundo) se divide entre os favoráveis ao direito à eutanásia e os contrários.
Essa história mostra com muita nitidez que a definição de vida está longe de um consenso. Acho que a italiana que viveu 17 anos em coma irreversível esteve neste período numa espécie de limbo do esquecimento – um lugar onde o espírito não consegue encontrar qualquer referência de existir. Ela não estava neste plano, experimentando o que se entende como plenitude da vida; quando muito sua tragédia se tornou uma referência para uma causa bastante polêmica. Também (em tese) não partiu para outro plano, no qual o espírito possa existir sem a “prisão” chamada corpo.
Como quase todos os ocidentais, eu também não fui preparado para perder nada no plano físico. O que dizer, então, de uma perda com conotação mais espiritual, inexplicável, como a morte? Os povos orientais, por mais que tenham tanto medo de morrer como qualquer ocidental, lidam culturalmente com a morte de forma muito mais leve. Há entre eles até quem encontre motivos para festejar quando um ente querido se vai. Acredita-se que seu espírito esteja partindo para um estágio de existência bem melhor. Por esta visão, o espírito é como um pássaro que cai no Céu quando morre (uma referência ao título da música instrumental da banda portuguesa Madredeus – “Os pássaros quando morrem caem no Céu”). Seu vôo é muito mais alto e sublime se comparado aos vôos possíveis e limitados desta vida.
Nosso pouco entendimento da morte nos faz erroneamente percebê-la de maneira sombria, mórbida. Sempre evitamos falar no assunto e quase sempre definhamos depois da partida de alguém que gostamos. Não se trata de defender a tese de que devamos abafar os sentimentos de tristeza e vazio por uma perda assim. Até porque a saudade é um dos efeitos do amor. O que nos falta é compreensão, disposição para entender melhor a dimensão da morte. Antes de alguém ser pai, filho, marido ou irmão, ele é um espírito que tem a sua própria trajetória a cumprir.
O destino de Eluana Englaro, que não teve a opção de escolha entre viver ou morrer, vale uma reflexão profunda do que realmente seja a essência da vida. Ao menos a que temos do lado de cá, antes de mergulharmos na misteriosa caverna do outro lado.