O cafajeste literário

Há tanta coisa para ler, tantas obras maravilhosas numa biblioteca, tantos clássicos ou lançamentos interessantes numa livraria, tantos escritores escondidos nas estantes, tantos talentos ainda nem revelados vendendo (ou tentando publicar, na grande maioria) livros por aí, tantos blogueiros divinos, tantos autores de mensagens de comunidades orkuteiras excelentes, tantos textos para serem digeridos em toda a parte que eu não sei mais o que ler em minha vida!

Neste momento, estou na biblioteca da UFSC. Não tenho idéia de quantos mil livros têm aqui. Não vou me levantar e perder o raciocínio do artigo para ir até ao balcão onde está a bibliotecária para perguntar, ver ser ela tem alguma idéia. Mas são bilhões, trilhões talvez de páginas escritas ao todo aqui dentro.

Cada vez que eu venho aqui - bem como quando vou em alguma livraria - eu fico louco! Eu sempre tenho vontade ler tudo! Fico pegando os livros, folheando, paginando, trocando por outro, repetindo o mesmo procedimento, e acabo, muitas vezes, nem lendo nada, pois minha energia não está dirigida a um apenas, não está focada em nenhum especial, mas distribuída coletivamente por todos, e assim eu não avanço, não passo de uma ou duas páginas de leitura, no máximo, de cada.

Como é permitido retirar até dez livros por aluno, às vezes é exatamente isso que eu faço. E, como não podia ser diferente, sabem o que acontece? Novamente, eu não os leio integralmente, um absurdo! Levo tudo para a casa e não sei nem por qual começar. Leio algumas páginas de um, passo para outro, leio a sinopse de mais um, abro outro na metade ou mesmo no fim por curiosidade, leio algumas frases ou parágrafos, começo uns pelo fim, avanço da página trinta ou quarenta em diante por mais cinco ou dez noutros, enfim, dificilmente consigo me concentrar numa só leitura, num só livro, e acabo sendo com os livros o “cafajeste” que eu não sou com as mulheres, essa é a minha grande confissão literária!

Amo as duas coisas, as mulheres e os livros, mas com elas eu não sou cafajeste, com os livros eu sou! Como explicar isso? Não vou dizer que é porque em relação às mulheres eu tenho já um grande amor, porque apesar de eu já ter mesmo um grande amor e não achar legal as traições, eu tenho também grandes amores por alguns livros, tipo “Crime e Castigo”, “O Processo”, “Ensaio sobre a Cegueira”, “Amor em Tempos de Cólera”, “Revolução dos Bichos”, etc, e mesmo assim estou sempre procurando novos. Ou seja, só aqui já citei 5 grandes amores, enquanto que em relação às mulheres, citei apenas uma e seria inconcebível tanto para ela, para a “ser-amada”, quanto para a grande maioria das outras pessoas se eu citasse mais. Desta forma, devo eu pensar que posso ser cafajeste com os livros porque são objetos, são limitados, têm finitude de certa forma breve, são diferentes de pessoas? Enquanto que não posso proceder da mesma forma com as mulheres porque são pessoas, são ilimitadas, não tem finitude tão breve quanto obras e podem ser apreciadas sem esgotamento por uma vida inteira mesmo quando temos que trocar de páginas ou assisti-las trocando?

As páginas das vidas (da grande maioria) das pessoas são infinitamente mais ricas, mais profundas, mais interessantes, mais belas que as que encontramos nos livros. Podemos nos prender por semanas, por meses, por anos, por décadas, por uma vida inteira nas páginas de uma única pessoa, enquanto que isso é impossível em relação a um livro por mais fabuloso ou verídico que ele seja, por mais artístico que ele se apresente, por mais brilho, inteligência e beleza que possua. Ninguém no mundo consegue passar mais que um ano ou dois, quem sabe, lendo e relendo o mesmo livro, muito menos então uma vida inteira. Evidentemente então é necessário seguir trocando de livros, conhecendo outros autores ou outras obras de um mesmo autor, enriquecer e sempre reciclar ao máximo a cultura literária, que necessita, sim, de cafajestes, mas “cafajestes sábios”.

Cafajestes sábios não são os que enganam as mulheres, têm mil amantes, engravidam outras por aí e fogem sem nem assumir os filhos (isso é coisa de covarde otário, como meu pai, por exemplo!). Cafajestes sábios são aqueles que não enganam ninguém. Eles simplesmente se mostram como são, e, como eu faço com os livros, deixam bem claros desde o início que não estão interessados em nada mais além de “paginar algumas folhas”, “ler algumas frases ou parágrafos soltos”, “passar para outra obra tão logo interessante esta se mostrar”. Em suma, cafajestes sábios não fazem ninguém chorar e possuem tanto amor dentro de si por determinado assunto (no caso, livros ou mulheres) que deixam bastante claro que nem sabem “o que escolher”, e por isso fazem tantas trocas e não conseguem se aprofundar mais em nenhum específico – nem buscam isso.

A cultura literária é uma “mulher”, mas uma “mulher promíscua”, a mais promíscua de todas, não podemos esquecer. Ela gosta dos cafajestes sábios, apesar de, como mulher, ser romântica e sonhadora, é claro, e desejar laços duradouros e eternos em seu âmago. Entende-os melhor que qualquer pessoa no mundo, porque no fundo é assim também. Ama centenas de escritores, adora milhares de obras, enaltece bilhões de capítulos ou trechos de quem ousa com ela se envolver. É bissexual também, sem preconceitos, e se pudesse teria estas “relações eternas” com todos que cruzassem o seu caminho.

Desta forma, um cafajeste sábio só tem a ganhar quando se envolve com ela, ganhar em inteligência, em prazer – mesmo que de uma noite, isto é, de uma página ou frase – e não deve lamentar que seu relacionamento com ela esteja condenado a ser sempre assim, variando entre dias de superficialidade ou dias de profundidade absoluta, quando suas palavras, suas linhas, seus parágrafos, suas páginas, suas obras inteiras são devoradas como deliciosas partes de um corpo belo, gostoso e único que só a seres especiais, como os cafajestes sábios, no fundo, oferece...

E é por isso que a minha relação com ela, com esta mulher tão sábia que é a cultura literária, será por toda a vida...uma relação sem ciúmes, sem possessividade, sem manipulações, sem satisfações, sem estresses, sem desentendimentos, sem cobranças, sem acusações, sem dores.

É uma relação de amor verdadeiro, exatamente como a cultura literária ama, quer e merece...

Assim sendo, lá vou eu paginar mais alguns livros por aqui antes de me dedicar à uma nova leitura inteira...ela, definitivamente, não se importa.

Leandro Rangel
Enviado por Leandro Rangel em 07/01/2009
Código do texto: T1372457
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