Filosofia e Consciência Negra
Ontem foi um dia duplamente especial no calendário de datas comemorativas. Como data fixa, no 20 de novembro se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra, numa referência ao aniversário de morte de Zumbi dos Palmares. Como data móvel, foi o Dia Mundial da Filosofia, instituído pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para ser comemorado na terceira quinta-feira de novembro.
Com relação à primeira data comemorativa (mas também já entrando na segunda), é historicamente justa e filosoficamente atual a escolha do aniversário de morte de Zumbi dos Palmares como a melhor referência de liberdade e auto-afirmação para os afro-descendentes brasileiros. Antes, o 13 de Maio (Dia da Abolição da Escravatura) era (ou ainda é...) apresentado à sociedade – inclusive nos livros escolares – como uma espécie de marco zero para a vida livre dos negros no Brasil.
A questão é que a História já provou que essa liberdade (leia-se alforria) não foi autêntica nem sólida (basta verificarmos o espaço social e político conquistado pelos afro-descendentes ao longo das décadas que se seguiram ao 13 de maio de 1888). Sem mencionar que a Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, ganhou muito mais uma conotação de gesto nobre dos brancos do que uma referência da conquista genuína que se viu nos muitos quilombos espalhados pelo país, sendo o mais famoso deles o de Palmares.
Como disse o filósofo francês contemporâneo Maurice Merleau-Ponty, “a verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo”. Foi o que fizeram vários integrantes de movimentos em prol da cultura afro-brasileira, nos anos 70, a exemplo do Movimento Negro Unificado. Eles reaprenderam a ver o mundo também no que se referia ao papel reservado aos negros no Brasil.
Foi no final daquela década que o dia 20 de novembro passou a significar a verdadeira data comemorativa da liberdade para os afro-descendentes brasileiros. Não necessariamente uma comemoração festiva, pois a morte de Zumbi foi mais um assassinato histórico em nome do poder vigente, como um século mais tarde aconteceria com Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes), líder da Inconfidência Mineira. Trata-se da comemoração da união de toda uma raça em torno do ideal de igualdade perante a sociedade branca e de afirmação da cultura africana como um dos pilares da cultura mestiça nacional.
Sim, há muito que celebrar no Dia Nacional da Consciência Negra e no Dia Mundial da Filosofia. Até porque tudo na Filosofia gira em torno do reforço à consciência, à reflexão, ao desenvolvimento do senso crítico. Não que este seja um privilégio único da Filosofia, mas é o seu ponto de partida e de chegada.
Que essa respaldada consciência negra se mantenha no caminho reflexivo, crítico e autocrítico. Torço para que brancos, índios, afro-descendentes e demais descendentes dos povos que ajudaram a formar a identidade do Brasil possam, um dia, irmanarem-se em torno de um mesmo ideal: o da nação farta e próspera para todos os seus filhos, pautada na liberdade de ação e expressão; na igualdade de direitos, deveres e oportunidades; e na justiça e solidariedade.