"ANÁLISE ESTILÍSTICA da canção 'VALSINHA', de Vinícius e Chico Buarque"

"VALSINHA

De: Vinícius – Chico Buarque

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre

chegar / Olhou-a de um jeito muito mais quente do que

sempre costumava olhar / E não maldisse a vida tanto

quanto era seu jeito de sempre falar / E nem deixou-a

só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra

rodar / Então ela se fez bonita como há muito tempo

não queria ousar/Com seu vestido decotado, cheirando

a guardado de tanto esperar / Depois os dois deram-se

os braços como há muito tempo não se ousava dar / E

cheios de ternura e graça foram para a praça e come-

çaram a se abraçar / E ali dançaram tanta dança que a

vizinhança toda despertou / E foi tanto felicidade que

toda cidade se iluminou / E foram tantos beijos loucos,

tantos gritos roucos como não se ouviam mais / Que o

mundo compreendeu / E o dia amanheceu / Em paz.

Memória discursiva.

Valsinha, uma canção de Chico Buarque de Holanda dedicada a um movimento social dos anos 70 denominado hippie, pregava a liberdade de ação do indivíduo. Essa prática levava as pessoas a agirem livremente e sem preconceito no período de repressão do Governo Militar. Normalmente, seus seguidores viviam em grupos, preconizavam o amor, aboliam a discriminação racial e faziam sexo livremente, isento de condenação. A alusão que Chico faz ao movimento é figurada na performance de um casal que, “um dia“, muda a sua conduta e toma outro rumo na vida. A homenagem a esse evento de vanguarda retrata

metaforicamente o lirismo vivido por seus integrantes como artifício para fugir da censura política.

Estrutura do texto.

Valsinha é estilisticamente um poema. Além de sua estrutura poética, possui a narrativa, o que faz dela um mini conto, pois possui um só núcleo. Sua narração começa em um momento qualquer (um dia) e as ações são introduzidas seqüencialmente até chegar a um fim esperado.

Por isso, a narração é heterodiegética, centrada no narrador. Com o foco narrativo na 3.ª pessoa, o narrador vê tudo à distância e conduz o fato sem interferir na história. Assim, o ele controla todo o saber, sem limitações de profundidade externa ou interna, em todos os lugares ou em todos os tempos. Em resumo, o texto é narrado por um narrador onisciente.

Marcadores da narrativa e da oralidade.

O texto apresenta conjunções como marcadores da oralidade, nas quais o narrador apóia-se para sustentar sua narrativa. Ex. e..., e..., pra..., depois..., então... Como marcadores da narrativa destacam-se o tempo (um dia, muito tempo), o espaço (num canto, praça, cidade, o mundo) e os verbos que cumprem sua função nas modalidades de pretérito perfeito e Imperfeito: “Chegou...”, “diferente...”, Olhou-a ...”, “costumava ...”, “maldisse...”.

Da instância lexical.

Palavras mais sedutoras: “quente..., bonita..., decotado..., ternura..., beijos loucos”.

Palavras mais próximas semanticamente: “A guardado... esperar; Há... muito tempo; ternura... graça; despertou... iluminou; gritos... ouvir; compreensão... paz; maldisse... falar; só... canto; bonita... ousar; tanto... tantos; dança... rodar.”

Palavras mais distantes semanticamente: chegou... foram; maldisse... paz; diferente... sempre; só... abraçar. Por conta do entendimento semântico de Valsinha, que retrata uma ação diferente do passado e nos remete à idéia de aproximação, há poucas palavras que se contrapõem no sentido de distanciamento.

O eixo paradigmático da canção.

Do ponto de vista sintático, podemos destacar os sujeitos presentes na canção (SN – sintagma nominal) e seus respectivos predicados (SV – sintagma verbal).

Na primeira fase da apresentação o SN é o pronome definido ELE. Na segunda, ELA. Finalmente OS DOIS.

Há, também, outros SN que são introduzidos no enredo e fazem parte do contexto, sem importância central. São eles: Toda a Cidade...; A vizinhança...; Beijos loucos...; Gritos roucos...; O mundo...; O dia.

Mas o eixo paradigmático da canção é marcado pelo SV, mais

notadamente com a presença dos verbos terminados em AR, como por exemplo: “chegar...; Olhar...; Rodar; Ousar etc.

Métrica

Tomando como exemplo os quatro últimos versos, podemos escandi-los e dar nomes aos metros da seguinte forma:

1 2 3 4 5 6 7 Definição

Tan tos gri tos rou cos redondilha menor

Co mo não se o u vi a mais redondilha maior

Que o mun do com preen deu hexassílabos

E o di a a ma nhe ceu em paz redondilha maior

Metáforas

A canção é inteiramente metaforizada. Algumas metáforas mais expressivas podem ser destacadas facilmente na canção.

Metáfora Sentido semântico

Vestido decotado Camisola.

Cheio de ternura Cheio de desejos, volúpia.

Foram para a praça Foram para a cama.

Só num canto Abandonada.

Pra rodar Fazer amor.

Cheirando a guardado Engavetado.

Dançaram tanta dança Fizeram muito sexo – Jogo do amor.

O mundo compreendeu A felicidade é transparente.

Jogo das pressuposições.

Tomemos como exemplo o seguinte verso: “um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar”. Por esse verso pressu-põe-se que antes do movimento hippie os sentimentos femininos em relação à liberdade sexual eram mais reprimidos. A manifestação de desejos e emoções em relação à vida sexual não se dava de maneira explícita. Com o seu surgimento, as relações humanas sofreram uma mudança brusca de comportamento, principalmente afetivo. A partir daí, os sentimentos e desejos são mais encorajados pelo prazer, sem censura, sem repressão ou sem estado de culpa. A liberdade nele pre-

sente permitiu transformar sentimentos que antes eram introspectivos e ocultos em demonstrações mais eróticas.

A questão da rima.

As rimas de Valsinha parecem ser simples, tendo a presença dos ver-

bos terminados em “AR” na primeira estrofe de cada verso. A segunda estrofe não apresenta a mesma simetria da primeira, variando a termi-

nação sem preocupação com a rima. Mas, nem por isso não podemos afirmar que as rimas que se apresentam na canção não são muito so-

fisticadas. Elas existem certamente em diversas instâncias, principal-

mente em um recurso raramente encontrado em canções: são as rimas toantes internas. A seguir, destacamos alguns pares dessas rimas:

Canto Grande

Sempre Tempo

Quanto Espanto

Loucos Roucos

Com convidou-a

Conclusão do ponto de vista estilístico.

Valsinha é uma canção que pode ser considerada como um mini conto. Sua história ocorre no pretérito, em um momento qualquer, e chega a um tempo indeterminado com a exibição de uma sensível mudança de estado. Para consolidar as ações e estabelecer marcas que determi-

nam seu intento, o eu-lírico narra na 3.ª pessoa, com verbos enfáti-

cos que consagram um gesto pragmático no tempo. Para isso, esses sintagmas verbais se apresentam, quase que sempre, com as desinên-

cias temporais nos pretéritos perfeito e imperfeito. Assim, “um dia” ele “chegou”, “olhou” e convidou”. Chegou de maneira diferente do usual, mudando o estado em que se encontrava, pois “costumava” agir de uma maneira e passa por uma transformação, a ponto de externar seus sentimentos incutidos e sufocados em “gritos roucos”, como não se “ouviam” mais. Para provocar a idéia de valsar, o autor vale-se de repetições como “tanta dança”, “tanta felicidade”, “tantos beijos”, “tantos gritos”, criando uma mistura de significados que provocam um verdadeiro “rodopio” na percepção do leitor, até atingir seu intento. Outro importante detalhe a ser observado é que os versos começam organizados e longos e, à medida que o enredo vai tomando seu curso final, eles se encolhem e incorporam elementos que nos remetem à idéia de estreitamento e movimentos circulares, como se quisessem simular os movimentos de uma valsa. Seus recursos estilísticos são vastos. Do ponto de vista lexical, o autor usa palavras que se asseme-

lham, cujos pares residem na mesma raiz, na tentativa de provocar o mesmo significado. Nesse sentido, podemos dizer que Valsinha é a mais pura poesia, pois as palavras vão e vêm provocando fortes sentimentos na sua interpretação. Morfologicamente, as raízes das palavras também se fazem presentes, mas com o uso de categorias diferentes dos verbetes. É o caso do verbo “dançar” e do substantivo “dança”. Na relação morfossintática, observamos que o grande paradig

ma fica por conta do sintagma verbal, que ricamente se alterna em diversas situações. Nesse sentido, o sintagma nominal ganha outras formas e age de maneiras diferentes, destacando-se em importância no enredo. Os verbos se apresentam com rigor e firmeza. Suas ações são decisivas. Às vezes eles mudam de estado, passando de pretérito perfeito para imperfeito, para provocar uma idéia de continuidade. É o caso de “costumava”. Não é só na rica estrutura estilística que o poe-

ma é admirado. Do ponto de vista semântico, Valsinha provoca uma grande surpresa. Com metáforas ricas e invariavelmente “in absentia” (ausente), como podemos observar em “seu vestido decotado”, o sentido figurado de suas metáforas consolida-se em uma metáfora maior que enaltece o movimento hippie da década de 70, em pleno regime de ditadura militar. Esse movimento social não se sujeitava às imposições retraídas da sociedade de então, permitindo a expressão de liberdade dos seus seguidores, os quais usualmente viviam em grupos, preconizavam o amor, aboliam a discriminação racial e faziam sexo livremente. Valsinha exalta a liberdade dos integrantes desse movimento e a ousadia das manifestações nas suas relações afetivas, até então reprimidas e sufocadas na sociedade. A grande surpresa da canção fica por conta de seu sentido metafórico. A idéia concebida de que se refere a um casal apaixonado, deixa de ser tão importante para valorizar-se em uma dimensão maior: a do engajamento social.

Seu sentido é muito mais global e universal, pois faz alusão a um movimento de caráter revolucionário que ousou desafiar a sociedade tradicional da época e contestar os valores e os padrões de seus regimes dominantes".

(*) Análise estilística da canção Valsinha de Vinícius e Chico Buarque

Elaboração: Prof. José Atanásio da Rocha. Onde consta a seguinte nota: "Esse material é parte integrante do site www.mundocultural. com.br e pode ser redistribuído livremente, desde que não seja altera-

do, e de que todas as informmações acima sejam mantidas".

Lobo da Madrugada
Enviado por Lobo da Madrugada em 17/10/2008
Reeditado em 07/11/2008
Código do texto: T1234042
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