CONFLITO CULTURAL
Na hora de fingir de “mentirinha” a luzinha do inconsciente se acende e o ambiente torna-se claro demais. O conflito cultural entre o certo e o errado transforma o cenário num ambiente de tortura e os espectadores em algozes do nosso próprio sentimento de culpa. É a materialização do amadorismo…
O ator amador precisa, primeiramente, superar o conflito cultural entre o certo e o errado. Do contrário, não conseguirá interpretar. Aprendemos a vida toda que fingir é errado. Nossa educação enraiza em nosso subconsciente padrões de comportamento onde a verdade deve falar mais alto que a dissimulação, onde o ridículo – assimilado pela tradições – deve ser a todo custo evitado.
O paradoxo disso tudo, porém, é que na infância tudo é permitido, pois a inocência dita as regras, sem margem para contestação. Não há malícia, maldade, nem julgamento; mas há, por outro lado, muita sensibilidade. O menino faz uso dela para fingir que é cavaleiro, médico, motorista, mocinho... ou bandido. A menina desperta sua sensibilidade materna, embalando uma simples boneca... Tudo não passa, entretanto, de uma representação para preencher um vazio abstrato onde as coisas concretas se realizarão no futuro.
Depois, quando adulto – consciente já da realidade da vida – muda-se as regras do jogo. Muitos continuam a fingir, mas já é uma atitude diferente. A fantasia de antes vira agora hipocrisia. Finge estar tudo bem, quando na verdade pode não estar – para evitar detalhes comprometedores ou expor intimidades constrangedoras. Deseja bom dia a todos, indistintamente, sem muita consciência do ato e na maioria das vezes apenas da boca para fora. Agrada todos os colegas, sem distinção, mesmo que entre eles haja especialistas em colocá-lo e mantê-lo constantemente no inferno astral.
Suporta o mesmo chefe que castra conscientemente seu potencial rebaixando-o ao nível de incompetência, apenas para garantir um emprego muitas vezes medíocre. Finge gostar do que faz para não se desdobrar em busca de trabalho melhor ou mais gratificante. Tudo em nome do bom-senso, da regra geral, da sobrevivência ou do comodismo. No entanto, não é um fingimento planejado ou carregado de culpa. Trata-se de uma ação espontânea e instintiva inserida na conduta como padrão normal de um comportamento assimilado como ideal e, por isso mesmo, considerado necessário e verdadeiro – é a mentira transformada em verdade e aceita como tal.
Mas na hora de fingir de “mentirinha” a luzinha do inconsciente se acende e o ambiente torna-se claro demais. O palco da encenação transforma-se num espaço de tortura e os potenciais espectadores em algozes do nosso próprio sentimento de culpa.
A platéia sabe que estamos fingindo e, sem ter como disfarçar – sob pena de não convencê-la – nos sentimos, pela própria contradição, inseguros e conseqüentemente ridículos. É chegada a hora, então, de libertar a criança que sempre habita em nós.
Ela, com sua mágica, desempenhará o papel – despindo-nos do personagem que representamos no dia a dia, para assumirmos a responsabilidade do outro.
Aprendemos assim a enfrentar desafios e superar barreiras. E o mérito será todo nosso pois a criança não precisa de nada disso – mas nos encherá de orgulho quando nosso ego assimilar o valor reconhecido daquilo que foi feito a dois.
No teatro e no cinema é assim: a sensibilidade predomina e a inocência indica o caminho. Na política é diferente: os inocentes não sobrevivem porque a realidade é subjetiva e os padrões de avaliação distorcidos. Para vencer nesta arte estuda-se Maquiavel, não Levinsk, pois é um meio onde os fins justificam os meios...
É a realidade da vida com com todas as suas contradições. Rui Barbosa foi considerado o Águia de Haia pelo magnífico discurso que impressionou as mentes brilhantes da época – representantes escolhidos a dedo entre os melhores do mundo, mas não conseguiu eleger-se presidente no país que o aclamou como um dos seus filhos mais ilustres.
As pessoas de bem não gostam da política, nem dos seus agentes. Não entram nela nem para criar anti-corpos. Fogem dela como o diabo da cruz. Preferem assistir de camarote e manter as coisas como estão, mesmo discordando do que vêem. Os atores habituais não convencem mas são mantidos no elenco. Por isso, são sempre os mesmos – os que se prestam ao serviço sujo, já que os que deviam não se habilitam ao trabalho limpo...
O script então não muda e os participantes sabem sua fala de cor. No final são coroados num reino de mentira – onde é permitido fingir de verdade. E, ainda, ser muito bem pagos por isso... inclusive, pela própria característica de administração pública voltada para a manutenção de um sistema corrupto e paternalista que eterniza essa roda viva e os mantém seguros no poder para conservar as coisas como estão.
Estes são, na verdade, os atores profissionais. O restante é formado pelos amadores que não aprenderam, ainda, a brincar com coisa séria!