O furto do Canhão do Forte São Mateus praticado por um professor e um grupo de alunos

"Um pequeno Trecho do Roteiro Ambiental e Patrimonial da Cidade de Cabo Frio. A História de um Canhão do Forte São Mateus que foi levado a Nova Friburgo e nunca mais voltou."

Durante os anos 1940 e 1950 do século passado, tanto o Forte São Mateus como seu material bélico (os canhões) viviam entregues à própria sorte. Alguns canhões estavam na areia da praia abandonados, corroendo-se e entregues à maresia, por negligência do poder público e da população cabo-friense, todos os dias quando a maré subia as águas do mar submergiam-nos.

Esse era um período em que poucos lugares e pessoas davam o devido valor ao patrimônio cultural, seja ele histórico ou ambiental, tanto da União, dos Estados e dos Municípios.

No ano de 1953, numa segunda-feira, um grupo de 20 alunos com idade em torno de 12 anos, vieram de Nova Friburgo, juntamente com seu professor, passar uns dias de férias na Praia do Forte, em Cabo Frio. Eles eram do Colégio Nova Friburgo da Fundação Getúlio Vargas, o CNV/FGV.

Esse grupo de estudantes e seu professor furtaram um dos canhões que se encontrava na areia da Praia do Forte. Eles esconderam o canhão debaixo de uma grande lona e o levaram para sua escola em Nova Friburgo.

O canhão do Forte São Mateus ficou de 1953 até 1977 no Colégio Nova Friburgo da FGV, ano que ele encerrou as atividades educacionais. Sei que pode parecer “história da Carochinha”, mas a fim de proteger o canhão do abandono, do Campus do Colégio ele foi enviado ao Clube de Regatas Flamengo na Gávea, ficando lá até 1986, isso porque o ex-presidente do Flamengo à época, Márcio Braga, foi um dos alunos que estava naquela excursão que levou o canhão do Forte São Mateus das areais da Praia do Forte.

Só com a eleição do médico Ivo Saldanha ao cargo de prefeito de Cabo Frio, que se iniciou uma campanha para o retorno do canhão do Forte para seu devido lugar. Lembrando que foi Ivo o prefeito que mais realizou tombamentos via Decreto Municipal de quase todos os bens patrimoniais da cidade de Cabo Frio, no ano de 1989, deixando um extraordinário legado de amor e apreço ao patrimônio municipal.

Vários jornais da época se empenharam em narrar a história e de pedir a devolução do bem público cabo-friense, que infelizmente nunca ocorreu.

“Jornal O dia – 24/11/83 -seção de esportes – 23 – Canhão do Forte – Canhão do Forte São Mateus também é atração na Gávea.

- Ivo Saldanha acusa Márcio Braga – peça foi parar na Gávea.

- Contestação – O deputado Márcio Braga contestou a versão de Ivo Saldanha, dizendo...

- Passeata está organizada para dezembro...

O Fluminense – 04/ e 05/12/1983 – seção: Lagos -Repórter Levi de Moura.

- “Comissão Especial” - foi criada uma comissão especial, para apurar o caso do canhão.

- 10/12/1983 – em quase meia página ‘Vereadores querem o Canhão de volta a Cabo Frio e com letras bem maiores: ‘Professor disse que na Gávea está bem guardado’.”

Com a reabertura do Colégio Nova Friburgo em 1986, ficou acordado entre os responsáveis da escola e Márcio Braga, que o canhão retornaria a suas dependências na cidade serrana, e assim aconteceu.

Anos mais tarde, o Museu Histórico de Cabo Frio, no dia 27/10/1999, enviou um ofício ao diretor do Instituto Politécnico do Rio de Janeiro, solicitando a devolução da peça histórica pertencente ao acervo do Forte São Mateus, o que seria feito como arranjos e parte dos festejos dos 500 anos do descobrimento do Brasil (22/04/2000).

Como o ofício foi parar nas mãos de Márcio Braga, que era presidente da associação de ex-alunos, professores e servidores do Colégio Nova Friburgo da FGV, ele, sabiamente, o remeteu ao jurista e ex-aluno do Ginásio, Marcelo Cerqueira.

O eminente jurista argumentou que o canhão era um bem público dominical pertencente à União. E, como bem público, embora abandonado (res derelictare), não pode ser objeto de apropriação... alegou ainda que o Decreto 22785/1993 estabelece a imprescritibilidade dos bens públicos, entre outros argumentos.

Terminou sua argumentação dizendo: “Nessa conformidade, o aludido canhão não pode ser reivindicado pelo Museu Histórico de Cabo Frio. Por se tratar de bem público, somente a União poderá exercer o direito, se aprovada a sua propriedade”.

Cabe ressaltar que o real proprietário do Forte São Mateus e do seu acervo é a União (Governo Federal), pois o Forte São Mateus e todo seu entorno foi tombado pela Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), que tombou o imóvel, o penedo em que se ergue e a ponta da praia, num círculo de quinhentos metros a partir do centro do forte em 30/11/1957. Além é claro, de ele pertencer à cidade de Cabo Frio e a sua população.

Nenhum argumento falacioso como o do jurista, Marcelo Cerqueira, mencionado anteriormente, dá o direito do Ginásio Nova Friburgo, de seus ex-alunos e ao Clube de Regatas Flamengo, nem a ninguém de ter posse de um bem patrimonial pertencente a Cabo Frio e a sua população.

Da mesma forma, nenhuma entidade ou quaisquer pessoas têm o direito de se apropriar de um bem patrimonial pertencente à cidade de Nova Friburgo. O que os alunos e o professor fizeram em 1953 foi uma ação execrável chamada de furto. Com agravante de ser um bem patrimonial, pertencente a toda coletividade e à cidade acima citada.

Lendo sobre a história do ocorrido, impressionou-me dois testemunhos narrados por dois alunos que estavam na excursão de 1953. O primeiro do aluno Robert Gayer que relata que ao contar para o pai ao chegar em casa que “praticamos uma boa ação, resgatamos um canhão do Forte São Mateus e o levamos ao Colégio. Ele continua: Meu pai ficou bravo, nunca o tinha visto fora de si.” “_ O quê? Levaram um canhão que não lhes pertencia e você considera isso uma boa ação? _ Mas pai, o canhão estava largado na areia. Junto com outros, abandonado pela autoridade pública, desprezado pela população local.” Procurava justificar-me diante da fúria de papai.

“_Boa ação seria pegar o canhão e colocar no alto do Forte donde nunca deveria ter sido levado.”

Termina ele: “os meus argumentos não adiantaram, apenas agravava minha situação diante da ameaça de meu pai. Fui prudente em desviar o assunto para outro tema, caso contrário, eu teria levado, até uns tapas, tal era a severidade do velho”.

A outra história que me chamou atenção foi a do ex-aluno e excursionista Jaceck Rafael Chmlieviski, o Jack, o professor Joaquim Trota, ex-professor do Colégio Nova Friburgo e excursionista da fatídica viagem que carregou o canhão, conta-nos que o reencontrou em 2002, na Ilha Porchat, em São Vicente – São Paulo. Nas conversas que ambos tiveram veio à tona o assunto canhão. E Jack lembrou ao professor que ele fora o único aluno a ser contra a retirada da peça bélica das areias da Praia do Forte, não encostou um dedo para o retirar e reclamou inflamadamente do feito o tempo todo. Discutiu com todos os que queriam levá-lo. Como era o único contra, foi feita a vontade da maioria.

O professor disse que depois de muito tempo entendeu por que Jack foi contra tal feito. Era porque o pai dele tinha casa em Cabo Frio e ele não aceitava sua cidade sendo despojada de uma peça que pertencia ao patrimônio cultural do município.

O canhão do Forte São Mateus continua sobre um pedestal de granito, na lateral do prédio da Fundação Getúlio Vargas, no Bairro Parque Cascata. Esse prédio foi construído para se tornar um cassino, mas após a proibição do jogo no Brasil, as instalações tornaram-se o Colégio Nova Friburgo da FVG.

Anos depois de encerrar as atividades suas dependências, foram cedidas a UERJ que instalou no local o Instituto Politécnico. Logo após os desastres de 2011 que ocorreram em decorrência de fortes chuvas na região serrana, a UERJ foi transferida para outra localidade. Até hoje, as instalações estão desativadas, estão tão somente sobre a guarda patrimonial de alguns vigias da instituição.

O Canhão de Cabo Frio desde 1953 repousa fora da sua verdadeira residência, o Forte São Mateus. O poder público municipal não mais se interessou em reaver o patrimônio do município para seu povo e para testemunha de sua história. A população cabo-friense em sua absoluta maioria não conhece essa história e muitos não dão a mínima importância para a história da sua cidade e os bens culturais de seu município.

Espero que este texto possa mais uma vez despertar o poder público, os agentes governamentais, o MPF e a população cabo-friense para lutar por seus bens culturais e pela preservação da sua história.

Notas:

Obs.: 1 As citações que não aparecem numeradas nesse texto foram retiradas do Anuário de Cabo Frio 2013. “Um canhão de Cabo Frio em Nova Friburgo. Autores: Joaquim Trota e Rose Fernandes.

Obs.: 2 SPHAN era uma Autarquia do governo Federal substituído pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (IPHAN).

Obs.: 3 Os cassinos no Brasil foram fechados pelo decreto-lei 9215, de 30 de abril de 1946, do presidente Eurico Gaspar Dutra.

Acioli Junior
Enviado por Acioli Junior em 13/11/2022
Reeditado em 13/11/2022
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