A violência policial e o uso político da dor humana
Depois do fatídico e horrendo episódio envolvendo a Polícia Militar e sua invasão a uma Roda de Hip Hop – Batalha do Mantém –, no bairro Manoel Correia, em Cabo Frio, no dia 5 de maio, o vereador Davi Souza, em tempo recorde, elaborou um projeto de lei e fez, desse gênero musical e das Rodas Culturais que estavam ocorrendo há pouco tempo na cidade, Patrimônio Imaterial do município.
Bem, sou um historiador e pesquisador do Patrimônio Cultural Cabo-friense, meu Mestrado em Ensino de História pela UFF teve, em minha pesquisa, uma dissertação na qual discorri sobre o histórico dos bens culturais brasileiros, tanto material como imaterial (ou tangível e intangível). Portanto, posso falar com autoridade sobre essa temática, pois ainda tenho dois livros que versam sobre o tema.
Em primeiro lugar, fui um dos primeiros a postar e a fazer duras críticas à ação da Polícia Militar, em menos de uma hora, após o nefasto acontecimento na Praça do Manoel Correa, mesmo com minha esposa insistindo para eu não o fazer (por considerar que não se deve criticar ações policiais). Mesmo assim, fiz e faria tantas vezes que considerasse necessário.
Considero que todas as comunidades merecem respeito do poder público e das autoridades, seja ela política, policial, jurídica ou no campo social. Além de todas as manifestações populares, como a da cultura Hip Hop, merecem respeito e o direito à sua livre expressão.
Em segundo, considero louvável que as autoridades municipais, como o prefeito, os vereadores, os secretários de governo e aqueles que pensam e produzem o conhecimento – os chamados intelectuais, que são os professores e os escritores –, se manifestem, como eu prontamente o fiz, assim como muitos outros agentes políticos deveriam se pronunciar. Mas, acho um absurdo utilizar um problema social ou criminal, como o crime praticado por aqueles policiais contra a comunidade, politicamente; fazendo do ocorrido um trampolim para a carreira política.
Sendo assim, deixo claro a minha condenação veemente aos policiais, pois os mesmos nunca agiriam com tamanho desrespeito e truculência em bairro da classe média e das classes sociais mais abastadas. Por outro lado, condeno o uso político e eleitoreiro dos politiqueiros de plantão que, antes de lutarem pelo bem da comunidade, querem aparecer ou angariar votos da desgraça alheia.
Dito isso, venho me manifestar como intelectual, como professor e como agente cultural e pesquisador do patrimônio em suas vertentes tangível e intangível sobre a lei que transformou a cultura Hip Hop, ou a chamada Roda Cultural, em Patrimônio Imaterial Cabo-friense.
Sou totalmente contrário à referida lei de autoria do vereador Davi Souza, apesar de entender que ela possa sim ter sido produzida com a melhor das intenções como reação à barbaridade policial e à exaltação da cultura popular ou, ainda, com a pior das intenções, usá-la politicamente para angariar votos dos jovens que participam dessas rodas culturais e da sociedade sensibilizada e horrorizada com o ocorrido.
Mas, o que me faz ser contrário à lei e sua sanção por parte do prefeito municipal são questões históricas e técnicas. Por exemplo, para que manifestações culturais sejam registradas no "Livro de Registro das Formas de Expressão" é necessário que as manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas sejam consideradas importantes para a cultura, memória e identidade local. Isso requer tempo, décadas ou séculos de ocorrência de tais atividades, como ocorre com o "Samba de Roda do Recôncavo Baiano", registrado em 2004. O mesmo ocorreu com a "Roda de Capoeira", que foi elevado, em 2014, à condição de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade". Inclusive, a capoeira, desde 2008, foi considerada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) como Patrimônio Cultural Imaterial devido ao seu valoroso legado cultural, advindo dos escravos africanos, ou seja, a temporalidade é essencial para que determinada ação cultural se transforme em Patrimônio Imaterial. Isso a cultura Hip Hop não possui, nem no Brasil, muito menos na cidade de Cabo Frio. Além de ser uma manifestação da cultura norte-americana exportada para nosso país no final dos anos 1980.
Sou totalmente favorável e sempre defenderei toda e qualquer manifestação cultural. Sou muito solidário, tanto à Batalhas do Mantém (do Manoel Correia), como a do Forte (Praça da Cidadania) e sempre vou combater a arbitrariedade e a criminalidade policial contra o povo da periferia. Contudo, sou extremamente contrário ao uso político da dor humana, de leis criadas em tempo recorde no intuito de promoção pessoal e de angariar votos.
1° Obs.: Segundo o Decreto-Lei nº 25/1937, Patrimônio Material é o conjunto de bens culturais móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. Esses bens são tombados.
2° Obs.: O patrimônio imaterial é relacionado a elementos abstratos, como hábitos e rituais. São exemplos de patrimônio imaterial: os saberes, os modos de fazer, as formas de expressão, celebrações, as festas e danças populares, lendas, músicas, costumes e outras tradições. Esses bens são registrados em livros.