Formação das Almas Febris no Brasil: Higienistas do Passado e do Presente
Ordem e progresso
Num feio dia lá estavam eles.
Aqueles homenzinhos de cabeça chata,
vestidos em seus uniformes cor laranja,
montados em suas monstruosas retroescavadeiras:
Boconas carregadoras bem abertas,
com seus dentes de aço bem afiados,
devorando tudo pela frente...
Não houve piedade com nada.
Não houve direitos humanos ou lei de proteção ambiental que os fizessem parar.
Num feio dia,
casas,
árvores,
pessoas,
foram todos postos a baixo,
para que o progresso pudesse passar.
Formação das Almas Febris no Brasil: Higienistas do Passado e do Presente
Tiago Ferreira torres
Resumo
O artigo ora apresentado, tem como objetivo levantar questões a respeito da administração pública referente aos centros urbanos que, ao longo de quase um século e meio de História, desde a proclamação da nossa primeira República, vem excluindo, enxotando de maneira abrupta e violenta, a população mais pobre para fora de seu ideal de cidade.
Palavras chaves: higienistas, administração pública, passado e presente, povo e elite.
“O presente e o passado se interpenetram. A tal ponto que seus elos, quanto à prática do ofício de historiador, são de sentido duplo. Se, para quem quer compreender mesmo o presente, a ignorância do passado deve ser funesta, a recíproca — embora não nitidamente alertado — não é menos verdadeira.” (Marc Bloch)
Esses dias, passando de carro pela rodovia Fernão Dias, vi uma pichação numa passarela que me chamou atenção. Nela, além dos típicos “hieróglifos” que acabo de dizer, feitos cada um a seu estilo e marca registrada de determinado grupo de pichadores ou pichador, havia também um ofensivo “Chupa Doria!”, em letras garrafais, como uma espécie de assinatura vituperando a lei anti-pixo criada recentemente pelo prefeito.
Na hora lembrei de um parque próximo ao Aeroporto Internacional de Cumbica, em Guarulhos, onde, também de passagem, notei que a parede do banheiro, que estava pichada tempos atrás, havia sido encoberta por alguns grafites. Pensei com meus botões: “olha só, quem diria, a pichação abrindo caminho para o grafite”. Pois o grafite é no mínimo aceitável, agora, quanto a pichação, não.
Pichação, como é de senso comum, é coisa feia, rabisco sem sentido, selvageria de vândalo, marginal, de desocupados, bandidos, drogados, desordeiros, gentinha que nasce com vocação natural para o mal, para poluir visualmente a cidade, entre tantas outras práticas anti-higiênicas vindas do seio dessas “classes perigosas”.
Pichar é coisa de pobre ocioso e sem educação, sem perspectiva de futuro, que quer mostrar que existe a força. Que faz questão de deixar sua marca, extravasar simbolicamente a violência da vida urbana que o sufoca. Que teima em invadir e vandalizar aquilo que não pode usufruir, que não é de seu direito, os locais onde não é aceito, onde não é admitida sua presença... São os não incluídos, a escória, os favelados!
… O que me leva a pensar que talvez seja esse tipo de gente também, os “herdeiros” daquelas habitações dos primeiros anos da nossa velha República, como no caso dos cortiços do centro do Rio de Janeiro (usado nesse trabalho, mesmo que de forma “exagerada”, apenas a título de exemplo comparativo. E se por venturar calhar as comparações, na certa será mera coincidência), os quais fizeram parte de um processo de erradicação encabeçada pelo prefeito da época, Barata Ribeiro, e mantido por seus sucessores, onde sua população foi forçada a “subir o morro” ou a se virar de qualquer outra maneira, não sendo mais permitida a sua “existência viciosa”, “sua marca infecciosa”, “suas vidas salazes” (Cracolandia), nos centros urbanos. Abrindo, assim, espaço para novas especulações imobiliárias, segundo a aposta de alguns indivíduos num modelo urbanizador e modernizador, e para a tentativa da referência estrangeira, estadunidense, principalmente francesa, como ideal político e cultural para o Brasil: João Doria?
O discurso dos higienistas contra as habitações coletivas interessou sobremaneira a grupos empresariais atentos às oportunidades de investimentos abertas com a expansão e as transformações da malha urbana da Corte. Haveria no processo um enorme potencial para a especulação na construção de moradias e no provimento da infraestrutura indispensável à ocupação de novas áreas da cidade… (CHALHOUB, 1996, p. 52)
… Mas, voltando ao presente. Quanto à parede do banheiro grafitada que eu dizia, para alguns ficou bom, porque assim pichador respeita, não picha por cima, não. Ou seja, a arte do grafite, que era rejeitada a pouquíssimo tempo, por bem ou por mal, parece que se impôs. Ou no caso, algo como: “o que vocês preferem, grafite ou pichação?”
O problema é que o prefeito, além de abominar pichador, que em sua maioria são oriundos de bairros periféricos e pobres , demonstrou também não ser um apreciador de grafites. Ele deixou a entender que prefere a cor cinza, tinta cinza no muro e nada mais. Segundo o que se sugeriu, essa talvez seja a cor ideal para o “projeto higienista” do prefeito Doria em São Paulo.
Vimos o que ele mandou fazer com os grafites na 23 de maio, não vimos? Azar foi que, picharam o muro cinza do João logo em seguida… o prefeito não entende que grafite, pichador respeita, não picha por cima. Ele não compreende que existe uma espécie de “código de conduta” entre ambas partes, pichadores e grafiteiros, o que de fato talvez não exista entre o prefeito e o povo humilde, garroteado.
Aliás, o governo e sua elite, a quem ele geralmente privilegia, quase sempre exclui o povo de seus projetos, de seus centros urbanos. Pois, curiosamente, essas “reformas higiênicas para o benefício da cidade”, se fosse realmente o caso de boas intenções... por que elas nunca começam da periferia para o centro?
Aliás também, a definição do que é ou não é grafite, do que é ou não é arte, parece estar bem resolvida na cabeça do Doria. Ele se faz de bem entendido no assunto, desde Dom Pedro ll não houve um mecenas no Brasil que se compare ao nosso atual prefeito. Um homem que viaja muito a negócios, “em benefício da cidade”, expondo ao mundo as riquezas de São Paulo e do nosso país. Assim como nos longínquos tempos do império, com exposições como a Exposição Universal de 1889, tão apoiadas pelo imperador Dom Pedro ll, na tentativa de expressar o Brasil como um grande fornecedor de matérias-primas e celeiro mundial...
Ironia à parte, estranho mesmo é que João Doria, ao contrário do que fez Jacques-Louis David, que usou sua arte em favor da pátria republicana francesa, deu a entender que quer acabar com a arte, ao invés de integrá-la aos seus ideais.
Porém, fica aqui a dúvida: afinal de contas, quem é João Doria – crítico de arte, empresário, prefeito ou Gari “que varre para debaixo do tapete os moradores de rua e usuários de drogas”?
O Prefeito Barata Ribeiro e o chefe de polícia da Capital Federal assumiram pessoalmente o comando das operações; e uma numerosa equipe se fez presente para auxiliá-los (CHALHOUB, 1996, p. 16)
Ou seria Doria, a versão paulista do histórico prefeito carioca, Barata Ribeiro, isso em pleno século 21? ... Ou ainda tudo isso junto, entre outras coisas mais? A quem ele representa? Qual o plano? O que há por trás dessa “limpeza”, dessa “higienização” da cidade?
Enfim, falando em “planos”, em “projetos”, em “representantes”, aproveito para retornar à República, assunto que é a referência para esse artigo, o qual está sendo usado em comparações sem muita perícia, mas que, a partir de agora, espero, será melhor articulado. Tentemos, então.
Mesmo que com certos receios, e com a suposta “bestialização popular”, em 1889 a República fora proclamada. Porém, fazia-se necessário algo que justificasse melhor a organização do poder no recente regime republicano, não bastando apenas o arranjo oligárquico para consolidar sua legitimação. Percebeu-se logo que era preciso elaborar um imaginário social, e para isso nada mais apropriado do que fazê-lo através de símbolos, alegorias, rituais e mitos, através da manipulação dos sentimentos coletivos.
Dessa maneira, haviam três correntes que se destacavam nessa celeuma ideológica e política, na disputa do que deveria vir a ser a natureza do novo regime: liberais à americana, Jacobinos à francesa e positivistas. Quem se apoderaria da imaginação do povo? Quem sairia vitoriosa na sua versão de República? A quem caberia a estabilização do novo regime?
Começava ai, a batalha pela criação de “um mito de origem”, a competição pela eleição de um “pai fundador da República”, a busca da personificação de heróis, que sintetize uma “identidade nacional”.
Nesse ínterim, falhou a tentativa dos republicanos brasileiros do uso da alegoria feminina, imitação da República francesa, como símbolo representante de ideias, valores e sentimentos que, por sua vez, foi inspirado pela antiguidade clássica Greco-Romana, nas figuras de Palas Atena e Afrodite.
No esforço de educação cívica, na produção de símbolos para a República, como no caso da criação de hino e bandeira nacional, prevaleceu a referência positivista, o qual usou com maior êxito a força do valor da tradição como trunfo para o seu modelo de organização da sociedade. Ou seja, nesse caso fez-se um ajuste com a tradição imperial e com valores religiosos emanados do povo. Povo esse que, vivendo basicamente a margem de tais disputas, mesmo que até certo ponto evocados nessas batalhas ideológicas, sofria com as novas políticas públicas das primeiras administrações republicanas. Voltemos, então, ao exemplo dado no início desse texto, a respeito da erradicação dos cortiços cariocas no período.
Sidney Chalhoub, em seu ensaio, fala da erradicação dos cortiços no Rio de Janeiro nos primeiros anos da administração republicana. Um de seus exemplos está no cortiço Cabeça de Porco, o qual segundo ele foi o marco inicial de tais práticas:
“É difícil entender o porquê de o Cabeça de Porco ter sido demolido de forma tão abrupta e violenta, e sem que providência alguma fosse tomada para acomodar as centenas de moradores envolvidos. Se nos detivermos apenas nos lances do espetáculo em si, é impossível perceber o sentido de tamanha demonstração de força, de capacidade de intimidação e, mais fundamental ainda, não se encontra a explicação para tanto ódio de classe”. (CHALHOUB, 1996, p. 19)
E ele acrescenta, mais a frente:
“O que mais impressiona no episódio do Cabeça de Porco é sua torturante contemporaneidade. Intervenções violentas das autoridades constituídas no cotidiano dos habitantes da cidade, sob todas as alegações possíveis e imagináveis, são hoje um lugar-comum nos centros urbanos brasileiros. Mas absolutamente não foi sempre assim, e essa tradição foi algum dia inventada, ela também tem a sua história. O episódio da destruição do Cabeça de Porco se transformou num dos marcos iniciais, num dos mitos de origem mesmo, de toda uma forma de conceber a gestão das diferenças sociais na cidade” (CHALHOUB, 1996, p. 19)
Haja vista mais uma vez – e que nos perdoe a insistência nessas comparações – a referência ao atual prefeito de São Paulo João Doria e sua “operação cidade linda”, como se chamou.
… Foi criada então a Junta Central de Higiene, órgão do governo imperial encarregado de zelar pelas questões de saúde pública… (CHALHOUB, 1996, p. 30)
De 5 a 10 mil reais em multa para quem pichar a cidade, e dessa forma, todos os males que existem por detrás desse ato de “vandalismo” (à parte a discussão do que venha a ser arte ou não), será extinguido…
Por outro lado, talvez a “sofisticação, higiene ou decência que se espera dos jovens pichadores”, a falta delas, seja um dos sintomas de tantos outros direitos que lhes faltam também, como por exemplo o de moradia e educação digna.
As favelas de hoje, são descendentes dos cortiços de outrora.
…Nos dias que se seguiram, o prefeito da Capital Federal foi calorosamente aclamado pela imprensa — ao varrer do mapa aquela “sujeira”, ele havia prestado à cidade “serviços inolvidáveis”. Com efeito, trata-se de algo inesquecível: nem bem se anunciava o fim da era dos cortiços, e a cidade do Rio já entrava no século das favelas… (CHALHOUB, 1996, p. 17)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte imperial /. Sidney Chalhoub. — São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil. São Paulo. Companhia das Letras: 1990.
CASA NOVA, Andréa. Quase todos brancos.