MENINO DE RECADO
Existem pessoas que sabem cumprir muito bem o papel de “menino de recado”. No trabalho privado ou público, nas academias, nas organizações sociais, nos partidos políticos e até nas organizações religiosas... Existem pessoas que gostam desse papel e fazem de tudo para cumpri-lo bem. E existem, também, pessoas que gostam de fazer com que os outros se enquadrem nesse papel.
Quando ocorre o encontro entre esses dois estereótipos dar-se a “perfeição”. Gera-se uma espécie de fusão ou uma combinação paranóica entre ambos os papeis: de ser e de fazer com outros sejam “menino de recado”.
O sistema capitalista é, na verdade, o grande criador dessas figuras. É um comportamento cultural típico de uma sociedade autoritária ou de uma democracia cuturalmente capenga, onde as regras são estabelecidas pelo poder do cargo, pelo poder da grana, pelo diploma, pela origem e pelo status social. Mesmo no meio acadêmico, o culto ao “canudo” estabelece relações preconceituosas e fundamentalistas que constrói fossos e apartações entre as diversas linguagens e saberes. Desta forma, mesmo quando alguns atores exponenciais da academia fazem a defesa do “saber de experiência feito”, o fazem do seu lugar e da sua visão de “conhecimento certificado”, portanto superior, “infalível e plenamente capaz”. Mesmo entre os doutores que carregam e promovem a bagagem da educação popular observa-se um fundamentalismo acadêmico e uma necessidade de justificar quase tudo pela teoria, pelos conceitos e doutrinas ditas cultas, que nem sempre foram submetidos a uma práxis. Desta forma, textos como este que ora trago sempre serão considerados híbridos, posto que, propositadamente não estabelece conexão de diálogo com nenhum grande autor. Assim sendo, este modesto texto não terá o status de “artigo científico”, por não cumprir as regras acadêmicas. Diante dos ditames e protocolos científicos que garantem a manutenção do status quo, até mesmo o chamado “notório saber” é um “menino de recado”, que busca entrar num “jogo sem ficha”, termo usualmente qualificado no meio popular para definir uma pessoa que quer transgredir as regras de certas situações estabelecidas.
O presente artigo traz distintamente dois tipos de "menino de recado". A diferença entre um e outro “menino de recado” é o tipo e o estereótipo, a que serve e o papel que cumpre no processo das relações sociais. Seguramente, o leitor atento saberá identificar nas entrelinhas, que recados simbólicos e concretos justificam esta publicação.
A figura do “menino de recado” é sempre uma figura secundária no processo das relações sociais. Ela se condiciona a ser mandada ou as condições obrigam a que se acomode, mesmo que isto lhe retire a essência, que significa ser sujeito e não sujeitada.
No mundo do trabalho, onde se dá a exploração e o choque da relação trabalho-capital, esta situação é muito comum. Pessoas capazes, portadoras de dons natos e potenciais produtivos são esmagadas na sua condição de sujeitos. Sujeitam-se e aniquilam-se sem perspectivas, pois seus comportamentos proativos, contraditoriamente, tornam-se ameaças para o sistema das acomodações estabelecidas. O sistema termina por “adequar” o comportamento e atrofiar a liberdade de expressão e ação das pessoas. Mesmo diante das transformações e da evolução das empresas, bem como da mentalidade empresarial, a cultura do servilismo e do autoritarismo está arraigada, intrínseca, no processo e na cultura das relações. Se nas organizações privadas a realidade é assim, nas organizações públicas e sociais, infelizmente a situação é deveras semelhante e, pode-se afirmar que chega a ser mais grave. Via de regra, as relações são estabelecidas entre quem manda e quem obedece. Os métodos não são trabalhados e utilizados para aprofundar e aprimorar a relação entre supostos companheiros. Aparentemente, existem decisões e gestões colegiadas, decisões democráticas e a partir do princípio do “quem decide é a maioria”, mas na prática a decisão e o objeto dela, passam longe das pessoas para quem interessa este ou aquele encaminhamento. Ou seja, há na atualidade – como nos tempos de arbítrio -, um grande “faz de conta” e uma suprema falácia de que existe democracia por dentro dos processos. Existe teatro ou opera bufa. Existe o mito mais do que ilusório de democracia. Mas democracia de fato não existe. É letra morta, quando se observa a falta de educação, metodologia e planejamento das ações, que em momento inicial até agregam debate e participação pontual, mas não se tornam orgânicos no passo a passo da execução. Claro que esta afirmação não retira as inúmeras experiências e aprendizados, os avanços e inovações do processo histórico e das tecnologias que encaminham para olhares bem distintos e alvissareiros através das metodologias participativas, contudo, não se pode fugir de uma constatação que remete a uma prática cultural, infelizmente prevalente, apesar das imensas possibilidades que existem para se agir e fazer diferente.
Como falar de democracia ou mesmo de companheirismo nos processos de trabalho público e privado, quando nas organizações, empresas, universidades, nos partidos políticos, igrejas, sindicatos e escolas as pessoas estão jogando e representando estruturas para salvaguardar interesses pessoais ou de guetos que sequer chegam a serem grupos? O discurso democrático se faz notório em quase todos os setores. O que falta são vivências, metodologias e práticas educativas que encaminhem para a mudança de paradigmas;
Como falar de democracia quando os projetos são subordinados às demandas de interesses particulares ou mesmo quando estas demandas são priorizadas em detrimentos das demandas coletivas? Existe um comportamento cultural predominantemente antagônico a uma prática ou ação compartilhada que dê forma aos processos de construção coletiva;
Como falar de democracia quando a relação entre companheiros mais parece uma contenda entre ferozes inimigos?
Como falar de democracia quando não existe a compreensão de que não devem ser os fundamentos capitalistas a pautarem o comportamento das pessoas e das organizações populares?
Como falar de democracia quando predomina o comportamento e a postura patronal na relação entre “companheiros”.
Como falar de democracia quando o sistema político-econômico mundial hegemônico estabelece na sua forma mortífera que a regra para oitenta por cento da população mundial é o “salve-se quem poder, mesmo quando o desenvolvimento científico e tecnológico oferece indicadores de que é possível incluir a todos no processo de desenvolvimento, bastando que se mude a lógica do desenvolvimento predatório, centrado na desigualdade e na exclusão?
Estes questionamentos devem calhar bem para todos nós que estamos vinculados a alguma organização.
Nos partidos do campo da esquerda, falam-se muito em democracia, exaltam-se muito os termos “companheiro” e “camarada” nos discursos e nas relações superficiais cotidianas, mas há que se avaliar que no nosso ambiente político presente, companheirismo e camaradagem são valores essenciais que faltam. O ambiente dos partidos políticos é seco, árido e muito insensível. A mística que se afirma na história e na profundidade que encerram estes tratamentos tão peculiares está desgastada e corroída pelas posturas e práticas avassaladoras dos reais interesses e valores humanos. Não precisa nem ilustrar com exemplos históricos bem recentes que marcam negativamente a imagem de alguns partidos do campo da esquerda e de suas personalidades: palavra dada é palavra vazia, compromissos e acordos estão condicionados à posição dos ventos, princípios são como objetos voadores não identificados ou quando menos, usam-se para a defesa ou proteção de interesses mesquinhos partidários e quase nunca para causas nobres e engrandecedoras do processo político histórico.
É duro fazer esta reflexão. É como cortar a própria carne. Mas ela é fundamentalmente necessária para quem deseja salvar alguma coisa do que ainda se acredita.
Quando o corretíssimo médico psicanalista Valton Miranda Leitão aborda questões políticas fundamentais ancorado na psicanálise e no seu princípio político de intelectual militante oferece uma grande contribuição que perpassa os aspectos conjunturais. Mas, infelizmente, sua mensagem não encontra eco diante do vazio e da hipocrisia que permeiam as relações no mundo político, econômico e até religioso. O sistema conseguiu a proeza de enquadrar quase todos. Os partidos de esquerda mais parecem que estão agindo, tantas vezes, em função dos partidos de direita. Os partidos de direita cumprem o papel de conduzir a política para a lixeira, onde cabe todo tipo de lixo na forma de comportamento, negação dos valores fundamentais e desprezo aos fundamentos do que deveria ser uma civilização verdadeira, de homens e mulheres, seres humanos amorosos e sujeitos da história.
Ao mesmo tempo em que não podemos e não devemos negar a política com todo seu acúmulo histórico para a humanidade, também não temos o direito de submeter às futuras gerações, ao papel ordinário e efêmero de ser coisa nenhuma, na medida em que se busca “adequar-se” a um sistema que nos reduz à condição de meros consumidores e lixo humano emergente, desprovidos de ideais. Os processos de evolução tecnológica e científica, na prática não atingiram o humano. O sistema se encarregou de adaptá-los para servir à lógica do mercado. Efetivamente não estão servindo para o desenvolvimento humano. O ser humano e seus valores fundamentais estão decadentes. Não seria papel das esquerdas aprofundarem isto? Não seria papel dos partidos de esquerda, das igrejas e organizações sociais construírem uma pauta nova para a humanidade?
Estamos girando em circulo como o esteriótipo “menino de recado” que gravita em torno das ordens do seu chefe. Não estamos conseguindo enxergar o grande fosso que está à nossa frente. Vai-se tropeçar e cair. A luneta do conhecimento está embaçada, pois todo o conhecimento foi apropriado para manter o status quo e o domínio pleno do “deus mercado”. Mercado de consumo, mercado religioso, mercado político e o império da iniqüidade.
E o que dizer do jogo político cotidiano e dos processos eleitorais? Dizer que a tática da esquerda é a mesma da direita? Que os interesses mesquinhos prevalecem sobre os projetos? Que não há transparência e relação de confiança entre partidos do mesmo campo? Que “companheiros” torcem e armam ciladas táticas para impedir a ascensão de outros companheiros? Que a figura do inimigo político é canalizada para pessoas que defendem o mesmo projeto e não para o sistema e seus prepostos? Que as eleições estão sendo apresentadas como fim e não como meio? Que a prática da direita é como um vírus a infestar a esquerda? Que esta prática está levando todos a jogarem o jogo do capitalismo, em arena capitalista e a negar outros olhares e possibilidades? Que a escassez de sinceridade revela a hipocrisia e o quanto quase todos estão fugindo dos valores que deveriam nortear a relação entre companheiros?
Estas problematizações nascem da figura do “menino” que sem fingimento e hipocrisia busca afirmar valores. Todo menino, toda menina, toda criança é sincera. E quantos recados uma criança vive a mandar em seu estado natural? Ainda livre da poluição que invade a dita mente culta e adulta, o menino e a menina transgridem, subvertem, geram incômodo por não saber mentir. Esta alegoria remete para outro sentido de “menino de recado”. Quem sabe, para o real sentido do cidadão e da cidadã que busca participar e interferir de forma protagônica e autônoma no processo da vida social... Para que o cotidiano não pareça uma coisa estática e movida pela mesmice, como se o tempo e o mundo não fossem um permanente movimento. A figura tão comum do esteriótipo “menino de recado” gerado no contexto do “deus mercado” assegura em sua forma de agir “que tudo continua como está, que nada muda, que nada se transforma”. Já um outro “menino” transgressor, rebelde, inquieto e idealista pode surgir a todo tempo e estação, basta que o ser humano não se desprenda da sua real essência de ser. Assim, o recado se transforma em movimento, em afirmação de uma nova lógica, que combina valores ancestrais com a busca permanente do conhecimento, como forma de superar a natureza bruta e bestial que invade a sociedade humana movida a futilidade e inutilidade, como subproduto da sociedade de consumo. E o novo "menino de recado" que surge do intenssíssimo movimento da vida assevera: “Quando os valores se perdem tudo se perde!”. As suas problematizações e perguntas geradoras conduzem ao horizonte das possibilidades que o ser humano tem de transformar a realidade. Daí ele afirmar que, nem tudo está perdido, nem tudo está dominado, pode-se ressurgir das cinzas e afinal se soltar um grande brado, que todo amor é sagrado!
Que todos e todas libertem o “menino e a menina de recado” que reside em seus corações!
Em tempo: o presente ensaio não se propõe a negar e a colocar tudo e a todos na vala comum das aberrações humanas e sociais. Mas, diante do atual estágio da humanidade, em situação de crise profunda dos valores humanos e das disparidades sociais que ameaçam a preservação da vida no planeta, há que se problematizar, refletir e se inquietar. Afinal, diz a letra da música do poeta Ray Lima: “Nada continua como está, tudo está sempre mudando, o mundo é uma bola de idéias, se transformando”!
As mudanças ocorridas no Brasil, ao longo do Governo Lula sinalizam um esperançar benéfico que projeta luz, na perspectiva da concretização da “paz na terra, paz na ONU, paz no nosso País”! Só que precisa que milhões de "meninos e meninas", mundo afora soltem o seu recado!