Sic transit gloria mundi
Essa frase, provavelmente adaptada de um trecho do livro devocional “Imitação de Cristo”, escrito pelo padre alemão Tomás de Kempis e publicado no século XV, até 1963 fazia parte da cerimônia de posse dos Papas recém-eleitos, lembrando-lhes a transitoriedade das pompas e glórias deste mundo.
Com certeza, seria muito benéfico se todas as pessoas a tivessem gravada no espelho em que se olham todas as manhãs, ou na tela do computador com o qual trabalham. Eu a tenho. E fiz também o que para os amigos parece uma brincadeira, sendo-me, porém extremamente útil: por acaso encontrei uma foto pessoal aos 17 anos de idade – no auge do narcisismo hebiátrico – fazendo pose de herói, com o tórax descoberto e mostrando os músculos em construção. Nas mãos, uma espada, tal e qual um legendário corsário. Aos 70 anos de idade, resolvi repetir a pose. Confesso que não estava de todo mal, contudo, o espaçamento de 50 anos fez uma enorme diferença. Tomei então as duas fotos e coloquei-as lado a lado, num quadro onde grafei, no alto, a frase que dá nome a este artigo. O quadro, coloquei-o na sala onde tomo o café da manhã, e onde fazemos nossas refeições. E por uma questão de disponibilidade e não de coincidência – que não creio existir – ele foi posicionado exatamente em cima da caixa onde guardo os remédios que tomo diariamente, para controlar a pressão arterial e outros achaques que em mim fizeram morada quando entrei na década dos sessenta. Ao procurá-los para a medicação diária, sempre contemplo as duas fotos, que ficaram bem à vista.
Como disse, para alguns amigos é apenas uma brincadeira, contudo, para mim é um marcante lembrete que passou a balizar a minha vida. “Assim passam as glórias do mundo”, é a tradução livre, e o sentido dessa frase. E a mim me recorda – e reforça – a transitoriedade das coisas, a impermanência de tudo e de todos. Para alguns a frase pode parece mórbida, mas para outros, é extremamente benéfica quando são capazes de lê-la com o coração e a mente, não somente com o olhar crítico para uma realidade que não deve – mas o faz – ameaçar ninguém. Sim, pois somos todos fugazes, transitórios, assim como o são todas as nossas obras, nossos títulos, nossos bens materiais, as pessoas a quem amamos, nossas vãs filosofias e vaidades. Cada dia que vivemos, temos a oportunidade de aprender coisas, de fazer coisas, de corrigir coisas. Contudo, quanto tempo perdemos com tolices, com inúteis miudezas, com as frustrações e consequências de mesquinhos sentimentos e desejos, com vãos objetos de nossas pretensões.
A vida é um dom muito precioso, para ser desperdiçado com falácias. Temos uma inteligência superior à de todas as demais criaturas, mas a desgastamos criando castelos no ar. Acumulamos bens materiais, sem nunca nos questionarmos para que o fazemos. Trabalhamos – e isso é bom – mas tornamos o trabalho num mal devastador quando nos escravizamos a ele. Há quem afirme que quer morrer trabalhando. Eu optei por esperar o momento de deixar essa vida, gozando do fruto do meu trabalho, contudo longe dele, desde que completei 70 anos de idade. Foi quando fiz a segunda foto. Descobri que tinha potencial para viver mais alguns anos, em condições razoáveis para aproveitar o que a vida ainda pudesse me oferecer. Obviamente não iria sentar numa poltrona e esperar o mundo colocar tudo aos meus pés. Médico, por vocação consciente, cirurgião plástico por encantamento com as reconstruções de mutilados, sabia que minhas mãos – sempre precisas, seguras e eficientes -- iriam lentamente perder suas habilidades. Afinal, é a evolução anátomo-fisiológica normal. Encerrei então minhas atividades médico-cirúrgicas, deixando espaço para os mais jovens, pois a eles passou a pertencer o lugar que eu ocupava. E dediquei-me a outras atividades, prazerosas e menos desgastantes.
Sempre defendi o dever dos idosos ocuparem o lugar que lhes cabe por direito conquistado, deixando para os jovens o dinamismo do presente e do futuro. Busquei outras atividades, que não demandavam o que a natureza já me retirava, contudo sem mágoas, sem revolta, sem frustrações nem arrependimento. Não mais compromissos estressantes de horários, de tarefas, de imposições administrativas. Gostando de escrever, passei a fazê-lo com intensidade. Gostando de ler, passei a ter mais tempo para degustar leituras sem obrigações e compromissos. Apreciando a natureza, mudei-me para onde pudesse caminhar quase todas as manhãs – disse quase, pois nada de obrigação! – respirando o ar puro, ouvindo as ondas do mar, como o faço agora, fotografando o belo quando se me apresenta. E outras tantas coisas mais que não preciso enumerar, bastando a cada um usar sua imaginação para buscar o que lhe faz feliz.
Subsistência? Bem, esse é um problema sério no país em que vivemos hoje. Mas, com jeito, com bom senso e parcimônia, a minguada aposentadoria oficial (que sobra e é pontual para legisladores, juízes e governantes, mas intermitente e quase estática em suas correções, para os demais cidadãos) somada a algumas modestas fontes extras, fruto dos cinquenta anos de intenso trabalho, têm sido suficientes. Quantos anos de vida ainda terei, não sei nem isso me preocupa. Basta-me vive-los parcimoniosamente, com a dose certa de qualidade, e sobretudo dignidade.
Nesses últimos anos, tenho recebido muitas notícias de amigos, colegas de profissão e de lutas, pessoas que realizaram magníficos trabalhos, que ganharam notoriedade, que foram justamente homenageadas por diversas vezes, e que num inesperado momento foram chamadas para a outra vida (na qual creio com absoluta fé e confiança). Cada notícia dessas que recebo, leva-me aos meus álbuns de retrato, numa rápida viagem ao passado. Dirijo-me em seguida, ao quadro na minha sala, e me ponho a contemplá-lo, relendo e meditando: “Sic transit gloria mundi”.
(artigo publicado no portal "Dom Total", em 09/09/2018)