Fé e Gratuidade: Uma pequena análise de Lucas 17,5-10*
Para aquele que se dispõe a caminhar rumo a Jerusalém celeste, duas virtudes se fazem necessárias, a saber: fé e gratuidade.
O caminho para Jerusalém não é fácil. Ele não implica na eliminação da Cruz e do sofrimento. Pelo contrário, aquele que busca o céu deve estar disposto a assumir as cruzes cotidianas e os desafios que fazem parte do inédito da vida. Por isso, mais do que nunca, é necessário reforçar a fé e perceber que na vida tudo é dom e graça de Deus.
O Evangelho de Lucas (Lc 17,5-10) apresenta Jesus e seus discípulos caminhando para Jerusalém. Durante esse caminho, Jesus profere alguns ditos que carregam consigo ensinamentos preciosos. Em Lucas 17,1-5, Jesus fala de duas dificuldades próprias do caminho cristão e do convívio comunitário: o escândalo e o perdão. Se de um lado, devido à fraqueza humana, o escândalo é inevitável e carregue consigo sérias consequências, por outro lado, somente o perdão nos capacita a seguir em frente e não se deixar deter pela dureza da caminhada. O perdão liberta o coração das amarras que nos impedem de ir e ver além dos próprios sofrimentos e dores causados pelo outro.
No entanto, o exercício do perdão e da superação dos escândalos não é nada fácil. Não por acaso, entre os versículos 5 e 10, do capítulo 17, do Evangelho de Lucas, Jesus, movido pelo questionamento dos apóstolos indica-nos os remédios necessários para não pararmos de caminhar. Diante de tantas oposições e dificuldades enfrentados no caminho para Jerusalém, muito diferente do sucesso e aceitação experimentados no Ministério Público de Jesus na Galiléia, os apóstolos se veem obrigados a pedir ao Senhor que lhes aumente a fé.
Em primeiro lugar, é importante perceber que o pedido parte do grupo dos discípulos mais próximos de Jesus. Os doze são aqueles escolhidos a dedo pelo Mestre para dar continuidade à sua missão. São estes que, mesmo estando ao lado de Jesus, reconhecem a sua fragilidade e incapacidade de se manterem firmes no propósito que desembocará na cruz. Eles entendem que só é possível seguir a Jesus Cristo até o fim se forem dotados de muita fé. Convém aqui destacar que, na mentalidade semítica, fé não é algo abstrato, não é acreditar em um conjunto de normas, regras e preceitos revelados por outrem. O conceito de fé ultrapassa a ideia de adesão a uma verdade revelada por outrem, tal como ensina a filosofia. Fé, aqui, é adesão pessoal. É aderir a pessoa de Jesus Cristo e se propor caminhar com ele até o fim, assumindo o projeto do Reino como coisa própria. É se unir ao rabino da Galileia até as últimas consequências, mesmo que isso implique em entregar a própria vida com ele. Os apóstolos entendem que para agir desta maneira é preciso ter um elevado quantitativo de fé. É neste contexto que a resposta de Jesus impressiona. Para falar a verdade, o Senhor coloca em xeque, até mesmo, a quantidade de fé que os discípulos acreditavam ter. Se o pedido dos apóstolos demonstra a humildade destes, em reconhecer suas próprias fragilidades e finitudes, a resposta do Mestre da Galileia desperta atenção para o qualitativo da fé que os apóstolos deveriam possuir. Por meio de uma imagem hiperbólica conhecida pelos homens de seu tempo, Jesus mostra que no campo da fé mais importante do que a quantidade é a qualidade. É como se Jesus dissesse: “para fazer coisas incríveis e impossíveis no seguimento do meu Evangelho não precisa ter uma quantidade grande de fé, basta ter uma boa qualidade de fé; uma fé de bases sólidas e raízes profundas que não se deixa abalar pelas dificuldades. Essa fé é capaz de transpor montanhas e árvores e possibilitar ao cristão perseverar até o fim no caminho que leva ao céu, assumindo e superando, inclusive, as cruzes próprias da existência humana e da caminhada de fé. Os discípulos pedem ao Senhor que lhes aumente a fé. Jesus responde chamando-lhes a atenção para que percebam que, para chegar ao céu, não importa a quantidade, mas sim a qualidade da fé. Se a fé cristã for qualitativamente boa, não haverá barreiras ou fronteiras capazes de impedir o fiel de chegar ao seu objetivo. Esta fé é capaz de fazer milagres acontecerem.
Diante da resposta do Mestre, afim de que os discípulos não pensassem que o sucesso da caminhada cristã é uma questão de méritos, imediatamente após falar de fé, Jesus apresenta uma parábola que versa sobre a função do servo. A imagem é bem conhecida pelos seus contemporâneos. Nela é apresentado um patrão pobre, que possui somente um empregado. Este servo tem a tarefa de cumprir todas as atividades da casa na presença do seu senhor. O que Jesus quer chamar atenção nesta parábola é acerca da gratuidade daquele que se dispõe a servir. A conquista do Reino dos céus não é uma questão de mérito. Não basta cumprir todas as regras, normas e preceitos para achar-se no direito de possuir alguma coisa no céu. Ser bom, aqui, é cumprir uma tarefa e dever que compete a todos. Não se deve esperar uma recompensa quando se faz o que devia fazer. De acordo com os ensinamentos de Jesus, ser bom não é uma questão de mérito, mas sim um dever do cristão. Provavelmente, Jesus está alertando os seus discípulos acerca do perigo do farisaísmo. Pois, os fariseus acreditavam que bastava cumprir todas as regras e normas estabelecidas pela lei de Deus para que tivessem o direito garantido de acesso ao céu. Deus aqui estaria reduzido a uma função de contador. A salvação não seria graça dom, mas meramente fruto do trabalho esforço pessoal. Jesus quer afastar esse tipo de pensamento da cabeça de seus seguidores. Por isso, ele usa uma palavra dura: somos servos inúteis fizemos o que devíamos fazer. A inutilidade, aqui, não é sinônimo de incapacidade para realizar determinada tarefa. Inútil está no sentido de desnecessário. O servo não pode se arrogar o direito de exigir algo por ter cumprido somente o seu dever. Jesus está dizendo o seguinte para os seus apóstolos: “trabalhem para chegar ao céu como se isso só dependesse de vocês. Mas, tenham certeza de que, no final de tudo, a entrada de vocês no Reino dos Céus sempre será fruto da graça de Deus”. As nossas ações não têm poder para forçar a mão de Deus. Elas simplesmente demonstram que nós queremos o céu e estamos dispostos a nos esforçar para alcançá-lo. Contudo, Deus, nosso Pai, é sempre livre no seu agir. Ser bom não é fazer um favor que implique em recompensas. Ser bom é dever e tarefa do cristão. Com isso, Jesus está nos recordando que tudo na vida é graça de Deus. A possibilidade de servir já é a recompensa daquele que serve. Jesus está convidando os seus discípulos a se exercitarem na virtude da gratuidade; a fazerem o bem sem esperar nada em troca, nem mesmo um muito obrigado. Só quem age de modo gratuito é verdadeiramente livre e entendeu a sua missão no mundo.
O cultivo da fé e da gratuidade fazem com que o cristão caminhe neste mundo e sirva a Jesus Cristo de modo sereno na certeza de que fazer o bem vale por si e em si mesmo. Peçamos a Deus uma fé viva e amadurecida capaz de nos tornar aptos para o serviço do Reino.