Criação: uma proposta evangelizadora
O ser humano é criatura. Essa afirmação tem implicação direta na atual ação evangelizadora, uma vez que ela liberta o ministro ordenado ou agente de pastoral de uma série de ações erradas no trabalho pastoral e lhe permite uma ação mais eficaz, por atingir aquilo que é mais essencial no homem de todos os tempos.
Antes de prosseguir, é preciso ressaltar que o entendimento do homem enquanto criatura e, consequentemente, de Deus como criador tem uma profunda ligação com a primeira experiência que o homem tem de Deus que é a do Deus libertador. A concepção de criação deve ser entendida à luz da salvação. Deus cria salvando, como dirá a Escola franciscana medieval e a Teologia Bíblica o confirmará. Sendo assim, noção de criação deve ser entendida no contexto da fé que progride paralelamente à história salvífica de Israel. Afirmação do Deus criador mostra que a atuação deste Deus não se limita ao tempo e espaço. Por outro lado, o conceito de criação desvinculado do conceito de salvação faz com que Deus perca o seu caráter pessoal e lança o crente no deísmo, onde o Deus impessoal não se preocupa ou age na história humana.
A verbalização do relato da criação, no Livro do Gênesis, consegue reunir e apresentar numa síntese perfeita uma visão acerca do que é o homem contida nas quatros tradições que dão origem a tal relato: Javista, eloísta, sacerdotal e deuteronomista. A primeira tradição afirma a alteridade em seu relato. Em outras palavras, a afirmação da criação implica na existência do criador e da criatura que se relacionam. Nesta relação, Deus é Deus e o homem é homem, ou seja, não é Deus. Sendo assim, o homem é lançado numa profunda relação de alteridade, onde deve admitir a existência do outro. Disto brota a noção de homem enquanto ser de relação. Essa relação se dá em três vertentes: com Deus, seu criador; com a mulher, sua igual; com a natureza e os animais, o outro acerca do qual o homem tem certa solidariedade e é responsável. De acordo com esse relato, o criado possui um limite e tem uma dependência do criador. Deus é livre no seu ato criador e na sua relação com a criatura. Isso implica na dinâmica da receptividade do homem. O homem, assim, passa a entender e a receber tudo na vida como um dom, afinal o mundo criado é anterior a ele.
O relato eloísta, por sua vez, aponta para a infidelidade do homem que mostra o seu limite, a sua finitude, a sua carência de ser. O homem não é Deus e, portanto, não se basta a si mesmo. Neste sentido, todas as vezes em que o homem nega a sua criaturalidade, a sua limitação, que é abertura, acaba por negar-se a si mesmo.
Já o relato sacerdotal aponta para a bondade de Deus e também da criação. Somente Deus é Deus e tudo que ele faz, ainda que não seja ele, é bom. Deus é quem nomeia as criaturas e isso demonstra seu senhorio sobre elas. O interessante é que no relato da criação Deus permite que o homem mesmo sendo criatura participe deste seu senhorio em relação aos animais os quais o homem também é convidado a nomear. Nesta perspectiva o homem é lançado numa sadia tensão onde é colocada a sua diferença em relação ao criador e em relação às demais criaturas.
Essa noção ganha impulso com a visão deuteronomista da solidariedade criatural, ou seja, todos somos criaturas. Ninguém é Deus e, portanto, na relação entre os homens, ninguém é melhor que o outro e, na relação do homem com as demais criaturas o domínio do homem deve ser entendido enquanto administração responsável.
Do relato da criação brota no homem a certeza de que é um ser de relação. Essa relação se dá com iguais (homem – mulher), diferentes (outras criaturas) e com o totalmente diferente (Deus). A quebra desta realidade ou não aceitação da mesma é o que introduz o mal no mundo.
Destas noções apresentadas emergem algumas relações que podem ser trabalhadas na ação evangelizadora. A primeira é a afirmação da bondade de Deus que retira a possibilidade de se cogitar a partir da Bíblia qualquer dualismo metafísico, ou seja, a existência de um princípio mal com quem Deus luta para criar. O mal, a não salvação que se encontra no mundo, é resultado da infidelidade ou não aceitação da proposta de Deus para o homem. Portanto, na pastoral não há espaço para culpabilização de Deus acerca do mal ou das situações de não salvação existentes no mundo. A pastoral deve ser um convite ao homem para se tornar cada vez mais consciente e responsável por suas atitudes.
De acordo com o relato bíblico, a relação do homem com a mulher deve ser sempre uma relação de igualdade e não escravidão. Isso leva a pensar que na ação evangelizadora deve ser abandonada a tendência sexista que visa ressaltar um gênero em detrimento do outro. Na vida eclesial não deve ter espaço nem para o machismo e nem para o feminismo, mas sim para a integração sadia e salutar entre homem e mulher. O mesmo pode ser dito para as relações matrimoniais. Pois, é o contato com o outro igual que faz a pessoa humana crescer no seu processo de humanização.
No que se refere à tão falada consciência ecológica, o relato da criação propõe ao homem um agir responsável para com a natureza, pois a ela o homem é solidário, enquanto criatura, e responsável, enquanto co-criador que é capaz de modificá-la e administrá-la em vista do bem de todos. Neste sentido o pensar uma eco-teologia que trate do tema do cuidado para com a criação é essencial. A ação evangelizadora deve, assim, procurar tratar e ocupar-se de ações que visem melhorar a relação entre homem e o meio-ambiente.
Outra atitude que surge da consciência do homem enquanto criatura é a aceitação e assumida dos próprios limites. O homem não é Deus e também não deve aceitar que homens ou instituições se coloquem no lugar deste. Essa atitude de assumir e aceitar os próprios limites faz com que a vida e a ação evangelizadora sejam vividas com mais leveza e graciosidade, o franciscano diria na pobreza, ou seja, encarando tudo que recebe como dom e preparando-se para cada vez receber melhor aquilo que nos vem de encontro no inédito da vida. Essa percepção de nossa pobreza ou finitude criatural implica em olhar para os dons recebidos com responsabilidade. Isso faz com que tudo seja cuidado e bem administrado, pois não se é dono do que se tem. Neste sentido, a ação evangelizadora deve convocar o homem a uma atitude orante de louvor e agradecimento Àquele que tudo criou.
No que tange a relação entre Deus e o homem, a afirmação da criaturalidade do segundo e de seu, conseqüente, relacionamento com o primeiro implica na superação do medo da liberdade, ao mesmo tempo em que põe fim ao pseudo-dilema do ateísmo contemporâneo que não concilia a existência do homem com a afirmação de Deus, por não entender que a relação de alteridade implica na afirmação do valor do outro em si mesmo. Assim, fica descartada uma ação evangelizadora pietista que para afirmar a Deus fica constantemente negando o homem e desvalorizando o dom da liberdade recebido de Deus.
O fato de Deus ter criado o homem e a mulher implica em afirmar a corporeidade como algo querido por Deus e participante da perfeição humana. Sendo assim, os medos do corpo e da sexualidade perdem o sentido diante da ótica da criação e esse medo fica expurgado da ação evangelizadora e pastoral. Não se tem espaço para um diálogo profícuo com a juventude desconsiderando a bondade da sexualidade humana.
A igualdade entre os homens aponta na ação evangelizadora para o fim de atitudes paternalistas, manipuladoras, dominadoras e infantilizadoras na pastoral e na missão. O homem não deve ser tratado como um mero repetidor de idéias dos outros, mas tem o direito de estabelecer sínteses pessoais do seu modo de agir, pensar e crer. Não se pode pensar numa ação evangelizadora de estilo “rolo compressor” que desqualifica o outro em sua cultura e individualidade. Neste sentido, a afirmação da criação implica em uma atitude evangelizadora dialógica-relacional.
Também a responsabilidade humana apontada no relato da criação retira do homem a desculpa do fatalismo, passividade e alienação na sua relação com o mundo e a sociedade. Neste sentido, a ação evangelizadora não pode ficar restrita à sacristia, mas tem a tarefa de incentivar os fiéis a serem “fermento na massa” e adentrarem todos os campos da vida humana e assim levedar a massa da existência temperando todos os setores da vida com o sal do evangelho, inclusive a política.
Por fim, a ação evangelizadora deve apontar sempre para o respeito á dignidade da vida humana, imagem e semelhança de Deus que é bom. Neste sentido, o caráter profético da ação evangelizadora da Igreja deve sempre denunciar tudo aquilo que representa a cultura de morte e é contrário à vida e à dignidade da pessoa, tais como a injustiça em todas as suas dimensões.
A afirmação da criaturalidade do homem, conforme foi tratado ao longo do texto, aponta para a relação dialogal do ser humano, deixa entrever o rosto do homem, a partir da perspectiva teológica e, ao mesmo tempo, convoca para uma atitude evangelizadora condizente com a noção de homem que emerge do relato bíblico da criação.