O OUTRO ME REVELA
“O inferno são os outros”, ensinou, em certa ocasião, um famoso filósofo existencialista. E, de fato, ele tinha razão. O outro sempre nos desaloja de nós mesmos e, assim, nos incomoda. O não-eu nos define e coisifica e revela-nos o nosso “ser para o outro”, o qual, não raras vezes, não coincide com o nosso ser para si e, tão pouco, com o nosso ser em si. O outro desmascara aquilo que acreditamos ser e, na realidade, não somos. Ele nos mostra as nossas fragilidades e finitudes. Ele põe à nossa frente aquilo que não queremos ser e que até, muita das vezes, negamos e chegamos mesmo a abominar.
O diverso nos define por aquilo que demonstramos ser, por meio de nossas ações. Ele nos lembra constantemente que o agir deve seguir o ser, “agere sequitur esse”, ainda que queiramos negar esta realidade. A nossa tendência mais profunda é a de sempre querer afirmar que somos mais do que aquilo que fazemos. E o somos de fato. Contudo, isto não impede a insistência do outro em definir-nos por nossas ações. E isso é algo que não gostamos, ainda que esta definição reflita um aspecto da nossa realidade; ainda que represente um ângulo, uma perspectiva, a partir da qual somos observados.
Nós, ao olharmo-nos, não aceitamos que o outro nos reduza, ou melhor, faça de nós e da nossa existência uma metonímia, na qual se toma a parte pelo todo. Podemos roubar, matar, cometer injustiças, praticar desonestidades, agir com hipocrisia, entretanto, não queremos ser chamados e nem conhecidos como ladrões, assassinos, injustos, desonestos e, menos ainda, ser reconhecidos como hipócritas por negar estas realidades em nossas vidas. O outro é um inferno porque insiste em mostrar-nos aquilo que não queremos em hipótese alguma ver; a verdade que não queremos conhecer. O outro é o inferno, porque preferimos continuar sendo subjugados e escravizados pelo nosso ego, o nosso ser para si.
Contudo, contraditoriamente, o outro é também possibilidade de abertura para aquilo que está para além de nós mesmos e de nossa parca percepção da realidade. O outro me revela. Ele abre os nossos olhos e nos diz constantemente onde estamos e como estamos. Talvez, ele até não nos revele o nosso ser em plenitude, mas, com toda certeza, aponta para o nosso agir. E, isso nos dá a possibilidade de mudarmos. O outro é a janela que nos descortina para as infinitas possibilidades de ser da nossa existência. Ele nos diz constantemente: “Reconhece a verdade de tuas ações e serás verdadeiramente livre para mudá-las.” O não-eu nos questiona e nos empurra para o mundo da reflexão que tanto procuramos adiar ou recusamo-nos a fazer. O outro só é inferno para quem não quer ver. O diferente de mim é condição de possibilidade para o céu; é abertura para a transcendência. O outro faz com que a nossa subjetividade não se feche em si mesma, mas abra-se para o que está fora de nós. O outro é a janela que nos abre para o céu.
Convém, entretanto, diante da fala e revelação feita pelo outro, aplicar sempre o axioma existencial paulino: “Observai tudo e ficai com o que é bom” e verdadeiro, acrescento eu. Deste modo, não seremos vítimas de dois perigos: a supervalorização da opinião alheia; e a facilidade em fazer-se refém das falsas projeções dos outros. Afinal, para se chegar ao céu, é preciso discernimento...