Salvação, hoje?
“A única maneira de dizer a mesma coisa num contexto que mudou é dizê-la de modo diferente” (Y. Congar). Esta afirmação do renomado teólogo do Vaticano II, Yves Congar, pode ser comprovada ao tratar do tema da salvação ao longo da História do Povo de Deus, desde suas origens bíblicas até os dias atuais. É indiscutível que o homem que o homem necessite da salvação e que esta somente pode ser alcançada com o auxílio divino. Contudo, permanecem ainda hoje algumas questões, acerca deste assunto, que precisam ser esclarecidas a fim de que se possa ainda hoje falar de salvação: o que é salvação? O homem precisa ser salvo de quê, para quê e por quê?
Essas questões foram respondidas de vários modos ao longo da história. No Antigo Testamento, salvação era sinônimo de libertação da opressão exercida pelo faraó do Egito ou por qualquer povo que tentasse escravizar ou cercear a liberdade do Povo Eleito. A salvação, assim, tinha um viés social e comunitário, que na Teologia da Criação de Gênesis é expressa pela harmonia das relações do homem consigo mesmo, com Deus, com o seu próximo e com a natureza. O Novo Testamento retoma esta temática da libertação e da harmonia relacional aprofundando-as. A libertação proclamada e realizada por Jesus não é apenas algo social, embora o englobe também, e relativa a um povo, mas é universal e diz respeito àquilo que há de mais profundo no homem: a plenitude de sua capacidade de amar e de se relacionar, ou seja, de entrar em comunhão. Por isso, Jesus ataca a raiz dos males que é o pecado, que oprime o homem e impede que o Reino de Deus aconteça. Assim, a verdade do homem é revelada por Jesus e o conhecimento (co-nascimento) desta verdade faz com que o homem seja realmente livre para amar.
Na Patrística e na Idade Média, o tema da salvação foi compreendido, a partir da análise das sutilezas da salvação e da graça, advindas da especulação acerca das naturezas humana e divina de Jesus Cristo.
Na atualidade, porém, a compreensão da salvação adquire um caráter mais existencial e menos abstrativo e a investigação do assunto é colocada de modo mais direto e menos sutil. A salvação volta a ser a harmonia das relações e a palavra que a define é comunhão, que consegue integrar a identidade e a alteridade, no que tange as relações. Isto fica evidenciado nas relações de trabalho onde o outro (trabalhador) é coisificado e reduzido à condição de objeto quantificável e descartável e serve somente enquanto fonte de aumento de poder econômico por parte de alguns empresários que sequer conhecem o nome de seus empregados e muito menos a história que está por detrás de cada funcionário de sua empresa. Esse mesmo processo pode ser verificado nas relações sociais onde o outro somente é valorizado enquanto fonte de poder e de prazer. Neste sentido, a salvação nas relações sociais e trabalhistas pode ser entendida como o resgate do valor do outro enquanto pessoa, e, portanto, alguém que possui uma história e tem a mesma dignidade e os mesmos direitos e anseios que seu empregador ou qualquer outra pessoa. O outro não vale pelo que tem ou pelo que faz, ele tem valor em si e por si.
A salvação enquanto reconhecimento da dignidade do outro também aparece nas relações interpessoais. O outro (diferente) precisa ser respeitado e valorizado na sua diferença (alteridade) e especificidade (inseidade e perseidade). A salvação entendida desta maneira põe fim aos preconceitos e discriminações, bem como também salva o homem de reduzir o outro e a si mesmo a uma coisa ou objeto.
No campo da pastoral, o tema da salvação enquanto alteridade aparece no relacionamento das várias pastorais que, mesmo atuando em áreas distintas, buscam a unidade eclesial, a comunhão. Esta unidade não elimina a pluralidade, mas, pelo contrário, cria dimensão para esta, ao mesmo tempo em que e se enriquece com ela. A salvação impede a discórdia, os partidarismos e as disputas de poder. O outro deixa de ser entendido como inimigo e passa a ser visto como um aliado que atua em uma função diferente na mesma missão: a realização, a concretização, do Reino de Deus. Esta compreensão de salvação torna o cristão aberto para o diálogo ecumênico e inter-religioso.
No que tange a ecologia e o cuidado com o planeta, a salvação, enquanto comunhão e integração da alteridade e da identidade, evoca, convoca e provoca o homem a deixar de oprimir a terra e a voltar a estabelecer uma relação de paz e equilíbrio com a natureza, que não deve ser entendida somente como algo a ser explorado e dominado, mas como algo que participa com o homem de uma fraternidade cósmica, onde a natureza fornece o necessário para vida humana e o homem se compromete com o cuidado dela. A salvação é a restauração da harmonia originária entre os seres.
Por fim, porém não menos importante, a salvação pode ser entendida a partir da alteridade e do encontro com o totalmente outro: Deus. Neste encontro, é preciso que o homem reconheça a sua finitude e identidade criatural e entre em relação com o seu criador. Desse contato emerge uma mística e espiritualidade que não reduz a divindade a uma mercadoria que serve apenas para suprir as carências e necessidades humanas. Deus é o outro irredutível ao homem.
É muito provável que a base da solução para o fim do processo destrutivo da falta de reconhecimento da alteridade e, portanto, da desvalorização do outro, esteja no campo da fé. O reconhecimento da existência de um ser maior e que não faz par com nada que existe deveria levar o homem a criar dimensão para o diferente e para o frágil. Talvez, seja essa a maior contribuição que o discurso teológico hodierno acerca da salvação pode dar à sociedade.
Convém destacar que não basta ao homem o intelectualismo moral, ou seja, o conhecimento filosófico e racional destas coisas para que haja uma mudança de atitudes. Afinal, há algo no homem que, sem o auxílio da graça de Deus, impede-o de realizar o bem que quer e o impele a fazer o mal que não quer. Neste sentido, é necessário que algo venha em auxílio do querer e do agir humano. Este algo é a graça que opera ainda nos dias de hoje transformando o ser do homem. É exatamente neste ponto que entra a salvação alcançada por Jesus Cristo para o homem. Esta salvação abre o homem e o potencializa a tomar posse da fagulha divina do amor e da razão presente em si e no outro e impede que estes se reduzam a meros objetos e permite ao homem fazer uso da sua vontade e liberdade na construção do Reino de Deus.
O homem contemporâneo precisa ser salvo da falta de dimensão para o outro e do fechamento individualista e solipsista que aprisiona o ser humano e o impede de alçar vôos mais profundos em direção ao outro e fazer comunhão, inclusive com Deus.