Santa Clara e a Sagrada Escritura
Santa Clara e a Sagrada Escritura
I. A mística de Santa Clara
“Consideremos todos, meus irmãos, o Bom Pastor que, para suas o-velhas, sofreu a paixão da cruz. As ovelhas do Senhor seguiram-no na tribulação, na perseguição, no opróbrio, na fome, na sede, na en-fermidade, na tentação e em todo o mais, e receberam por isso do Senhor a vida eterna. É pois uma grande vergonha para nós outros servos de Deus, terem os santos praticado tais obras, e nós quere-mos receber honra e glória somente por contar e pregar o que eles fizeram.” (Adm VI)
Começar um texto que se propõe falar de Clara de Assis citando uma admoestação de São Francisco pode parecer para muitos uma tre-menda incoerência por se tratarem de pessoas diferentes. Afinal, Cla-ra é Clara e Francisco é Francisco. Entretanto essa impressão se des-faz quando se pensa que tanto Santa Clara quanto São Francisco fo-ram tomados por uma mesma inspiração que fez com que eles se tornassem aquilo que hoje são para nós franciscanos: espelhos e e-xemplos de vida.
O encontro com a senhora Pobreza não é propriedade de ninguém: nem de São Francisco e nem de Santa Clara. O carisma, assim como um texto, uma vez comunicado, uma vez que sai daquele que por primeiro o intuiu, passa a pertencer a todos aqueles que embarcam na mesma intuição e são levados pela mesma onda. Por isso, falar de Clara é falar de Francisco e falar de Francisco é falar de Clara e falar de ambos é falar de uma única e mesma intuição: a Senhora Pobre-za. Em outras palavras, falar de Francisco e Clara é falar da experiên-cia a qual todos os franciscanos são chamados a ter com Jesus Cristo pobre, humilde e crucificado.
Neste sentido, para nós franciscanos, e isso independe da Ordem a que pertencemos e somos, o seguimento de Jesus Cristo é a propos-ta, aceita por nós, de crescer em semelhança com aquele que nos chama a caminhar, tal como alguém que contempla o seu próprio rosto num espelho para ali se ajustar e adequar à beleza contempla-da ( Cf: 4 CtIn 15-18). Esse foi o caminho desenvolvido por Clara de Assis. Tal caminho foi tão bem percorrido por ela que nós hoje, assim como os primeiros frades depois do passamento do nosso patriarca, podemos perceber nela, mesmo dentro do claustro, um modelo para a realização da intuição ou carisma que pegou São Francisco. Clara em sua contemplação realizava o desejo da alma de Francisco, tal como Francisco em sua vida apostólica, embora eu prefira o termo evangélica, de pregação realizava os anseios mais profundos daquela que nos inícios de sua conversão queria dar a sua vida pelo Evange-lho em Marrocos (ProcC VI,6; VII,2). E, a fusão, o encontro destes anseios, dava-se na vivência da pobreza evangélica. Francisco na iti-nerância pelo mundo (Rb Vi, 3) e Clara na itinerância pelo claustro (RSC VIII,2).
A contemplação na experiência de Santa Clara significa saber (sabo-rear), experimentar vivencialmente e de modo concreto a presença do Deus e “Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo” que se revela no cotidi-ano de nossa existência. É essa contemplação que gera em Clara a sua intimidade com o transcendente. Como escreve a Irmã Sandra Maria, OSC, “Contemplar, para Clara é deixar-se absorver por aquilo que se vê, é prestar atenção, sair de si para ocupar-se com os inte-resses do Senhor. A atitude contemplativa de Clara desenvolve-se quando ela presta atenção na pessoa de Jesus, em Deus, na nature-za, em cenas bíblicas (por exemplo, Raquel, a Sulamita, Maria, Jesus) ou a personagens cristãos que se destacaram (como Inês, virgem e mártir, os santos e os primeiros frades menores), na realidade da vi-vência de irmãs, e se deixa absorver profundamente por aquilo que vê” [1]. A vida escondida em Deus de Clara, em São Damião, irradia vida para toda a Igreja, tal como um frasco de perfume aberto no quarto que espalha o seu aroma por toda casa, por meio da força que brota da oração e da santidade. Clara, como uma flor que insiste em germinar no asfalto, mostra que o carisma, que pegou Francisco e a pegou também, tem força suficiente para florescer e concretizar-se em qualquer lugar e realidade. O trabalho contemplativo de Clara mostra que mais do que buscar a Deus é preciso trabalhar-se para adquirir a sensibilidade necessária para que se perceba a ação do “Espírito do Senhor e seu santo modo de operar” (RB X,9; RSC X,9) em cada discípulo ou discípula de Cristo, como também em cada situ-ação que a vida nos apresenta. È na simplicidade e pobreza da vida que Deus se manifesta. Porém, somente a alma sensível e experi-mentada é capaz de percebê-lo.
A base da fortaleza de Clara de Assis, que a fez manter-se jovem e madura na sua opção, desde a primavera até o ocaso de sua vida ter-rena, foi a experiência de Deus que ela fez na realidade concreta do seguimento do Cristo Pobre. Esta é a base do carisma e Regra intuído por Francisco e Clara: a vivência do Evangelho, conforme vem escrito nas Regras das três famílias religiosas fundadas por Francisco (RB I; RSC I; ROFS II, 4; RTOR I,1; 2 CF 39).Sem fazer experiência de Deus ninguém se mantém na vocação. E essa experiência é sempre um dom de Deus. Não é por acaso que Santa Clara inicia o seu tes-tamento dando graças a Deus pelo dom de sua vocação (TestC 1-4). Por isso, o caminho do discipulado clariano é um caminho de Encon-tro.
O claustro para Santa Clara, mais do que um mero ambiente fechado que impede o contato com o mundo, é o terreno da revelação de Deus; o lugar onde Deus se des-vela; é a terra prometida como he-rança ao Povo de Deus. A clausura é acima de tudo a propriedade de Deus, assim como a cela não é apenas o lugar do repouso, mas o lu-gar da intimidade do encontro com Deus, o próprio céu. Isso explica a valorização do silêncio contemplativo que é o meio, o instrumento, para entrar na terra prometida, que é Deus. Somente após silenciar-se externa e internamente que se torna possível ouvir a fala do outro e, mais ainda, do totalmente Outro que é Deus. Quando o mundo se cala, é possível ouvir a voz de Deus. Neste sentido, o reconhecimento que Clara e suas irmãs fazem de serem “peregrinas e forasteiras” (RSC VIII) é expressão da busca que elas realizam, por meio do si-lencio, para entrarem na pertença absoluta de Cristo, para alcança-rem a plenitude da aliança inviolável e indissolúvel que já fizeram com ele.
Clara, ao longo da vida, percebeu que tanto o seu chamado, como o de suas irmãs é o seguimento de Cristo pobre e de sua mãe pobrezi-nha (TestC 46;RSC III,24; VI,7; VIII,6: XII, 13). A Pobreza para Cla-ra, assim como para Francisco, é o próprio Cristo. A pobreza coloca Clara na experiência do deserto que é o lugar por excelência do en-contro com Deus no Antigo Testamento. Pois, no deserto não há vida. Tudo neste lugar depende da vontade de Deus. È no deserto que se faz a experiência da pobreza extrema, da máxima expropriação, da nadidade que coloca a pessoa na total dependência de Deus o qual passa a ser a única riqueza da pessoa. Santa Clara sabe que não ter nada de próprio (RSC I) é a condição necessária para se ter o tudo que é Deus. Portanto, a Santa de Assis, ao insistir pedindo aos Papas Inocêncio III (1198-1216), Honório III (1216-1227), Gregório IX (1227-1241), Celestino IV (1241-1241) e Inocêncio IV (1243-1254) o privilégio da pobreza, quer se inserir na história do Povo de Deus “pe-regrino e forasteiro” no deserto da vida e, deste modo, retomar a ex-periência do êxodo que conduz a contemplação de Deus. A pobreza em Santa Clara é fecunda e gera vida. Nada se tem, para que seja possível abandonar-se na fé ao Pai, assim, é possível sempre de novo acolher o Espírito e gerar Cristo no mundo. Esse é o componente que distingue a vida no mosteiro de São Damião da vida de qualquer ou-tro mosteiro da Ordem Beneditina. A pobreza é a nota diferencial da Ordem de Santa Clara. A pobreza torna o claustro de São Damião um lugar de itinerância, onde não se tem nada, nem casa, nem lugar, nem coisa alguma (RSC VIII). E tudo isso é realizado num espírito de fraternidade ou sororidade, onde todas se reconhecem filhas do “Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo”.
Clara de Assis, por meio de sua experiência contemplativa realizada em meio à pobreza do claustro de São Damião, ensina a cada pessoa como é possível acolher o inédito da vida e realizar as disposições misteriosas do Espírito do Senhor, onde quer que seja. Pois, Clara, como já foi dito, no início da sua caminhada vocacional, ao ouvir falar dos primeiros mártires franciscanos de Marrocos desejou fazer o mesmo que eles, ou seja dar a vida como testemunho e anúncio do Santo Evangelho, porém, uma vez que a concretização do seu desejo, devido a estrutura eclesial de seu momento histórico, foi impossibili-tada, Clara aceitou realizar esse projeto e compromisso pessoal de dentro da clausura de São Damião. Deste modo, Santa Clara em sua vida de clausura fala para nós franciscanos de hoje da criatividade própria daquele que ama e é capaz de fazer do barro uma obra de arte.
II. A Bíblia e a sua simbologia nos escritos de Santa Clara
Lendo os escritos de santa Clara percebe-se que, em sua experiência contemplativa, ela alimentou-se constantemente da Palavra de Deus, tal como alguém que volta constantemente sedento à “fonte de água viva” (Jo 4,1-42). Contudo, as alusões que esta santa faz à Bíblia não são citações ao pé da letra, mas algo que brota da experiência con-templativa e orante de alguém que mais do que ler ou decorar a Pa-lavra preocupou-se em ruminá-la, fazendo da Palavra de Deus espíri-to e vida; luz para guiar a sua caminhada.
Clara, em São Damião, segundo alguns clarionólogos sérios, dispunha apenas do lecionário, que era utilizado nas missas do mosteiro e re-cebia o nome na época de Evangelho, e o breviário Romano que, tal como os frades, as irmãs que sabiam ler rezavam (RSC III,1-2). O uso desses livros era condizente com a pobreza do lugar e da vida abraçada pelas Damas Pobres de São Damião. Assim a palavra de Deus que nutria o caminho espiritual percorrido por Santa Clara pro-vinha da liturgia celebrada em São Damião e da pregação dos frades visitadores, como se lê na Legenda de Santa Clara 37:
“Por meio de devotos pregadores, cuidava de alimentar as filhas com a palavra de Deus e não ficava com a parte pior. Quando ouvia a san-ta pregação, ficava tão inundada de gozo e gostava tanto de recordar o seu Jesus que, uma vez, durante a pregação de Frei Filipe de Atri apareceu um menino muito bonito para a virgem Clara e a consolou durante grande parte do sermão com as suas graças. Diante dessa aparição, a Irmã que mereceu ser testemunha do que a madre viu sentiu-se inundada por uma suavidade inefável.
Não tinha formação literária mas gostava de ouvir os sermões dos letrados, sabendo que na casca das palavras ocultava-se o miolo que tinha a sutileza de alcançar e o gosto de saborear. De qualquer ser-mão, conseguia tirar proveito para a alma, pois sabia que não vale menos poder recolher de vez em quando uma flor de um áspero es-pinheiro que comer o fruto de uma árvore de qualidade.
Uma vez, o papa Gregório proibiu qualquer frade de ir sem sua licen-ça aos mosteiros das senhoras. A piedosa madre, doendo-se porque ia ser mais raro para as Irmãs o manjar da doutrina sagrada, gemeu: “Tire-nos também os outros frades, já que nos privou dos que davam o alimento de vida”. E devolveu ao ministro na mesma hora todos os irmãos, pois não queria esmoleres para buscar o pão do corpo, se já não tinha esmoleres para o pão do espírito. Quando soube disso, o papa Gregório deixou imediatamente a proibição nas mãos do minis-tro geral” (LSC 37).
Assim, Clara, em seus escritos, para falar de sua experiência mística prefere recorrer a uma linguagem bíblica simbólica. Neste sentido, alguns símbolos se destacam nos escritos de Santa Clara, a saber: o espelho, o êxodo (caminho), o Reino, o pastoreio, a família, a pobre-za, a amizade, o combate, a porta estreita e a plantinha.
O símbolo do espelho é tirado da passagem da epístola de São Tiago, que dá o seguinte conselho aos cristãos: “Sede cumpridores da pala-vra e não apenas ouvintes; isto equivaleria a vos enganardes a vós mesmos. Aquele que escuta a palavra sem a realizar assemelha-se a alguém que contempla num espelho a fisionomia que a natureza lhe deu: contempla-se e, mal sai dali, esquece-se de como era. Mas a-quele que procura meditar com atenção a lei perfeita da liberdade e nela persevera - não como ouvinte que facilmente se esquece, mas como cumpridor fiel do preceito -, este será feliz no seu proceder” (Tg 1, 22-25). A apropriação que Santa Clara faz dessa imagem evo-ca algo presente na cultura feminina de sua época: o espelho. A san-ta, porém, cristianiza a utilização do espelho. Santa Clara tem a consciência que a missão dela e de suas irmãs é a de ser “modelo, exemplo e espelho” de Jesus Cristo para toda a Igreja. Neste sentido, ela escreve: “o próprio Senhor colocou-nos não só como modelo, e-xemplo e espelho para os outros, mas também para nossas irmãs, que ele vai chamar para a nossa vocação, para que também elas se-jam espelho e exemplo para os que vivem no mundo. Portanto, se o Senhor nos chamou a coisas tão elevadas que em nós possam espe-lhar-se as que deverão ser exemplo e espelho para os outros, esta-mos bem obrigadas a bendizer e louvar a Deus, dando força ainda maior umas às outras para fazer o bem no Senhor. Por isso, se vi-vermos de acordo com essa forma, daremos aos outros um nobre e-xemplo (cfr. 2Mc 6,28.31) e vamos conquistar o prêmio da bem-aventurança eterna com um trabalho muito breve” (TestC 19-23).
A mãe da Segunda Ordem sabe que o seu jeito de ser deve ser um reflexo do jeito de ser de Jesus Cristo. As pessoas, ao olharem Clara e suas Irmãs, devem ver Jesus na sua pobreza e humildade. Todo o trabalho de Clara no Mosteiro de São Damião é para tornar-se um espelho, o menos embaçado possível, para cada vez melhor refletir a Jesus Cristo. Essa atitude determina o modo de Clara relacionar-se com o seu Senhor. Ela posiciona-se diante de Jesus, tal como uma mulher que quer enfeitar-se se posiciona diante do espelho. A preo-cupação de Clara é a de assumir em sua vida o modo de ser de Jesus Cristo, pois ela entende que no rosto de Jesus está o verdadeiro rosto do homem. Ela entende que espelhar Jesus Cristo é a sua vocação na Igreja. E, em fazendo isso, Clara realiza seu já citado propósito mis-sionário. O rosto refletido no espelho clariano não é o de Santa Clara, mas o rosto do próprio Deus do qual Clara também é espelho.
Dessa imagem do Espelho também brota a metodologia da mística clariana, ou, em outras palavras, a sua tríplice via da oração. Essa metodologia clariana vem expressa na segunda carta a Santa Inês onde Clara diz à sua destinatária: “Com o desejo de imitá-lo, mui no-bre rainha, olhe, considere, contemple o seu esposo, o mais belo en-tre os filhos dos homens (Sl 44,3) feito por sua salvação o mais vil de todos, desprezado, ferido e tão flagelado em todo o corpo, morrendo no meio das angústias próprias da cruz” (2CtIn 20).
Nesta tríplice via de Santa Clara ganham destaque três verbos que se baseiam no sentido da visão: olhar, considerar e contemplar. O pri-meiro verbo convida a uma atitude usual. O olhar é a primeira atitude que temos diante de um objeto. Ao longo do dia olhamos milhares de coisas, pessoas e objetos. E dentre o que olhamos - que o leitor en-tenda bem o que irei afirmar e leia tudo até o fim – está também algo chamado Jesus. Essa atitude de olhar faz com aquilo que é visto ain-da seja um objeto estranho a nós. O olhar nos diferencia das demais coisas. Aquilo que eu olho é uma coisa com a qual eu ainda não estou comprometido. E, isso acontece comumente entre nós, pois, graças a Deus, não nos comprometemos com tudo o que vemos. E não dá pa-ra contemplarmos Jesus sem que primeiro o vejamos (destaco aqui que vê é algo que está para além da visão).
Uma vez que se olhou, passa-se para a segunda atitude: considerar. Considerar é o mesmo que meditar. Considerar é ruminar aquilo que se vê. È se deter com um olhar mais atento e questionador. É colo-car-se a seguinte questão: O que isto que estou vendo me revela a-cerca de Deus e de mim mesmo? Neste caso, a pessoa se detém di-ante do objeto que passa a ter algo de comum com a pessoa. Aqui, gasta-se tempo e atenção com o que é visto. O que é olhado já não é algo estranho, mas uma realidade próxima.
No último passo da via chega-se à contemplação que é o tornar-se um com o contemplado. Jesus, neste espelho, já não é uma coisa so-bre a qual me informo, nem alguém próximo, tal como um tu distan-te, mas é alguém mais íntimo de mim que eu mesmo. A contempla-ção é um convite a transformar-se no contemplado. A contemplação leva a cristificação da pessoa que passa a ser um “outro Cristo” e, por isso, um espelho de Cristo. Neste sentido, quem mais contempla a Cristo, mais consegue imitá-lo em suas atitudes. A contemplação ge-ra a identificação com o contemplado. Assim como quem come alho cheira alho, quem contempla Jesus Cristo fica igual a Jesus Cristo, ou seja, adquire o jeito de ser de Jesus. Esse é o objetivo da tríplice via clariana: imitar a Jesus Cristo Pobre Humilde e crucificado.
Outro símbolo utilizado pela “Mãe e Irmã” do Mosteiro de São Damião é o do êxodo. Este símbolo é tomado por Santa Clara com a interpre-tação toda própria do Novo Testamento que expressa essa experiên-cia pela linguagem do “Caminho”. O Caminho foi o primeiro nome da-do aos seguidores de Jesus Cristo. Neste sentido, Santa Clara retoma esta imagem, reafirmando a fala de Jesus contida em Jo 14,16 sem citá-la em seu testamento (TestC 5). Jesus, para Clara, é o caminho que conduz para o Pai e deve ser percorrido no Espírito, tal como fez São Francisco. Note que a espiritualidade clariana é trinitária. E o ê-xodo, segundo a santa, é o seguimento de Jesus já aqui na terra. Es-se é o caminho pelo qual ela entrou.
Junto ao símbolo do êxodo, Santa Clara apresenta o símbolo do Reino que é o ponto de chegada á terra prometida, onde as irmãs deixam de ser “peregrinas e forasteiras” para tornarem-se “herdeiras e rai-nhas” (RSC VIII,4). Esse Reino já é vivido por Clara de modo concre-to na fraternidade de São Damião, no êxodo espiritual e no segui-mento de Cristo Pobre e crucificado. Essa alusão ao Reino evoca, convoca e provoca a tomada de posse da primeira bem-aventurança do Evangelho de São Mateus (Mt 5,3). Para Clara, falar do reino ce-leste não constitui uma fuga das realidades presentes, antes é uma retomada do projeto de vida que a tomou por completo e a fez entrar no caminho o olhar para o céu é um convite a viver bem na terra co-mo ela escreve a Ermentrudes de Bruges: “Querida, olhe para o céu que nos convida, tome a cruz e siga o Cristo que vai à nossa frente. Na realidade, depois de muitas e variadas tribulações, vamos entrar por meio dele na sua glória” (CtEr 9-10). O Olhar para o céu, em Santa Clara, não é uma alienação, mas um modo de não perder de vista o ponto de partida (Cf: CtIn 11). Olha-se para o céu a fim de se construir um mundo melhor na terra, ainda que se tenha certeza de que nesta vida se é peregrino e forasteiro.
Quanto ao símbolo do pastoreio, tão ricamente utilizado no Antigo Testamento, Clara prefere seguir a imagem do Bom Pastor transmiti-da por São João (Jo 10,1-8). Jesus é o pastor do pequeno rebanho das “Irmãs Pobres” geradas pelo Pai na Igreja pela palavra e exemplo de São Francisco (cf: TestC 46). A própria Santa Clara por sua vida tem as características de uma pastora. A Irmã Sandra Maria chega a afirmar que devido a estas características Clara foi retratada pela ico-nografia mais antiga portando um cajado. Este seria um ponto de discussão, pois, uma outra possibilidade de interpretação de tal ico-nografia poderia afirmar que Clara, por ser a abadessa do Mosteiro de São Damião, recebera, tal como as monjas beneditinas, as insígnias episcopais e entre estas está o báculo, símbolo do pastoreio de uma diocese ou mosteiro, tal como ocorre nos ícones e imagens de Santa Escolástica.
No que se refere ao símbolo familiar, Clara usa para si e suas irmãs a imagem da esposa mãe e irmã (1 CtIn 12; 24; 4 CtIn 4). Em relação às Irmãs, Clara prefere utilizar o simbolismo bíblico da mãe e irmã (RSC VIII,16; TestC 63). Clara, em sua relação com a Santíssima Trindade entende-se como filha e serva de Deus Pai (RSC VI,3; TestC 2; 24; 46; 77); seguidora e esposa de Cristo, com o qual quer unir-se na intimidade da alma (1 CtIn 7; CtEr 2-3); e esposa do Espírito San-to (RSC VI, 3).
Neste ponto, convém destacar que a mística esponsal é o cerne da espiritualidade clariana e ela vem bem descrita nas cartas trocadas com Santa Inês de Praga. Clara utiliza a imagem bíblica que melhor transmite a relação de Deus com o seu povo: a linguagem do amor presente na relação conjugal própria do amor humano. Deste modo, o amor conjugal torna-se símbolo do grande mistério do amor divino. Jesus chega a tornar-se o espelho no qual Clara se vê refletida e di-ante do qual se ajeita para tornar-se bela, tal como o Cristo Pobre (4 CtIn 15-23).
O símbolo que gerou a maior luta para Santa Clara foi o da Senhora Pobreza. Esta é a simbologia mais cara a Santa Clara, pois este sím-bolo é o vínculo de união com o carisma que pegou São Francisco. Não é por acaso que Clara lutou até o fim de sua vida para manter o privilégio da pobreza (TestC 33; 39).
O simbolismo da amizade remonta à relação face à face vivida com Deus por alguns profetas do Antigo Testamento, tais como Moisés, Elias, Jeremias, que foram tidos por amigos de Deus. Segundo Clara essa experiência de amizade é saboreada na contemplação (3 CtIn 14).
Clara também em seus escritos usa o simbolismo do combate e da luta. Essa simbologia permeia toda carta dirigida a Ermentrudes e es-tá sempre convocando a perseverar no caminho encetado opondo-se ao voltar atrás (1 CtIn 27-29).
Clara utiliza ainda o símbolo da porta estreita (1 CtIn 29), do tesouro (1 CtIn 22; 3 CtIn 7) e da verdade (3 CtIn 23).
Por fim, há ainda a imagem da plantinha (TestC 37; 48-49). Essa i-magem remonta a idéia de Deus enquanto agricultor, o cultivador da vinha eleita (Cf: Jo 15,1-17). Convém destacar que na linguagem ju-rídica medieval “plantula” era o nome que se dava a uma nova fun-dação que brotava de um mosteiro. Neste sentido, Clara ao chamar-se de plantinha ou muda de estimação (TestC 37) de São Francisco que afirmar que este santo é o plantador de sua Ordem (TestC 48) que é plantula (TestC 49) franciscana e não beneditina. Clara quer assim mostrar que tem identidade franciscana; que no DNA de sua ordem, que no seu teste de paternidade, não está o material genético de São Bento, mas o de São Francisco o qual é o pai da Ordem das Clarissas.
Conclusão:
Santa Clara continua sendo hoje, após os oitocentos anos de sua consagração, o modelo para o seguimento da Senhora Pobreza (Jesus Cristo Pobre, Humilde e Crucificado), que todos nós franciscanos bus-camos em nossas realidades e estados de vida. Meditar sobre a vida desta mulher é um convite feito aos franciscanos de todos os tempos para mergulhar cada vez mais nas fontes da Palavra para descobrir o rosto do Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo que sempre se quer nos revelar.
Que este pequeno estudo nos ajude a cada vez mais e melhor amar Àquele que nos chamou para seguir os Seus passos na escola de São Francisco e de Santa Clara. Amém.
Referência Bibliográfica:
[1] Irmã Sandra Maria, OSC. Espiritualidade e mística de clara de Assis (Um enfoque da vivência experiencial clariana de Deus). In: Grande Sinal. Ano 48. Março-Abril, 1994.