Para quem se propõe cuidar: um comentário ao Fioretti 25 de São Francisco
Em certo livro, Frank Matera escreveu: “histórias criam histórias quando os narradores as contam de novo”. Sendo assim, tomo a liberdade de aqui contar novamente uma pequena história, já há muito conhecida da literatura espiritual franciscana e italiana. Essa história é extraída do capítulo 25 dos "Fioretti de São Francisco”* e servirá como ponto de partida para aquilo que nos propomos refletir, de acordo com o título deste artigo.
Quase todo mundo de algum modo já ouviu falar do amor de São Francisco pelos excluídos e marginalizados manifestado de modo especial no cuidado e carinho pelos leprosos. Desde daquela tarde em que o “Pobrezinho de Assis” venceu a si mesmo e foi de encontro a um leproso nas florestas de Assis e lhe deu um ósculo da paz, nunca mais a experiência do amargo convertido em doçura no trato com os leprosos ou crucificados de ontem e de hoje deixou de fazer parte do cotidiano do santo e de seus confrades. A experiência do cuidado com o leproso marcou de tal forma a Francisco que o santo, em suas andanças pelo mundo conhecido de então, sempre queria hospedar-se nos leprosários e pedia a seus irmãos que sempre que possível servissem a Cristo Crucificado, Vivo, Presente e Atuante no Irmão Leproso.
Certa feita, o santo hospedou-se num convento dos frades que ficava próximo a um leprosário. Os leprosos deste lugar eram servidos pelos frades que se revezavam no cuidado daqueles que mais precisavam de carinho e atenção. Neste leprosário também morava um leproso que estava tão revoltado com a sua situação que descontava a sua ira em todas as pessoas que se propunham a servi-lo. Ele batia nos frades, gritava impropérios contra eles e, o que era demais para os frades, blasfemava contra Deus e a Virgem Maria culpando-os de estar em tal situação. A revolta do referido leproso era tão grande que os frades acreditavam que ele estava possuído por um espírito mal. Diante de tão desesperadora circunstância, os humildes servos de Cristo decidiram deixar de cuidar do leproso, pois não poderiam servir com a consciência tranqüila quem blasfemava contra o Altíssimo Senhor e sua Santíssima Mãe. Entretanto, eles não queriam fazer tal coisa sem antes consultar a opinião do Seráfico pai que se alojava próximo ao referido leprosário.
Os frades, então, expuseram o caso e a decisão deles ao beato Francisco que, após ouvi-los com atenção, retirou-se da presença deles e, após orar, decidiu averiguar a questão mais de perto e foi ele mesmo se ocupar do cuidado do dito leproso.
Ao chegar ao leprosário, Francisco dirigiu-se ao leproso e disse: “O Senhor te dê a paz, meu Irmão caríssimo”! O leproso por sua vez respondeu: “Que paz eu posso receber de Deus, que me tirou a paz e todo bem, e me fez todo podre e fedido? E, como se não bastasse, ainda me envia estes frades que não me servem como devem!”
Neste momento, Francisco, percebendo a ação do espírito mal sobre o Leproso, retirou-se da presença deste e, mais uma vez, colocou-se em oração e após um breve tempo voltou e disse ao Leproso: “Irmão, se os meus frades não te agradam, permita que eu mesmo te sirva.” E, o Leproso perguntou: “O que me podes fazer mais do que eles?” “Que queres que eu te faça?” Perguntou Francisco. E o Leproso respondeu: “Eu quero que me laves, pois estou fedendo tão forte que nem eu mesmo me agüento!” Ao ouvir este pedido, Francisco retirou-se da presença do enfermo e, junto com outro frade, recolheu ervas aromáticas e colocou-as numa chaleira de água para que esquentasse. Feito isso, Francisco ajudou o Leproso a despir-se e colocou-o sentado em uma bacia para poder lavá-lo com as suas próprias mãos, enquanto o outro frade despejava a água sobre o corpo do doente. E, eis que neste gesto um milagre aconteceu! Os locais, onde a água junto com a mão do santo tocava, ficavam curados. O Leproso, ao perceber o que lhe acontecia, começou a chorar compulsivamente de modo que suas lágrimas banhavam-lhe o corpo e a alma. O Leproso, então, começou a lamentar-se e a pedir perdão a Deus pelas suas palavras e pelo modo com o qual tratara aqueles que tentavam cuidar dele. Esse pranto durou o restante dos dias do ex-leproso, o qual, após algum tempo, morreu de outra doença.
Francisco, ao perceber o milagre ocorrido, retirou-se do lugar, pois, evitava, de todos os modos possíveis, o prestígio e a fama. Afinal, não queria roubar a glória devida a Deus pelos benefícios que este lhe concedera.
O texto de Fioretti 25 versa sobre a cura de um leproso blasfemo realizada pelo gesto de São Francisco. Desse trecho dos Escritos Franciscanos pode-se extrair uma preciosa lição para o serviço em diversas pastorais que trabalhem com pessoas em momentos de fragilidade, tais como a pastoral da saúde, da acolhida, da visitação, da esperança, ou mesmo a pastoral carcerária. Pois, em todas essas pastorais há uma relação entre uma pessoa que é cuidada e um cuidador.
Nesta passagem, a atitude do santo impressiona mais do que o milagre em si. Pois, o texto aponta para a cura de um modo de ser que muitos doentes e pessoas, em situações difíceis e irreversíveis, assumem: a incapacidade de suportarem-se a si mesmos, as suas próprias debilidades, fragilidades e finitudes.
A primeira coisa que impressiona no texto é a capacidade de escuta de Francisco não somente em relação àquele que é cuidado, mas, principalmente, em relação aos cuidadores. Francisco adota por duas vezes a metodologia do ouvir, julgar e agir[1]. Metodologia esta que o nosso tempo tanto carece. Francisco neste Fioretti demonstra toda a sua perspicácia e habilidade na difícil arte da “escutatória”. O ouvir de Francisco ultrapassa aquilo que é aparente aos olhos. O seu ouvir remonta à experiência semita na qual a audição era mais importante que a visão, pois a audição gerava a fidelidade, a obediência da fé. São Francisco ao ouvir a queixa dos frades cuidadores dos leprosos não expressa o seu juízo condenatório em relação à atitude adotada pelos seus confrades. O santo não condena seus irmãos, porque percebe que eles também estão doentes. É o excessivo zelo e a falta de empatia e compadecimento deles, em relação ao leproso, que revelam ao santo o mal, presente não somente no doente, mas também em seus confrades. O seráfico pai percebe que os frades cuidavam do leproso, não como irmãos, mas como quem era melhor do que ele. Eles cuidavam de modo vertical, de cima para baixo, como quem presta um serviço de modo objetivo, tratando o outro como uma coisa ou objeto, sem identificar-se e comprometer-se com a sua dor. Os frades não usaram de simpatia para com o doente, por isso, não puderam perceber que a doença deste não lhe corroia somente o corpo, mas também a alma.
Francisco nada responde à queixa dos frades. Isso ocorre porque, talvez, os frades naquele momento não precisassem e nem estavam prontos para ouvir nada, tal como é revelado pela atitude deles em relação ao leproso. Neste sentido, Francisco é preciso em sua ação. Ele não diz nada. Não pronuncia nenhum grande discurso acerca do amor ao próximo. Não faz nenhuma admoestação e nem sequer obriga aos frades a continuarem a servir o mencionado leproso. Francisco apenas se retira e vai ao encontro do doente.
Ao encontrar o leproso, Francisco se coloca numa posição abaixo daquele. Neste ponto, a escuta da queixa do doente realizada por Francisco também impressiona. Fran-cisco ouve o doente até o fim; sem nenhum pré-conceito. Ouve pacientemente a crítica contra os seus irmãos até o fim. Somente após ouvir o enfermo, Francisco julga a situação: o leproso está sendo atormentado por um espírito maligno. Entende-se por espírito maligno um modo de compreender a vida diferente daquele que é dado pelo Espírito do Senhor e seu santo modo de operar. O espírito maligno é a compreensão existencial que nega a finitude da condição existencial humana. São Francisco percebe que o problema do leproso não é com os frades e, muito menos, com Deus e seus santos. O problema do leproso é consigo mesmo. O leproso não se aceita. Ele não tem dimensão para acolher a si mesmo na situação em que se encontra.
Diante dessa constatação, Francisco ministra a medicação exata que o doente necessitava para recuperar a saúde originária: a humildade, a compaixão e, mais ainda, a simpatia.
A pergunta de Francisco para leproso coloca este não na posição de um pobre coitado necessitado da ajuda de outrem para sobreviver, mas como alguém que é senhor. A pergunta do santo remonta àquela que ele mesmo faz para Deus, Senhor dos senhores: “Senhor que queres que eu faça?” Francisco restaura a dignidade do leproso porque este não é agora tratado como servo, mas como senhor. A humildade do santo faz com que ele sirva o leproso de modo horizontal, como um igual. Francisco serve ao leproso como um servo serve ao seu senhor. Francisco não é apenas aquele que ocasio-nalmente serve, mas sim aquele que serve porque se entende como servo, ou, como escreverá o próprio santo no capítulo 10 de sua regra, porque é ministro e servo[2]. O gesto do Pobre de Assis evoca o gesto do lava-pés de Jesus na última ceia (Jo 13, 1-17) e convoca cada frade a unir-se a ele no mesmo gesto, pela força da consagração assumida, e, assim, provoca cada cristão a fazer o mesmo em todos os setores da sua vida.
O santo de Assis se coloca abaixo do leproso, por isso, serve-lhe não como que faz um favor, mas como alguém que está agradecido por poder servir. O gesto de Francisco faz com que o próprio leproso sinta a sua cura e a sua dignidade ser-lhe restituída. Se antes ninguém o aceitava e ele era tido por um flagelado por Deus, alguém digno de pena, agora o leproso se encontrou com alguém que o aceita tal como ele é. O leproso, que se achava incapaz de louvar a Deus na sua situação, encontrou-se com alguém que não tem medo de colocar-se a sua inteira disposição. E, mesmo estando sadio fisicamente, serve porque se reconhece como unicamente capaz de fazer isso (gesto que remonta aos cuidados paliativos). O servir de São Francisco é um servir agradecido. O leproso é curado porque se encontrou com um cuidador que cuida como quem serve e está abaixo daquele que é cuidado.
A cura física do leproso decorre da ação de Francisco e da própria aceitação de si mesmo realizada pelo leproso. Esse é o grande milagre ocorrido por intermédio o santo. A grandiosidade do milagre está na cura do leproso, do santo e dos frades.
A cura interior do leproso era necessária para que ele pudesse ter uma feliz páscoa. Somente após aceitar a própria finitude e, consequentemente, a sua doença, o leproso está pronto para encontrar-se com o Deus de misericórdia. Esse fato demonstra que a cura física não é o fato mais importante do relato em questão, afinal o leproso é curado para depois de poucos dias morrer. Isso demonstra que a verdadeira cura não é a física, mas a da pessoa na sua integralidade.
Com relação aos frades, Francisco, sem se dirigir diretamente a eles, ensina-lhes como deve ser o agir de um frade menor. Pois, um autêntico frade menor cuida não como um pai que está acima, mas como um irmão, ou seja, como um igual. O cuidado, quando realizado de modo fraterno, estabelece uma relação de equidade. Aquele que é cuidado e o cuidador se tratam como iguais.
Neste sentido, o termo menor adquire uma importância única, pois ele não é entendido como um mero adjetivo, o que implicaria em algo acidental, mas como um substantivo, que remonta à essência da pessoa. Assim, Francisco se relaciona com o leproso como um irmão menor, alguém que se reconhece como igual, ou seja, alguém que também é doente. Mais ainda, Francisco se coloca como alguém que está abaixo, que livremente se colocou abaixo. Isso o santo faz não para parecer melhor, aquele que é o mais humilde. Francisco se põe abaixo porque se entende como servo de toda humana criatura. Na sua relação como o leproso Francisco não é somente igual. Ele é menor.
Francisco é irmão porque reconhece que todos temos um único e mesmo Pai. Portanto, ser irmão é um dom dado por Deus. Ser menor, porém, é uma tarefa a ser realizada pelo frade com a graça de Deus. Ser frade menor é um dom de conquista, sendo assim, implica em uma graça e uma tarefa delegada por vocação de Deus a cada frade para construir-se a si mesmo a partir deste vigor existencial. É orientar a existência e o viver fraterno tendo como principio ordenador a minoridade. Ser frade menor é tornar-se o que se é por vocação.
Sendo assim, o gesto de Francisco é terapêutico tanto para aquele que é cuidado como também para os cuidadores, que aprendem com o santo que não basta cuidar do outro como quem faz um favor de cima para baixo. É preciso cuidar servindo, ou seja, ao cuidar do outro servi-lo como quem é agradecido ao outro por permitir servi-lo. Não é sem razão que a atitude do santo impressiona mais que o milagre.
Notas:
*Fontes Franciscanas In: http://www.procasp.org.br/paragrafo_subcapitulo.php?indice=24&titulo=I%20Fioretti%20di%20San%20Francesco&cParagrafo=916&cSubCap=58#Fior%2025
[1] a metodologia difere um pouco do método da Ação Católica do ver, julgar e agir, que foi adotado pela Teologia Pastoral Latino-americana.
[2] RB X