*O manicômio de Barbacena - MG.
O manicômio de Barbacena
Num desses domingos, assisti, pela TV Record, no Domingo Espetacular, a uma reportagem sobre a Colônia de Barbacena, um dos casos mais escabrosos da história da medicina no Brasil.
Ora, qualquer pessoa, desde que não se faça de inocente e tendo o mínimo de conhecimento ou percepção sobre jornalismo, sabe como são feitas as reportagens e edições de matérias televisivas. Em muitos casos, as respostas são “plantadas” antecipadamente na boca dos entrevistados, para que se colha o resultado desejado.
Pois bem, em dado momento, perguntado quem mandava os doentes para a Colônia, um dos depoentes respondeu:
– O padre, o juiz, o delegado, o prefeito, as autoridades em geral e as famílias.
O quadro apresentado pela Record, nem de longe representa uma prerrogativa do Manicômio de Barbacena. Os hospitais psiquiátricos, até a sua total extinção, visto com as lentes de hoje, eram semelhantes a campos de concentração no melhor estilo nazista. Eram depósitos de lixo humano. Ninguém era tratado com respeito ou dó.
Ainda hoje, é bastante conhecida a expressão “madeira de dar em doido”, como também muitos devem ter ouvido falar num instrumento chamado “camisa de força”.
Por que seria? Porque os pacientes eram “tratados” com choques elétricos de alta voltagem na cabeça. Eram mantidos acorrentados, emcelas carcerárias, dormindo no chão e, não raro, andavam completamente despidos. O infeliz que fosse jogado num hospital psiquiátrico, se não era maluco, ficava doido varrido.
Dante Alighieri, em seu livro ‘A Divina Comédia’, dizia que, no frontal do inferno, havia uma frase: “Uma vez aqui dentro, deixa lá fora todas as tuas esperanças”. Nada mais triste que a falta de esperança.
Essa frase bem que poderia ter sido escrita na entrada dos manicômios brasileiros, pois daqueles infernos ninguém saía vivo ou curado.
Não sei se algum padre mandou internar alguém, mas isso tem alguma verossimilhança já que, grande número das instituições de saúde, psiquiátricas ou não, pertenciam ou eram mantidas pela Igreja Católica.
Qualquer pessoa bem informada sabe que a assistência social religiosa chegava e chega sempre antes do Estado e a prova disso é a existência, ainda hoje, de inúmeras Santas Casas de Misericórdias, espalhadas por municípios isolados do mundo. Qualquer estudioso sabe que a assistência social no Brasil ainda não tem cem anos de existência.
De qualquer forma, o responsável direto não era a Igreja e sim, o corpo médico e os familiares que quase nunca iam visitar seus pacientes, deixando-os relegados ao mais infame esquecimento. Dentro dos hospitais, os pacientes mais pareciam fantasmas dementes, zumbis vagando sobre o efeito de entorpecentes.
A impressão que se tinha era de que os mortos ressurgidos das tumbas vagavam nus ou rotos pelos pátios, homens e mulheres numa promíscua convivência.
Quase todas as cidades tinham seus malucos inofensivos, que perambulavam pelas ruas, tanto que eu já escrevi, pelo menos, três “causos” de doidos que eu conheci. E sabemos que esses eram os mais felizes.
Tratamento psiquiátrico não é nem nunca foi uma coisa fácil. Hipócrates, muitos anos antes de Cristo, chamou essa doença de melancolia e, de lá pra cá, mudou pouco em relação ao tempo percorrido e ao avanço da própria medicina.
Houve um tempo em que a loucura era tida como possessão diabólica. As descobertas não aconteciam em laboratórios modernos, como os de hoje. Muitas advinham de puro acaso, de observações aleatórias.
Em 1927, o médico austríaco, Julius Wagner Vom Jauregg, injetou sangue contaminado com malária de um soldado em um paciente, conseguindo, com isso, resultados surpreendentes. Tanto que isso lhe valeu o Prêmio Nobel.
Ora, convenhamos que contaminar um doente com outra doença tão perigosa quanto a malária é um desatino, tanto que as melhoras foram tão efêmeras quanto frustrantes. Tudo isso numa época em que a demência era quase uma epidemia.
Na década de 30, a sífilis era incurável e responsável direta pelo número alarmante de casos de demência. No século XVIII, o médico austríaco, Franz Anton Mesmer, desenvolveu uma técnica chamada Mesmerismo, que consistia em passar ímãs sobre o corpo do paciente. Nada disso funcionava.
Muitos outros experimentos bizarros foram postos em prática, mas nenhum resultado foi, comprovadamente, eficaz. Por isso, foram abandonados.
Cheguei para morar em Aracaju em 1989 e, trabalhando em Propriá, tive o desconforto de ver um louco que era mantido encarcerado numa cela de 2m x 1m. Por detrás de uma grade de ferro, ele vivia completamente nu, de frente para o sol da tarde. O infeliz passava a maior parte do tempo gritando, se deslocando de um lado para o outro da cela, como um animal enfurecido. Fazia suas necessidades fisiológicas ali mesmo, à vista de todos.
É impossível acreditar que aquele fato não fosse do conhecimento do Ministério Público, do Prefeito Municipal e do sindicato dos doidos.
Era um quadro tão triste quanto desrespeitoso. As pessoas, ao passarem em frente ao lugar, especialmente as mulheres, olhavam para o lado contrário, pois a cena era humanamente impensável, degradante e humilhante, embora todos achassem que aquele ‘tratamento’ era normal. Tudo isso acontecia sob os cuidados (ou descuidados) e o consentimento das famílias.
Em Teresina, existia o Hospital Psiquiátrico “Areolino de Abreu” e eu duvido que o homenageado tenha se sentido feliz, vendo aquele depósito de condenados ser batizado com o seu nome.
A mesma coisa eu digo em relação ao médico psiquiatra baiano, negro, chamado Juliano Moreira, nascido na segunda metade do século XIX, que também dá nome a algumas casas de alienados.
Eu era garoto e quando andava sobre a linha de ferro que passava em um baita aterro pela Rua João Cabral, dava para ver, por sobre os muros, o quanto aquele bando de infelizes era desrespeitado em todos os fundamentos humanos. Repito, em nada ficava devendo às atrocidades nazistas.
Também era fato que o tratamento psiquiátrico da época era aquele mesmo. La société inteira aceitava como verdade que loucura não tinha cura.
A Psiquiatria hoje avançou muito, a ponto de os tratamentos serem efetuados no próprio domicílio do paciente. Mas na década de 60, não era assim. Era mesmo um tratamento desumano, se é que se pode chamar aquilo de tratamento.
Dizia-se que doutor de doido era doido e meio. Tínhamos uma psiquiatria rudimentar, patinando sobre os próprios rastros.
É claro que ninguém deseja que isso ocorra hoje, mas criticar fatos do passado remoto, com as luzes do futuro e ainda atribuir culpa à Igreja, embora de forma velada, isso também é doidice...