A música acabou? Provavelmente a história da música, enquanto fenômeno cultural, já chegou ao fim
A música acabou? Provavelmente a história da música, enquanto fenômeno cultural, já chegou ao fim
por Márcio de Ávila Rodrigues
[06/08/2024]
Meu gosto pela música - uma relação que se tornaria um tipo de paixão - começou quando eu já tinha mais de 20 anos de idade. E não foi algo natural, foi um caso de educação auditiva.
Até então eu ouvia música de forma displicente, sem prestar atenção de fato a ela. O rádio era praticamente o meu único veículo e não recebia estímulo ou influência de familiares e amigos.
Eu deixava o aparelho de rádio tocar, mas meu cérebro não se envolvia com o conteúdo. Só ouvia rádios comerciais, de conteúdo bem popularesco. Pop e até brega.
Aos 21 anos ingressei por concurso em um órgão público e tomei a sábia decisão de reorganizar meus hábitos. Meu novo ambiente me incentivou a conhecer música de melhor qualidade, como a MPB nacional.
Fui a uma loja, provavelmente o Rei do Disco, a maior rede do ramo em Belo Horizonte. Comprei o LP Geraes, de Milton Nascimento. O vinil dominava o mercado nos anos de 1976 ou 77.
Ouvi o bolachão atentamente e não me encantei. No dia seguinte comuniquei aos colegas a minha decepção e pude perceber que eles também se decepcionaram, pois contavam com a minha adesão a um tema comum.
Mas, nos dias seguintes, aconteceu um fenômeno psicológico: trechos das músicas ouvidas uma única vez retornaram ao meu cérebro e à memória.
Então recoloquei o bolachão na vitrola e voltei a ouvi-lo, desta vez com a mente mais livre, mais aberta. E o sentimento já foi outro, foi um momento prazeroso.
A partir deste episódio fui me integrando progressivamente à então efervescente música popular brasileira. Mais ou menos na mesma época colecionei os fascículos de uma publicação semanal da editora Abril, que incluía um livreto biográfico de um músico ou grupo e mais um vinil de tamanho intermediário.
Eu fazia questão de ler o fascículo e ouvir todo o disco a cada semana. Foi uma inversão de situação. De profundo desconhecedor passei ao grau de conhecedor razoavelmente avançado.
E segui expandindo meu universo musical. A música instrumental, a internacional, o rock, o pop não popularesco, o soul e o blues foram sendo progressivamente pesquisados, selecionados e incorporados ao meu espaço de entretenimento.
O movimento denominado rock progressivo já estava avançado desde o final dos anos 1960, mas só veio a me impactar em meados dos anos 80. O CD foi o veículo que me puxou. Na época existiam algumas locadoras de CDs musicais, que eu usei como fonte de pesquisa e conhecimento. Quando eu me agradava especialmente de algum, ia a uma loja comprar.
Ouvir Pink Floyd, Yes, Queen, Supertramp e Vangelis era um deleite. E não só eles, longe disso.
O ouvido anatômico ainda era o mesmo. Mas o ouvido musical tinha se transformado extraordinariamente.
Os anos 1990 trouxeram uma grande facilidade para o mundo inteiro copiar música sem pagar nada. E o início do século 21 trouxe os programas de compactação (mp3 em destaque), a internet e os programas de compartilhamento. Tudo gratuito, sem retorno financeiro para gravadoras e músicos. O mercado produtor ruiu.
A produção musical contemporânea é irrelevante. Recentemente manifestei esta opinião junto a um profissional da revenda e ele discordou amplamente. Falou sobre a existência de muitos artistas talentosos e pouco divulgados. Não dei sequência à conversa pois o meu interlocutor claramente não entendia a questão do mercado consumidor. Não conseguia fazer uma avaliação global.
No meu conceito, a questão econômica é a grande causa da decadência da criação musical. Quem tem talento até o desenvolveria, se tivesse perspectivas de sobrevivência no ramo. Sem esta opção, ou faz incursões em momentos livres ou simplesmente esquece tal possibilidade.
Nas reuniões sociais regadas a música é totalmente predominante a produção antiga. Só música velha é música boa, e exceção, como todos deveriam saber, só dá autenticidade à regra.
E sem a reciclagem produtiva, as novas gerações perdem a oportunidade de aguçar o sentido musical, de treinar o ouvido. Cerca de uma década atrás, durante uma viagem com três representantes da geração jovem, eu coloquei no sistema de som do carro o CD Oxygene, maravilhosa obra musical (instrumental) de Jean-Michel Jarre, uma mistura de rock progressivo com música erudita.
Os ouvidos mal treinados dos jovens não se sensibilizaram com a maravilhosa performance. A reação foi totalmente adversa, negativa.
Usando palavras fortes: a música acabou? Não vejo resposta diferente de “sim”.
Sobre o autor:
Márcio de Ávila Rodrigues nasceu em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, Brasil, em 1954. Sua primeira formação universitária foi a medicina-veterinária, tendo se especializado no tratamento e treinamento de cavalos de corrida. Também atuou na área administrativa do turfe, principalmente como diretor de corridas do Jockey Club de Minas Gerais, e posteriormente seu presidente (a partir de 2018).
Começou a atuar no jornalismo aos 17 anos, assinando uma coluna sobre turfe no extinto Jornal de Minas (Belo Horizonte), onde também foi editor de esportes (exceto futebol). Também trabalhou na sucursal mineira do jornal O Globo.
Possui uma segunda formação universitária, em comunicação social, habilitação para jornalismo, também pela Universidade Federal de Minas Gerais, e atuou no setor de assessoria de imprensa.