Complô de Mulheres
Artigo publicado no jornal A Tribuna de São Pedro 7/2/2009
COMPLÔ DE MULHERES
Até hoje, dois anos depois de a marchinha carnavalesca “Pra Carmen”, feita em homenagem a Carmen Miranda, ter sido premiada no concurso da Fundição Progresso/Programa “Fantástico” (Rede Globo), no Rio de Janeiro, muitas pessoas me perguntam de que forma, quando e onde a música foi feita.
Como estamos no mês do carnaval e nesta segunda-feira, 9, se comemora o centenário de nascimento de Carmen (ela nasceu em 1909), vou falar um pouco mais sobre essa marchinha. Omito detalhes para não abusar do espaço que tão gentilmente me foi cedido e pelo qual carinhosamente agradeço.
Bem, cada música, além de contar uma história, tem sua própria história. “Pra Carmen” percorreu um longo caminho até chegar ao concurso e ganhar o Troféu Chiquinha Gonzaga e sinto que houve mesmo uma conjunção totalmente favorável para que isso acontecesse.
O começo do caminho foi em janeiro de 99, quando fiz a marchinha para ser apresentada no espaço cultural da Caixa Econômica Federal, em São Paulo, pelos cantores Sandra Pereira e Moacyr Santos. A Caixa inaugurava uma exposição de pertences da cantora, atriz e comediante Carmen Miranda, em homenagem aos 44 anos de sua morte. Na platéia, a presença de Aurora Miranda, sua irmã.
Iniciei a música na parte da manhã e à tarde estava pronta. Foi andando pelo quintal da casa de minha mãe que a letra começou a se esboçar. Conhecendo e admirando Carmen por meio de discos, filmes, conversas (principalmente com minha mãe) e tendo acompanhado a cantora Sandra Pereira em pesquisas que fez sobre roupas e adereços da Pequena Notável, fui rememorando e anotando tudo o que me passava pela cabeça: como era Carmen, sua graça, personalidade, criatividade, maneira de cantar, atuar, brincar no palco, se apresentar, se vestir, seu jeito de corpo, gestual, enfim, sua alma.
Pensei no significado dessa grande estrela dentro do panorama musical e cinematográfico do Brasil e do mundo. O que pretendia era, em poucas palavras, “fotografá-la”. (Opa, o mote da canção estava dado!).
Pensei muito também no quanto o talento e a alegria de Carmen contribuíram para amenizar os horrores causados pela Segunda Guerra Mundial, nos países em que ela se apresentou. Imaginei também sua chegada “pro lado de lá”, aquele lado para onde acredito que todos iremos um dia, e a imagem que me veio foi a de uma chegada clara, festiva e muito bonita. A chegada de uma estrela maior! (Opa, o fecho do tema poético seria isso mesmo: “estrelas dando passagem pra Carmen Miranda passar”).
O tema melódico foi se delineando. Letra e melodia começaram a tomar forma, caminhar juntas e, claro, só podia ser uma marchinha carnavalesca! Tudo me levava a compor uma que Carmen pudesse perfeitamente incluir em seu repertório, uma bem ao estilo Carmen. Eu até a imaginei cantando minha música!
À tarde, liguei para a cantora Sandra que, com Moacyr, fez o arranjo. No dia da apresentação, “Pra Carmen” foi cantada e, graças a Deus, agradou muito, inclusive a Aurora, irmã de Carmen.
Um dia, em uma oportunidade em que Marília Pêra estava em São Paulo apresentando um musical com o repertório da Pequena Notável, deixei uma fita para entregarem a ela, mas nada rolou.
Tempos depois, os autores Miguel Falabella e Maria Carmem Barbosa levaram seu musical “South American Way” para São Paulo. Era a vida de Carmen no teatro. Tentei fazer chegar até eles uma fita e, novamente, nada feito. Na época, eu trabalhava à noite, mesmo nos fins de semana, e não podia ir assistir à peça. O tempo foi passando e eu continuava acreditando naquela marchinha que fiz de todo coração.
No final de 2006, quase oito anos depois de compor “Pra Carmen”, fiquei sabendo do concurso de marchinhas, no Rio de Janeiro. Inscrevi a música e quase caí de costas ao receber um telefonema da Fundição Progresso, criadora e realizadora do evento: das 1.200 inscritas, a minha fazia parte das 10 selecionadas. Em princípio, pensei que era um trote, mas era verdade mesmo.
Passado o susto, a alegria foi imensa. Eu estava felicíssima por poder homenagear esse ícone maior da nossa música, que o mundo reverenciou, e também por estar na lista que contava com nomes como Eduardo Dussek e Homero Ferreira, autor de “Me Dá um Dinheiro Aí” e de outros compositores conhecidos, que vivem de perto o carnaval do Rio (meu Deus! Justo no Rio, o berço artístico de Carmen Miranda, o berço da marchinha carnavalesca?). Tudo isso significava, pra mim, um grande prêmio.
Outro “susto-surpresa” me estava reservado. Minha música seria interpretada por quem? Respondo: por Soraya Ravenle, cantora e atriz de muitos musicais de sucesso, entre eles “South American Way”. Lembra que tentei passar a música para os autores da peça e não consegui? Pois é, coisas que o destino apronta com a gente... “Pra Carmen” seria cantada por Soraya Ravenle, que fizera o papel de Carmen no “South American Way”.
Alegrias mais vieram, entre elas deixar registrado em CD da Som Livre meu tributo à artista que, em sua época, além de inventar a maneira feminina de cantar, foi inovadora, sob vários aspectos, e revolucionou tudo na forma de se apresentar no palco. Carmen foi vanguarda.
Sentir que na minha querida cidade de São Pedro, as pessoas torciam por mim e muitas divulgavam a marchinha pela internet deu um astral muito alto e uma energia muito boa à música. A ajuda da família e dos amigos, tanto os de perto quanto os de longe, e de órgãos de comunicação, tanto os da cidade e região como os de outras grandes cidades, foi importantíssima.
Bem, das 10 classificadas, apenas três teriam o videoclipe exibido no “Fantástico”, que transmitia o concurso em tempo real. A emissora já tinha, antecipadamente, gravado o vídeo das 10 e só esperava a decisão do júri oficial, que definiria as três que iriam ao ar.
Quando André Luiz Azevedo, repórter do “Fantástico”, anunciou “Pra Carmen” como uma das escolhidas para disputar o Troféu Chiquinha Gonzaga foi uma festa pra mim e minha irmã, que me acompanhava no festival. Nossos telefones não paravam de tocar. Havia uma alegria geral dos familiares e amigos, todos querendo festejar comigo, todos comemorando, todos querendo estar no Rio de Janeiro comigo e eu querendo estar com eles.
No fundo eu sentia que, se a música ficasse entre as três, quando o vídeo fosse ao ar, com a Soraya Ravenle caracterizada de Carmen Miranda, cantando um absurdo e arrebentando tudo na apresentação, o telespectador se envolveria mesmo. Aconteceu! Soraya, a Banda Fundição e o arranjador Bilinho Teixeira deram show de bola.
Resultado: 49% dos votos foram para a marchinha “Pra Carmen”.
No momento de anunciar a vencedora, o barulho nos bastidores, a confusão, a adrenalina e expectativa de todos – compositores, intérpretes, platéia e torcidas – impediam que se ouvisse o que quer que se dissesse no palco.
Ao ouvir meu nome, pensei que era terceiro lugar (geralmente os festivais premiam as outras colocações para, por último, premiar a vencedora). Eu, que já estava felicíssima com isso, de repente fui praticamente empurrada para o palco sem saber qual era a colocação de “Pra Carmen”. Entrei, achando que os outros dois finalistas também estavam vindo, mas, de repente, senti que estava sozinha. Nesse momento fiquei entre o não entender nada e o sacar que minha marchinha era primeiro lugar, mas tive medo de comemorar sem uma certeza absoluta. O medo de dar um fora e pagar um mico em rede nacional foi enorme. A certeza absoluta só veio quando Soraya entrou no palco para comemorarmos a vitória. O esperado, desejado, mas inacreditável, estava ali: “Pra Carmen” foi a vencedora, o que prova que Carmen Miranda ainda é uma referência, continua encantando e está mais viva do que nunca.
Fiquei superemocionada, feliz, agradecida a Deus por esse presente e não conseguia acreditar, mas, depois, foi a maior alegria e fizemos o maior carnaval. É interessante como, em momentos como esse, a ficha demora a cair! Tive muitos carnavais felizes na minha vida, mas, certamente, esse é inesquecível!
Outra alegria enorme foi receber o Troféu Chiquinha Gonzaga.
Chiquinha, maestrina, uma compositora e pianista das mais significativas na história da música brasileira e autora da marcha-rancho “Ó Abre Alas”, a primeira a ser feita especialmente para Carnaval, é uma das figuras que mais admiro, tanto pelo seu talento quanto por sua personalidade. Receber um troféu com seu nome foi pra mim uma alegria imensa e um grande prêmio por tantos anos de luta dentro da música. Pelo que já ralei, ralo e ralarei sempre, foi um bálsamo. Eu amo fazer música. Compor, pra mim, é respirar.
Para não ser injusta, volto a falar de outra grande artista à qual me refiro no começo do texto: Aurora Miranda, irmã de Carmen. Acho que também ela, que ouviu “Pra Carmen” em primeira audição, em 1999, sete anos antes de falecer, teve um pouquinho de responsabilidade nessa história toda. Deve ter “soprado” alguma coisa pra Carmen...
Isso tudo me leva à reflexão de que cada coisa tem seu tempo dentro da vida da gente, e, assim como tudo o mais, cada música também tem sua hora. O momento de “Pra Carmen” era aquele!
Carmen, Aurora, Chiquinha, Sandra, Soraya... Ter meu nome ao lado dos nomes dessas mulheres tão talentosas e maravilhosas me recompensa, me deixa honradíssima e até me faz parar para pensar: opa, mas isso tem cara de complô feminino... Ou seria mesmo uma cumplicidade cósmica?
Bete Bissoli é jornalista e compositora