CONSIDERAÇÕES ACERCA DO POEMA O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL, DE CESÁRIO VERDE
Césario Verde, poeta português, liga-se parcialmente à estética da poesia Realista, ou do cotidiano, fixando sua arte poemática nos “aspectos da realidade considerados até então a-poéticos, ou pelo menos, a-líricos” (MOISÉS, 1973, p. 215). O poeta em questão está alcunhado pela periodização literária como pertencente ao Realismo de Portugal em termos de poetização do prosaico, no que diz respeito ao rebaixamento do objeto poético, na medida em que o espaço, declarativamente urbano, presente na maioria de seus poemas apresenta e tematiza o cotidiano, portanto, locais, figuras e situações veiculadas à uma queda do tom elevado da arte poemática (de influência greco-latina, sobretudo), ou certa desobediência à uma escala clássica de nobreza artística.
Tal queda do tom elevado na arte poemática pode ser explicada pela consciência da ruína do Cristianismo e de suas certezas integradas, trazendo o Cientificismo como reconhecimento das verdades do e no mundo. No período estético-literário em questão, tanto a prosa como a poesia, principalmente as de Cesário Verde, voltaram-se para o urbano como modo de conhecimento das verdades científicas, apresentando aspectos da Modernidade historiográfica em sua fragmentação e em sua perda da totalidade.
A importância de Cesário Verde para a História e para a Literatura é a tônica moderna em sua obra, influenciada pelo ideário poético do francês Charles Baudelaire , a qual se está pautada no rebaixamento dos temas e da linguagem (em contraposição ao Belo e ao Sublime da arte literária ocidental), assim como na crítica social, originadas pela perda da crença integrada e totalizante do homem. Charles Baudelaire é associado à imagem do flâneur, o qual “é um observador que caminha tranquilamente pelas ruas, apreendendo cada detalhe, sem ser notado, sem se inserir na paisagem, que busca uma nova percepção da cidade. E para situar a curiosa figura do flâneur no tempo, é preciso entendê-lo, antes de tudo, como uma figura nascida na modernidade. Ele apareceu como o contraponto do aspecto que trata das relações entre os fenômenos urbanos das multidões e a experiência vivida e transmitida pelo escritor através de sua forte expressão poética.” (PASSOS et al, 2003, p. 06-07). Daí, talvez, surgem as críticas sociais no poema O Sentimento Dum Ocidental, em tom de revolta diante das opressões urbanas causadas pela industrialização e a dedicatória do poema a Guerra Junqueiro, poeta português identificado por sua poesia de denúncia social.
O poema O Sentimento Dum Ocidental, de Cesário Verde, na obra O livro de Cesário Verde, de 1887, é dividido em quatro momentos, que se ordenam segundo a temporalidade: Ave-Marias (o anoitecer, por volta das dezoito horas, momento dedicado à oração da Ave-Maria na religião católica), Noite Fechada (o iniciar da escuridão e o cessar da luz natural do sol), Ao Gás (a luz artificial das cidades, a metade da noite) e Horas Mortas (a culminância da escuridão).
Tem-se no poema a representação poemática em tom narrativo (poema em ritmo e forma semelhantes à uma narrativa) de um passeio do eu lírico pela cidade, em que descreve durante o percurso o que observa (em especial as pessoas e os espaços) e faz considerações acerca dessas pessoas e desses espaços.
O título do poema, O Sentimento Dum Ocidental, pode ser pensado como metaforização da sociedade industrial dos finais do século XIX, uma vez que, mesmo com a ocorrência de um eu lírico que perambula pela cidade de Lisboa, tal sujeito poético está inserido dentro em uma realidade cosmopolita e industrial em ascensão em todo o continente europeu, apresentando o Ocidente como paradigma de um pretenso progresso e desenvolvimento. Antes de ser o sentimento de um português, o que se apresentará no corpo do poema, são as percepções e os sentimentos de um eu lírico que comprova estar diante de uma realidade não só portuguesa, mas de uma nova constituição histórica, social, econômica e cultural da Europa do final do século XIX.
A forma do poema O Sentimento Dum Ocidental incorpora as preocupações do período histórico (final do século XIX) europeu, a partir da divisão daquele em quatro momentos temporais que através de um processo de escurecimento gradual (metaforicamente construídos pelos subtítulos do poema) representam a movimentação da luz do anoitecer ao domínio total da escuridão. Nota-se, então, um processo impressionista desencadeado pela expressão do objeto e a impressão que o eu lírico tem dele a partir da imprecisão e/ou distorção do real dada a relação entre o espaço com a luz solar, com a luz elétrica e a diminuição, ou ausência das mesmas.
A transfiguração da realidade por meio da subjetividade do eu lírico pode ser pensada a partir do conceito moderno de sujeito (surgido no Romantismo; sujeito de seus próprios processos de ser e de estar no mundo) em contraposição ao conceito de indivíduo. A esse respeito cabe explicar:
Os românticos manifestam, muitas vezes uma profunda hostilidade a tudo o que é mecânico, artificial, construído. Nostálgicos da harmonia perdida entre o homem e a natureza à qual dedicam um culto místico, eles observam com melancolia e desolação os progressos do maquinismo, da industrialização, da conquista mecanizada do meio ambiente (LÖWY; SAYRE, 1995, p. 63).
A reprodução mimética do real é conduzida pela incidência da luz, modificando a realidade, gerando o impressionismo, portanto, a visão subjetiva do eu lírico contamina a realidade a ponto do poema apresentar descrições simbólicas de fragmentos de figuras e do espaço num tom expressionista. O impressionismo e o expressionismo tão singulares na visão do eu-lírico que funde ao sensorialismo representa essa distinção trazida pelo Romantismo entre sujeito e indivíduo:
As grandes aspirações na origem da revolta romântica – com vistas à libertação da humanidade de uma opressão corrupta, à libertação dos sentidos, das afeições e da razão humana, à igualdade entre os seres humanos e entre os sexos – estavam sendo destruídas por cada novo avanço do capitalismo industrial (THOMPSON, 1988, p. 18).
O poema O Sentimento Dum Ocidental, ao construir-se por justaposição de imagens fragmentárias, segundo o movimentar-se (do olhar e do caminhar) do eu lírico pela capital portuguesa e ao estruturar-se em tom narrativo, apresenta a cidade, espaço e o tempo percebidos sensorialmente, ou seja, a objetivação do real por parte do eu lírico ocasiona uma subjetivação em face de processos visuais e mentais psicologizantes, por isso, impressionista no retratar o que está sendo e não o que é, e expressionista no exagero que as impressões subjetivadas geram.
Vê-se na nona estrofe de Horas Mortas uma adverbalização de cunho expressionista da cor dos pelos dos cães, originada pela impressão subjetiva do eu lírico diante da falta de luz:
Amareladamente, os cães parecem lobos”, bem como pela utilização do verbo volitivo “parecer”, destacando o real segundo uma aproximação subjetivada mentalmente pelo eu lírico, daí o expressionismo no verso em questão.
Outros versos do poema destacam a percepção deslocada do real, como em “Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras”, em que astros está personificado na criação de uma metáfora expressionista para representação da realidade como ela parece e não como ela é. Tal metáfora é construída por uma combinação “esquisita”, ou melhor, surrealista, no momento em que a menor incidência de luz transfigura a realidade a partir da sensorialização mental e subjetiva do eu lírico.
O verso “E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos”, também pode ser considerado como construção expressionista, porque, metonimicamente a percepção do real por parte do eu lírico é guiada pelo exagero da impressão subjetiva do mesmo em face das alucinações dos sentidos, principalmente, originadas pelo escurecimento do espaço. A lanterna do caleche, então, torna-se olhos sangrentos através da sensorialidade do eu lírico. A segunda estrofe de Ao Gás, também é construída segundo processos expressionistas, uma vez que o final do primeiro verso relativiza a predominância da impressão criadora de outra realidade (a subjetivada pelo sensorialismo do eu lírico): “Eu penso/Ver círios laterais, ver filas de capelas [...]”.
É perceptível a adesão do eu lírico ao proletariado em atividade que observa em sua movimentação de corpo e olhar ao longo do poema; solidariedade tal que se confirma pelos seguintes versos:
Descalças! Nas descargas de carvão/Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;/E apinham-se num bairro aonde miam gatas,/E o peixe podre gera os focos de infecção!”,; “Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;/E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras./Correndo com firmeza, assomam as varinas.
Tais versos são construídos por meio de interditos da lógica discursiva através de exclamações, especificamente subjetivas (Descalças!) e de adjetivação erudita de elevação, em uma exaltação dessas mulheres (hercúleas). Assim, em alguns tomos do poema, Cesário Verde alinha-se à proposta de crítica social já mencionada no corpo dessa análise crítica.
Á guisa de conclusão, a poesia Realista, ou do cotidiano, de Cesário Verde, através do exagero da impressão (criação de imagens fragmentárias) e da recorrência expressionista (tornar o real um ponto de vista do real), demonstra que a alucinação dos sentidos na transformação do real confere ao poema a possibilidade de simbolização do citadino e do seu espaço em face das transformações sociais, culturais e econômicas do final do século XIX, para que um poeta de transição entre o Romantismo e o Modernismo possa referendar a concepção de sujeitamento e subjetividade, afinal, no poema O Sentimento Dum Ocidental, o eu lírico, por meio de juízos de valor sobre a realidade (de si e dos outros) traz a ideia do provisório. “Loucuras mansas” que se vale de iluminações (influências) para escritores póstumos, como Fernando Pessoa. Fernando Pessoa, que resgata a fragmentação, o sensorialismo (impressão e expressão de si, dos outros, em suma, do mundo) em suas obras poemáticas.
Referências Bibliográficas:
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 11ª ed. São Paulo: Cultrix, 1973.
VERDE, Cesário. Obra completa. Organizada, prefaciada e anotada por Joel Serrão. Lisboa: Livros Horizonte, 1992.
LOWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e Melancolia: o romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1995.
PASSOS, Fernanda. et al. O novo flâneur. Revista Eclética, Rio de Janeiro: Jul/Dez. 2003. v. 1, n. 17. Disponível em:<http://puc-riodigital.com.puc-rio.br/media/2%20-%20o%20novo%20fl%C3%A2neur.pdf>. Acesso em: 13 jan. 2016
THOMPSON, Edward P. William Morris: romantic to revolutionary. California: Stanford University Press, 1988.