O cavalo Pato Branco e o Golpe de Mestre tupiniquim (ou: Quando a arte pauta a realidade)
O cavalo Pato Branco e o Golpe de Mestre tupiniquim (ou: Quando a arte pauta a realidade)
Márcio de Ávila Rodrigues
O mais premiado filme hollywoodiano sobre as corridas de cavalos foi Golpe de Mestre (The Sting), de 1973, que ganhou o Oscar e fez sucesso em todo o mundo. Era uma comédia sofisticada, dirigida por George Roy Hill e estrelada pelos excelentes Paul Newman e Robert Redford. A história foi ambientada no ano de 1936, numa Chicago ainda sob influência de gângsteres como Al Capone (o Scarface) e John Dillinger, herança da Lei Seca.
No filme, a dupla de vigaristas resolve dar um grande golpe. Alugam um conjunto de salas e fazem uma decoração similar a uma banca de corridas de cavalos, um “bookmaker”. Contratam falsos apostadores e instalam telefones, mesas, um grande quadro-negro e alto-falantes para recepção das transmissões das corridas de cavalos, via rádio. Só que o sistema de alto-falantes estava ligado a um microfone localizado numa sala secreta, bem ao lado, onde um locutor narrava corridas fictícias, inventando resultados predeterminados pelos malandros-chefes.
Atingiram o ousado objetivo de tomar uma fortuna de um apostador mafioso que no dia seguinte voltou ao cenário e não encontrou vestígios dos seus algozes.
Na década de 70 ainda existia no Brasil um cenário semelhante: bookmakers (banqueiros ilegais) operavam apostas em locais nem sempre camuflados, havia bom público apostador e as emissoras de rádio persistiam como principal veículo de transmissão das corridas.
Poucos anos depois de ser exibido nos cinemas, o Golpe de Mestre acabou servindo de inspiração para os criativos — embora imitadores — malandros nacionais. O cenário foi a residência/local de trabalho do Geraldo Boi, o principal bookmaker de Belo Horizonte. Rua Cristal, bairro de Santa Tereza.
No final dos anos 70, a tecnologia usada nas transmissões das corridas estava bem parecida com aquela relatada pelo filme, um pouco pior até. A transmissão das corridas do Rio de Janeiro era feita por uma emissora de rádio FM que não era bem captada pelos aparelhos da época, nem pelos rádios da marca Transglobe, a preferida dos turfistas. O banqueiro Geraldo Boi então contratou uma pessoa com a finalidade de fazer uma ponte: diretamente do Rio de Janeiro, acompanhava as corridas por rádio e na hora da largada de cada corrida telefonava a cobrar para o Boi e colocava o monofone ao lado do aparelho. A transmissão das corridas chegava aos interessados por caixas de som.
O contratado era uma pessoa conhecida no meio: apostador, ex-proprietário de alguns matungos (cavalos ruins de corrida), um pouco de espírito aventureiro, quase 50 anos. A sigla do seu nome é M.S.L.A. e ele também era conhecido por “Tordilho”, em homenagem à sua vasta cabeleira grisalha. Morava na capital carioca, mas já havia residido em Belo Horizonte.
Num fim de semana (daquela época) eu acompanhava as corridas lá na casa do Boi, regadas com cerveja, refrigerantes, salsicha frita e linguiça idem, carne de sol e outras oferendas da banca. Em certo momento percebi que numa das salas aconteceu uma confusão: um cavalo ganhou com rateio alto, mas o Boi se negava a pagar apostas vitoriosas de dois apostadores, alegando que houve fraude. A discussão foi se estendendo e fui embora antes do término. Só no dia seguinte me contaram o caso.
Foi tão grande a inspiração no Golpe de Mestre que seria justo o pagamento de royalties. O fato é que os dois apostadores fizeram um acerto com o “Tordilho”, e ele passou a gravar alguns páreos. Fez alguns testes: só telefonava para Belo Horizonte minutos depois que o páreo havia corrido e acionava a tecla “play” do gravador; do outro lado, os apostadores ouviam a corrida – sempre torcendo aos berros, como é da tradição do meio –, acreditando que a prova estava se desenrolando naquele exato momento.
Quando uma destas corridas teve a vitória de um azarão com rateio elevado, o “Tordilho” trocou um telefonema com os sócios através do orelhão (telefone público) da esquina e eles depressa jogaram forte. Mais um minuto e a corrida foi enviada pela fita do gravador, como se fosse ao vivo.
Mas entrou um “boi na linha”, e foi na linha telefônica do Geraldo Boi. Um apostador e proprietário de cavalos muito conhecido no turfe mineiro, o corretor de imóveis Antônio Geraldo Lopes, que não estava no local, tinha conseguido ouvir a transmissão, provavelmente em algum ponto mais alto de Belo Horizonte, e telefonou a seguir, procurando alguma informação adicional. Instantes depois, o “Tordilho” telefona e anuncia que os cavalos estão se preparando para largar. Como a transmissão apontou o mesmo resultado que o Lopes havia antecipado, o banqueiro percebeu a trama e não quis pagar a aposta feita pelos dois sócios do “Tordilho”.
Não vi o final da discussão, mas no dia seguinte me disseram que ela só acabou depois que o Boi apresentou para os espertos o seu revólver de estimação.
O nome do cavalo não foi esquecido por uma testemunha da inusitada cena: Pato Branco. Isso me permitiu pesquisar, no site do Stud Book Brasileiro, quando o fato aconteceu. O Pato Branco era um cavalo gaúcho, de criação do Haras Retiro Vera Cruz – situado em Jaguarão, quase no Uruguai –, nascido em 1976. Ele ganhou quatro corridas na Gávea, a primeira em dezembro de 1979, duas em 1980 e a última em 1982. A história aconteceu, então, nesse intervalo de tempo, provavelmente em 79 ou 80.