Menos ferramentas, mais brinquedos
Em suas reflexões genuinamente filosóficas (ainda que não goste de ser visto como filósofo), o educador Rubem Alves costuma dizer que o ser humano carrega duas caixas: uma de ferramentas e outra de brinquedos. Com a primeira ele aprende e ensina tudo aquilo que é útil à sobrevivência e perpetuação da humanidade. Com a segunda, descobre que existir é muito mais do que sobreviver.
Sobre tais definições Rubem Alves escreveu: "O corpo carrega duas caixas. Na mão direita, mão da destreza e do trabalho, ele leva uma caixa de ferramentas. Na mão esquerda, mão do coração, ele leva uma caixa de brinquedos (...). As coisas da caixa de ferramentas, do poder, são meios de vida, necessários para a sobrevivência (...). As ferramentas não nos dão razões para viver. Elas só servem como chaves para abrir a caixa dos brinquedos".
O seu objetivo, com tais metáforas, é chamar a atenção dos educadores (mais precisamente, pais e professores) sobre o que dispõem a ensinar às novas gerações. Esse mineiro de Boa Esperança, que já confessou em um livro ter sido "mau aluno" (por razões muito bem explicadas), assegura que tudo aquilo que é aprendido com leveza e prazer fica para sempre. Ao contrário, o que é aprendido apenas por ser útil ou necessário dura apenas o tempo da utilidade ou da necessidade.
Não por acaso a infância costuma ser a época mais leve da vida das pessoas. Nela a caixa de brinquedos é o centro das atenções, ainda que o tempo também seja destinado aos afazeres e às obrigações. Triste a existência daqueles que tiveram a infância roubada pelo trabalho fora de hora ou mesmo pela exploração consciente e inconsciente dos adultos do seu meio.
A vida começa a ficar densa quando a necessidade e o peso da responsabilidade determinam que a caixa de brinquedos seja substituída pela caixa de ferramentas. É quando nos tornamos adultos e aceitamos os papeis que a sociedade espera que executemos com destreza e determinação. Vez ou outra nos permitimos brincar, ainda que com hora marcada e com certa culpa pelo "tempo desperdiçado". Só para constar, quem inventou o conceito "time is money" (tempo é dinheiro) não estava para brincadeira!
Ainda explicando a sua dimensão de ferramentas e brinquedos, Rubem Alves foi preciso: "Armar quebra-cabeças, empinar pipa, rodar pião, jogar xadrez, bilboquê, jogar sinuca, dançar, ler um conto, ver caleidoscópio: não levam a nada. Não existem para levar a coisa alguma. Quem está brincando já chegou. Comparem a intensidade das crianças ao brincar com o seu sofrimento ao fazer fichas de leitura! Afinal de contas, para que servem as fichas de leitura? São úteis? Dão prazer? Livros podem ser brinquedos?"
Se dependesse apenas de mim todos continuariam carregando (e ensinando os mais novos a carregarem) uma caixa de ferramentas. Não dá para imaginar evoluções tecnológicas e melhorias concretas no cotidiano sem tudo aquilo que está dentro dela. Eu mudaria apenas o seu peso e tamanho. A caixa de ferramentas jamais poderia ser maior do que a caixa de brinquedos, mesmo na vida adulta. Aliás, seria recomendável que o conteúdo das duas caixas se misturasse sempre que possível. Que o aprender a pensar e a fazer fosse tão prazeroso quando o sentir e o brincar. Finalmente, que as noções de útil e inútil tivessem o espírito como parâmetro, e não o nosso senso de valor material.