O LAMPIÃO DE FERNANDO VILELA: NEM HERÓI, NEM FACÍNORA... DEMASIADAMENTE HUMANO.
O LAMPIÃO DE FERNANDO VILELA: NEM HERÓI, NEM FACÍNORA... DEMASIADAMENTE HUMANO.
Luiz Roberto Zanotti
RESUMO: Este artigo pretende analisar a personagem Lampião no romance gráfico Lampião e Lancelote de Fernando Vilela com enfoque em sua ambivalência. Lampião, uma das personagens mais retratada pelas artes brasileiras, geralmente é caracterizado ou como um herói ou como um facínora, ou seja, enquanto para alguns autores, o cangaceiro é apresentado somente através de seu lado positivo de um revolucionário em luta contra o coronelato, para outros, o seu lado negativo de um bandido sanguinário é ressaltado. Estas duas abordagens fazem como que a personagem perca toda possibilidade de uma análise multi-interpretativa, o que a aproxima de uma visão cartesiana, onde se procura encontrar a verdade atrás de uma certa aparência.
Palavras-chave: Cordel, Romance gráfico, Lancelote.
A capa de Lampião e Lancelote (vide figura 1) já indica a contraposição que se seguira por todo o romance entre a predominância da cor prateada para Lancelote e a paisagem medieval inglesa, e a cor dourada para Lampião e o sertão nordestino.
FIGURA 1
Como veremos no decorrer deste estudo, a cor prata, para Ad de Vries (p. 425) significa a pureza, a inocência, uma consciência pura, como pode ser verificado, na utilização do cálice de prata nas cerimônias religiosas, e também sabedoria (a língua do justo tem a cor prateada). Além disso, a cor prata lembra o feminino, a lua e a noite em oposição ao dourado do masculino, do dia e o sol.
Para Gaston Bachelard (2002, p. 9), esta diferença entre o feminino e o masculino também se reflete nos elementos água e fogo, pois o elemento água é mais feminino é mais uniforme e constante que o fogo. Ele simboliza as forças humanas mais escondidas, mais simplificantes, tais quais as forças imaginantes da mente que, no impulso da novidade, escavam o fundo do ser. Como pondera Bachelard (2002, p. 9):
É nela que materializamos os nossos devaneios; é por ela que nosso sonho adquire sua exata substância; é a ela que pedimos nossa cor fundamental. Sonhando perto do rio, consagrei minha imaginação à água, a água é verde e clara, a água enverdece os prados. (...) Não é preciso que seja o riacho da nossa casa, a água da nossa casa. A água anônima sabe todos os segredos. A mesma lembrança sai de todas as fontes.
O elemento fogo, ainda segundo Bachelard (1999, p. 2-3), associa-se às crenças, às paixões, ao ideal, à filosofia de toda uma vida. Deve-se tomar cuidado com um pensamento eminentemente objetivo, sob o risco de jamais se alcançar uma atitude objetiva. O fogo conduz sempre ao aprisco poético, onde os devaneios substituem o pensamento, onde os poemas ocultam os teoremas. Porém, Bachelard pergunta: “O que é o fogo?”, e ele mesmo responde que, ainda hoje, as intuições do fogo permanecem presas a uma pesada tara e, apesar de toda racionalidade científica, ele ainda está presente em nossa alma (ou se preferirem psique). Existe ainda uma secreta idolatria pelo fogo, uma psique que guarda os vestígios do homem velho na criança, da criança no homem velho, do alquimista no engenheiro.
Em A psicanálise do fogo, o filósofo busca explicar as seduções que falseiam as induções, a valorização imediata da substância, o caráter objetivo e subjetivo do fogo, seus valores não discutidos, seu caráter duplo que,
ao subir das profundezas da substância se oferece como amor, e torna a descer à matéria e se oculta, latente, contido como o ódio e a vingança. Dentre todos os fenômenos, é realmente o único capaz de receber tão nitidamente as duas valorizações contrárias: o bem e o mal. Ele brilha no Paraíso, abrasa no Inferno.” (BACHELARD, 1999, p.12)
Com relação ao romance propriamente dito, a primeira aparição é imagem (figura 2) de uma Inglaterra (na época Bretanha) medieval, prateada e sombria, um território dividido em reinos independentes, onde alguns registros históricos apontam para um guerreiro chamado Arthur, que posteriormente entraria gloriosa e definitivamente para a história, sob a mascara do famoso rei Arthur e seus cavaleiros da Távola Redonda.
FIGURA 2
As primeiras referências a Arthur vêm do norte da Bretanha. Ele teria nascido por volta de 475, na pequena aristocracia da província. Com exatos 20 anos, montou um grupo de cavaleiros que saqueava a Cornualha e Devon. Naquela época, o seu bando não passava de um exercito pessoal, até o momento em que começaram as campanhas realmente sérias, no inicio do século VI.
Villela, assim como a maioria dos cantadores nordestinos, antes de mais nada, pede licença para a falar do cavaleiro Lancelote (figura abaixo) que ele apresenta cavalgando entre castelos medievais. Um cavaleiro bom, nobre, forte e delicado, que não tem medo de enfrentar nenhuma batalha.
Lancelot é um dos cavaleiros da Távola Redonda do Rei Arthur, mas parece não possuir nenhuma ligação com a realidade inglesa da época e, portanto, é fruto da ficção, mas uma ficção antiga e com profundas implicações históricas, pois Artur e os seus cavaleiros estão dentro do imaginário inglês, e ainda hoje, não há maior honraria do que ser nomeado cavaleiro pela rainha da Inglaterra.
Na sequencia (figura 3), Villela traz Guinevere e Morgana, duas das principais personagens dos romances da Távola Redonda, que para Jean Markale (p. 40), simboliza a confrontação entre a religião cristã e as práticas herdadas do druísmo num verdadeiro choque de culturas. Guinevere era uma piedosa rainha cristã, enquanto Morgana é uma bruxa vilã que servia para demonizar a religião e os ritos pagãos da cultura celta.
FIGURA 3
Conforme vários textos da época, Morgana seria meio-irmã do rei Arthur e ao longo de toda lenda se esforça para prejudicá-lo, fosse aprisionando-o, fosse fazendo de tudo para matá-lo, a fim de recuperar o poder que julgava usurpado. A rainha Guinevere, esposa do Rei Arthur, era o extremo oposto, com o seu nome em galês Gwenhyfar sendo bastante revelador: “branca aparência”, que remete diretamente à pureza da cor prata.
Para Jean Markale (p. 43), Morgana tinha um sentimento de frustração em relação à esposa do irmão. Ela era apaixonada pelo belo Lancelote e não tolerava que ele fosse o escolhido da rainha. Nesta perspectiva, apesar de Guinevere aparecer como uma anti-Morgana, ela também amava Lancelote apaixonadamente, numa relação adultera, o que obviamente é pouco conforme à idéia de uma rainha católica
O virar da pagina mostra um sertão nordestino dourado (figura 4), dominado pelo sol e pelo gado. Sertão reportado por Euclides da Cunha em Os Sertões que relata a história deste povo sofrido que habita o sertão brasileiro, uma região de terras não cultivadas. Um vasto território onde não havia cercas delimitando as propriedades. As cercas só eram usadas para proteger a roça do gado, e onde os vaqueiros se trajavam com uma indumentária sui generis feita inteiramente de couro (BARROS, 2000, p. 46).
FIGURA 4
A importância do gado que remete a própria origem do sertanejo, pois para muitos pesquisadores, o homem chegou ao sertão deixando para trás o sedentarismo, uma forma de vida inspirada na produção agrícola para iniciar o chamado “ciclo do gado”. Mas esta pecuária tem pelo menos uma grande diferença da pecuária litorânea ou do resto do país. Conforme podemos observar na figura 5, através das imagens dos mandacarus, o sertão é uma região carente de água. Por este motivo, o sertão traz todas as implicações da vida nômade, a necessidade da busca de novos pastos, haja vista, o rápido desgaste nessas áreas semi-áridas. O isolamento característico do homem desta região está ligado a esta forma de criação de gado que não comporta o trabalho massificado. O criador era um homem individualista, autônomo, improvisador e, sobretudo, livre. É importante também observar que, distante da dos traços culturais do sul do Brasil, a personalidade sertaneja também é constituída na indiferença no trato com o sangue devido à predominância da atividade pecuária. “O menino sertanejo muito cedo banhando-se de sangue, ajudando o pai a sangrar o boi ou o bode para o preparo da carne-de-sol” (MELLO, 2005, p. 21).
FIGURA 5
No meio destes mandacarus, Vilela apresenta uma série de cangaceiros, “homens sem temor de risco”, que herdaram a valentia de seus antepassados, uma população que foi obrigada a lutar contra os indígenas locais e até mesmo animais ferozes, ficando isolada e empobrecida.
Na sequencia da ilustração (Figura 6) que se encontra na pagina seguinte, Vilela finalmente apresenta Lampião juntamente com Maria Bonita, sendo fiel à imagem do casal cangaceiro, que bem antes de serem assassinados em Angicos pela patrulha volante, já havia se transformado numa figura lendária no panorama sociocultural brasileiro devido não só aos seus feitos, mas também devido a uma mídia ávida de notícias sensacionalistas e de todo um trabalho literário, onde predominava a literatura de cordel, sem dúvida uma das fontes de referência para o romance.
No que tange aos estudos históricos em relação a esta personagem, eles apresentam uma série de abordagens perspectivas que vão desde a sua apresentação como uma pessoa honesta e trabalhadora, mas que a miséria e a injustiça social fizeram com que embarcassem numa vida de crimes sem volta, até a sua retratação como uma pessoa extremamente violenta.
FIGURA 6
Um fator de suma importância na pesquisa histórica a respeito de Lampião diz respeito à proximidade temporal com o fenômeno, o que significa dizer que foram possíveis a obtenção de entrevistas com uma série de pessoas que tiveram contato real com Lampião. Também é mister de mencionar um grande volume de fotos, filmes e reportagens efetuadas por uma mídia ávida de noticias sobre o cangaceiro. A verdade é que talvez nenhuma outra personagem histórica brasileira tenha sido tão “explorada” como o cangaceiro nordestino.
Todavia, apesar desta propalada proximidade, renomados pesquisadores, tais como, Luitgarde Barros (2000), Frederico Pernambucano de Mello (2005), Rui Facó (1983) e Maria Christina Machado (1978), entre outros, possuem diferentes visões sobre este assunto. Barros e Mello ressaltam o seu caráter ligado ao banditismo , enquanto Machado e Facó Machado apresentam, dentro de uma perspectiva marxista, Lampião não como um fato isolado, mas sim como o resultado de uma época em que se processava a luta surda, empreendida pelo vaqueiro contra o senhor da terra. (MACHADO, 1978, p. 6).
A jornalista Vera Ferreira, neta de Lampião, em seu livro De Virgolino à Lampião (1999), vai trabalhar esta discrepância entre os historiadores propondo uma história do cangaço onde existam, pelo menos, dois Lampiões:
[...] um (real) que teve a sua existência real, que viveu todas as vicissitudes que um homem a margem da lei experimenta, e outro (mítico) que foi criado a partir de cada façanha efetiva ou inventada. Este é um produto coletivo que vai cada vez mais sobrepujando o primeiro. Há uma abundante literatura sobre o cangaço, mas poucos oferecem um quadro histórico mais ou menos completo. Tem-se praticado em torno do cangaço ainda uma espécie de história do tipo tradicional, ancorada nos heróis e nos seus grandes feitos, que faz com que a sua participação no imaginário continue crescendo. (FERREIRA, 1999, p. 10)
Seja lá qual for a perspectiva adotada, todas as biografias de Lampião têm invariância de uma ordem de dados, também salientados pelos informantes: era um exímio cavaleiro. Almocreve, cruzava as fronteiras de Pernambuco, Alagoas e Sergipe, cujos caminhos percorria com intimidade, conhecendo como a “palma da mão” a rede de rios e riachos que abastecia o Moxotó e o Pajeu. Palmilhava os pés de serra, grotas e socovões, deslocando-se na catinga com a naturalidade dos experimentados vaqueiros do Pajeú. (BARROS, 2000, p. 85)
Porém, se o fato de Lampião tiver sido uma criança pobre é aceito de uma maneira geral, mesmo esta infância e juventude de uma criança sertaneja, passa a ser ideologizada. Maria Machado afirma que ele desde muito menino, pelo fato de ter assistido muitas rixas no sertão, onde o coronel sempre levava a razão, já criava conceitos cada vez mais rígidos contra os potentados. Machado apresenta como argumento um poema atribuído a Lampião:
Se os homem desse aos vivente
O que açambarca os banqueiro
E dividisse as quintanda
E tudo dos masoquero
Neste mundo de miséria
Não havia cangaceiro (MACHADO, 1978, p. 36)
Esta opção de obter a justiça através da violência, que para Machado é causada por uma revolta infantil só vai fazer crescer com o processo de desenvolvimento de Lampião. Outro fator preponderante na formação do cangaceiro está na sua origem numa região atormentada pelas secas, uma paisagem árida. Neste ambiente sujeito à longos períodos de estiagem, acabam por empurrar muitos dos seus habitantes para o cangaço como meio de vida.
Mello (2005, p.190) chama a atenção para a correlação entre a seca, as agitações políticas e a rapinagem cangaceira, pois a seca promovia a desarticulação da incipiente estrutura governamental. O pesquisador oferece como argumento o editorial do Jornal do Recife, edição de 5/12/1926, onde é relatado que nos sertões de Pernambuco estavam surgindo outros bandos, que assim como o bando de Lampião, estavam fortemente armados e municiados, depredando e arrasando tudo nas suas passagens sinistras.
FIGURA 7
O dourado dá lugar á cor preta, que para Ad Vries (p. 50) está relacionado com a sombra, com a noite e com própria morte. A morte que, como vimos, está impregnada na cultura sertaneja. A noite, por sua vez, para as pessoas que não têm uma casa para morar acaba por se transformar num verdadeiro animal selvagem que vai causar o medo (BACHELARD, 2003, p. 172).
Naquela época, o panorama não poderia ser mais sombrio e mortal, com os coronéis, donos de grandes latifúndios no Nordeste, com total autoridade sobre os sertanejos e com poderes de vida e morte sobre eles não podiam permitir que a sua autoridade fosse colocada à prova: qualquer tipo de agressão gerava uma resposta ainda mais violenta, como por exemplo, exterminar totalmente a família do agressor.
Vilela, assim como Machado (1998, p. 37), mostra um Lampião e seus cangaceiros como homens em luta contra o coronelato: “homens que lutavam porque não chegaram a conheceram a justiça. Fizeram, então, a justiça com as próprias mãos. Eram os fora-da-lei. Mas onde realmente estava a lei? No bolso dos ricos ou no porrete do coronel?”
A cena seguinte volta para a Inglaterra que, segundo o autor, vivia nas trevas da Idade Média, o que é realçado com a utilização da cor preta que predomina metade da ilustração. Lancelote vai cavalgando pelas terras do Vale do Lago Sagrado onde vivia a feiticeira Morgana, que frustrada da possibilidade de tê-lo para si, lançou um feitiço nop formato de uma nuvem branca, pela qual se adentrou o cavaleiro (Figura 7), passando por um portal do tempo e chegando ao sertão nordestino.
FIGURA 8
O cavaleiro passa a cavalgar pelo sertão nordestino até o momento em que se defronta com Lampião (Figura 9). Este encontro se dá primeiramente pela mistura das cores prata e ouro. Lampião ao avistar o cavaleiro, em meio ao calor nordestino, ordena-o a parar, iniciando um diálogo dominado por insultos mútuos.
Os encontros de Lancelote e Lampião, e da Era Medieval com o sertão, promovidos por Vilela pode ser também verificado através da literatura de cordel. Como sabemos, a literatura de cordel é uma espécie de poesia popular que é impressa e divulgada em folhetos ilustrados com o processo de xilogravura. Escritos em estilo épico, os versos do cordel, naturais filhos das gestas medievais, dos romances de cavalaria transplantados da Península Ibérica, fecundaram a língua e o imaginário das populações sertanejas (BARROS, 2000, p. 14).
FIGURA 9
Os cordéis chegaram ao Brasil no século XVIII, mas hoje, ainda é possível, encontrá-los sendo vendidos em algumas regiões pelos próprios autores, sendo que, algumas vezes, estes poemas são recitados em público, ou, até mesmo acompanhados pelo som das violas. A sua especificidade advinda de ser uma importante fonte de memória popular vai influenciar vários escritores nordestinos, tais como: João Cabral de Melo, Ariano Suassuna, José Lins do Rego e Guimarães Rosa.
Estes pequenos livretos são escritos através de uma linguagem simples, com uma tendência de se usar os recursos humorísticos no tratamento de fatos da vida cotidiana da cidade ou da região, tais como: festas, disputas políticas, fatos pitorescos, assuntos religiosos, atos de heroísmo e vilania. Percebe-se, todavia, que não obstante a aparente simplicidade da linguagem, muitos poemas de cordel possuem uma linguagem rebuscada, muito distante da parcimônia de palavras, um elemento típico da sociedade sertaneja.
Luitgarde Barros (2000, p. 14), apresenta como hipótese para este fenômeno, a influência da própria literatura em seu estilo épico, proveniente das gestas medievais e dos romances de cavalaria transplantados da Península Ibérica, que fecundaram a mãe agreste, a língua e o imaginário das populações sertanejas. Ainda, segundo Barros (2000, p. 156), no processo de heroificação do cangaceiro, ainda é importante lembrar a contribuição trazida pelo cordel no sentido da aproximação dos feitos do cangaço às façanhas medievais que são relatadas no livro História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França que durante tanto tempo circulou pelo Nordeste, inspirando cantores e poetas populares. Os cordelistas adaptaram alguns elementos advindos das gestas medievais à catinga como príncipes vestidos com gibão, pelejando pelos sertões nas derrubadas de boi, numa luta de trabalho e força esperando alcançar com a vitória o premio cobiçado, uma donzela:
A travessia de setenta e sete léguas de catinga, enfrentando onça e boi brabo, levaria um valente a um distante castelo onde vivia uma princesa. Amarrando o cavalo no copiá de uma taipa, o rapaz olha ao longe a transfiguração da princesa, filha do fazendeiro. As moças direitas, filhas de homens de bem, são princesas daqueles homens das armas, ainda presos a alguns antigos valores (BARROS, 2000, p. 157).
Esta aproximação medieval com Carlos Magno é também lembrada por Curran (1988, p.69), que compara o modelo narrativo do herói-cangaceiro Antonio Silvino de Leandro Gomes de Barros com a personagem Carlos Magno no livro medieval. O poeta tirou dois episódios para criar dois clássicos do romance de cordel: A Batalha de Oliveros com Ferrabraz e A prisão de Oliveros.Câmara Cascudo cita casos de sertanejos cujos filhos se chamam Carlos Magno, Rolando ou Oliveros. Na literatura de cordel, o vaqueiro, o valente sertanejo e o cangaceiro têm traços de Carlos Magno ou de seus cavaleiros, embora usem chapéu de couro, o gibão e as perneiras do interior, em vez de armaduras de da espada de aço. Veja-se o que diz Antonio Silvino nesta cena de Gomes de Barros que lembra Roncevalles:
Eu choro a falta que faz-me
Todos os meus companheiros
Qual Carlos Magno chorou
Por seus doze cavaleiros.
Nada me faz distriar,
Não deixarei de seguir
A morte dos cangaceiros (GOMES DE BARROS citado em CURRAN, 1988, p. 69)
Num contexto, tanto medieval, quanto sertanejo, onde a honra é a qualidade mais importante para um homem, a disputa verbal entre os dois cavaleiros, como não podia deixar de ser, acaba por se definir pela declaração de guerra, com Lampião formando com seus cangaceiros seu bando dourado, enquanto Lancelote chama todos os cavaleiros do Rei Arthur e até mesmo o mágico Merlin para formar seu bando prateado.
FIGURA 10
Os bandos que num primeiro momento estão separados (Figura 10) entram numa luta feroz e longa que pode ser verificada nas nove páginas seguintes, conforme figura 11.
FIGURA 11
A luta termina através de uma mistura entre o sertão e a Era Medieval, que já observamos nos cordéis, com Lampião numa armadura maior que ele, e Lancelote com os trajes de Lampião. Lampião pega a sanfona e começa a tocar um xaxado em homenagem a Lancelote. Esta ligação do cangaço, e em particular de Lampião com a música, ao trazer consigo a imagem de um cangaceiro possuidor de um lado romântico forte, reforça a figura de Lampião como um homem bom e amoroso que o destino desviou dos caminhos do bem. Esta imagem de Lampião como um homem de bons sentimentos vai receber um reforço a partir da canção Acorda Maria Bonita composta por Volta Seca e registrada em disco fonográfico em 1957.
A luta das nove páginas anteriores é substituída por seis paginas onde todos dançam, desde Lampião com Guinevere, Maria Bonita e Lancelote até o momento em que a feiticeira Morgana desgostosa com o rumo dos acontecimentos, resolve acabar com a festa e através de uma magia colocou todo mundo neste cordel de Vilela.
FIGURA 12
Assim, Vilela consegue quebrar a visão dicotômica herói-bandido de Lampião relativizando posições pragmáticas na sua obra a partir da escolha da diversidade de cores/símbolos (cores preta, dourado e prata), da utilização de várias linguagens (verso, sextilha do cordel sertanejo, prosa, narrativa épica), de recursos gráficos (carimbo e xilogravura), ou ainda de elementos intertextuais. Para os defensores de Lampião como um bandido onde só podemos encontrar a violência e a atrocidade, ele mostra o cangaceiro com pouca paciência e que por qualquer motivo fútil, como a discussão com Lancelote, parte para o caminho da violência. Para os que acreditam na “boa índole” ele oferece o lado humano de um indivíduo que não foi mais violento do que o cavaleiro Lancelote, um exemplo paradigmático de herói medieval, e assim como o cavaleiro é capaz de ter um grande amor por uma mulher. Neste aspecto aparece a imagem de um nordestino generoso e justo, cruel e tolerante, prudente e arrojado, que soube com esse comportamento meio contraditório manter a ordem no seu bando. Um cangaceiro que era um líder, mas que apesar de ser um condutor duro e inflexível, foi capaz de amar com ternura uma mulher, a quem foi fiel e companheiro.
Referências bibliográficas
BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Afonso, 1999.
_______O ar e os sonhos. São Paulo. Martins Afonso, 2001.
_______A água e os sonhos. São Paulo. Martins Afonso, 2002.
_______A terra e os devaneios do repouso. São Paulo. Martins Afonso, 2003.
BARROS, Luitgarde O. C. Derradeira Gesta, Lampião e Nazareno: Guerreando no Sertão. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.
CURRAN, Mark. História do Brasil em cordel. São Paulo: Epusp, 1998.
DE VRIES, Ad. Dictionary of Symbols and Imagery. Londres: Nort-Holland, 1974.FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1983.
FERREIRA, Vera e AMAURY, Antonio. De Virgolino a Lampião. São Paulo: Idéia Visual, 1999.
Markale, Jean. A cristianização dos druidas. História Viva. São Paulo, volume V, páginas 41-43, março 2005.
MACHADO, Maria Christina Matta Machado. As táticas de guerra dos cangaceiros. São Paulo: Brasiliense, 1978.
MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil. São Paulo: A girafa, 2005.
VILELA, Fernando. Lampião e Lancelote. São Paulo: Cosacnaify, 2007.
as figuras podem ser vistas no meu blog
http://www.luizzanotti.blogspot.com/