ANÁLISE da música “COTIDIANO” DE CHICO BUARQUE
Podemos fazer duas análises da música “Cotidiano”, de 1971, de Chico Buarque. Na primeira, o eu-lírico revela a rotina de um casal na qual a esposa fica em casa, acorda o marido e o espera no portão no final do dia.
Expõe, assim, uma época em que a mulher era associada ao espaço doméstico, cujas obrigações do lar eram apenas atribuídas a ela. Nessa música, quem fala, quem nos conta a narrativa, é um homem, e é através do discurso masculino que nos é revelada uma figura feminina. É “ele” falando “dela”. Ela, segundo o marido, envolvida na rotina, nutre por ele um amor que não pode mais ser correspondido. É um matrimônio com caráter cíclico, monótono e aparentemente sufocante a ele.
Embora o ritmo musical seja gostoso, é também cíclico. Contendo em cada uma das estrofes a mesma toada. Os versos são predominantemente decassílabos e o esquema abab.
Esse homem, que chega em casa após o trabalho, tem uma esposa doce e submissa. Mas a mesmice esgota a relação entre eles e é ele quem acusa a esposa da situação em que se encontram. Sem dúvidas, um discurso machista e conveniente a ele que se cala com “a boca no feijão”. Afinal, mesmo ele não reconhecendo a importância da esposa, sequer cogita fazer as próprias refeições. Percebe-se o quanto esse marido depende da esposa: é ela quem o desperta com sorrisos e bom hálito pontualmente, é ela quem cozinha, quem o espera, quem toma as iniciativas do carinho. Talvez por isso, ele protela a mudança: “Depois penso na vida pra levar”. Como é ela quem dá o primeiro passo e ele se coloca na condição de receptor das ações da mulher, podemos afirmar que nesse relacionamento é ela quem domina. Talvez por ser tão passivo, ele espera que a mudança ocorra a partir da mulher.
Assim, segue o círculo da rotina :ele pensa em parar – mudar essa rotina – quando está cedo, mas quando chega ao meio-dia, já se acostuma novamente e desiste de parar a rotina. E isso, comumente as pessoas fazem… dizer que vai mudar a vida quando acorda,
ou antes de dormir e, ao fim da tarde, percebe-se que repetiu as mesmas coisas de sempre.
A rotina se vislumbra também pelo repetição das mesmas estrofes. Assim como na canção, a rotina que nunca para.... É uma composição musical denunciadora, uma das características das composições de Chico .
Na segunda análise, percebemos que este sujeito não pratica as ações, mas recebe-as e, além disso, não tem nome. Essa observação nos leva a considerar que o sujeito nada mais é do que a representação de toda uma sociedade. Esta é também uma das características das canções de Chico: a crítica a um poder. A música Cotidiano pode ser uma forma de mostrar como era o cotidiano dos cidadãos durante a ditadura. Como na época havia a censura, a forma que ele usou para mostrar isso, foi metaforizar ,neste caso, os militares como a “mulher”. Ela que vigia, sufoca, está presente, pede a ordem (horas exatas) e o progresso ( a mesmice do trabalho).
Observar-se-á que a única ação exercida pelo sujeito é a de se calar. “E me calo com "a boca de feijão”. Todas as outras ações serão exercidas por “ela”. Representante do poder, repressão, vigilância e dominação.
O ato de se calar também é confirmado na utilização de elementos referentes ao paladar como “jantar”, “hortelã”, “café” e “feijão”. Sabe-se, pois, que ao comermos estaremos impossibilitados de falar (estaremos com a boca cheia).Uma analogia cabe perfeitamente aqui: algumas ações para calar a sociedade, naquela época, foram semelhantes à Roma Antiga, como dar ao povo “pão e circo”:o Brasil, o país do futebol , do carnaval e das novelas. Quem sabe seja por isso que tantos brasileiros se calaram “com a boca no feijão” e sequer notaram o quão a Ditadura no Brasil foi cruel a quem tentou sair do cotidiano.
Letra:
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café
Todo dia eu só penso em poder parar
Meio-dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão
Seis da tarde, como era de se esperar
Ela pega e me espera no portão
Diz que está muito louca pra beijar
E me beija com a boca de paixão
Toda noite ela diz pra eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café
Todo dia eu só penso em poder parar
Meio-dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão
Seis da tarde, como era de se esperar
Ela pega e me espera no portão
Diz que está muito louca pra beijar
E me beija com a boca de paixão
Toda noite ela diz pra eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
E me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor
Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã