Análise do conto “A terceira margem do rio” de Guimarães Rosa
Publicado em 1962, “A terceira margem do rio” é um conto que deixa os leitores com muitos vazios. Durante a leitura, há diversas vezes um “ler levantando a cabeça” (Barthes ,1987, p.26). Sem dúvidas, um conto de enigma. Desde o início, mergulhamos nas dores do narrador-personagem desse conto. Um filho inconformado com a partida do pai. Uma partida sem adeus, sem explicações, sem feições de raiva ou alegria. O pai deixa a casa, deixa a esposa e os três filhos ainda pequenos e vai morar no rio. Rio imenso que tinha as margens próximas à residência daquela família até então “normal”. Alguns incômodos do filho são também os incômodos do leitor: como esse pai que até então seguia os padrões da sociedade, abandona tudo, despoja-se de todas as posses e vai para o “não-lugar” de morada “Ele não tinha ido a nenhuma parte.” Como ficaria debaixo de sol, de chuva, sem comida, sem remédios e demais necessidades que um ser humano necessita? E, o principal: abriu mão da comunicação, da linguagem –item essencial aos humanos, segundo a psiquiatria.
Entretanto, numa leitura mais atenta, percebemos que a linguagem familiar é um tanto truncada, entre eles. Nos primeiros parágrafos, percebe-se que todos os personagens falam pouco entre si. Apenas algumas palavras, inclusive a mãe, que diante da partida do esposo apenas diz— “Cê vai, ocê fique, você nunca volte!”. Aqui, percebemos a crescente ira da mãe no uso da figura de linguagem gradação, na qual, na linguagem roseana pode ser percebida o uso do pronome “você” ganhando força ao final da fala.
O respeito aos pais naquele tempo era sentido, ao contrário dos dias de hoje, pelo não-questionamento, pelo silêncio e abaixamento de cabeça, talvez por isso o diálogo fosse tão difícil. O filho, narrador – personagem, por exemplo, só descobrirá anos mais tarde que a mãe sabia que ele furtava comida dentre outras coisas para o pai e até facilitava ...isso demonstra o quanto a linguagem era caótica naquela família. Talvez, esse seja um dos saberes a ser refletido durante a leitura desse conto.
Ainda sobre a linguagem, além do próprio enredo ser bastante enigmático, destacamos os recursos linguísticos utilizados no conto. As palavras usadas em lugares inusitados na organização sintática das frases e os neologismos tornam a prosa poética na obra. “E a canoa saiu se indo”, “se desertava para outra sina de existir,” “ele no ao-longe” ...são vastos os exemplos desse recurso que marca a escrita de Guimarães nesta e em tantas outras obras.
O enredo carregado de sentimentos de solidão, de perda, de tristeza e de não sentir-se completo desde essa partida, torna o texto ímpar e relível por várias vezes. O dizer do narrador-personagem parece um dizer pedindo ao leitor que explique para ele o que com as suas palavras e com a sua vida ele não conseguiu entender: por que o pai partiu? Por que ficou no rio-rio-rio à Deus dará tendo como única posse uma canoa. A incompreensão do narrador- personagem ultrapassa a ficção e nos incomoda também: o que é a terceira margem? São várias as possibilidades : desde a canoa, que vista do alto traça uma terceira margem temporária por onde ela passa. Vale a pena lembrar que quem está na margem sente-se seguro: ali não tem água. O pai dentro da canoa possui, a princípio, as mesmas condições de quem está na margem: ali também não tem água. Do alto, do lado de fora, da posição do leitor, podemos visualizar três linhas, três margens.
E ainda podemos pensar que o pai é um transgressor da ordem estabelecida. Sai da vida previsível, da cultura, da crença, do conforto de seguir os padrões sociais estabelecidos e passa a viver conforme as suas próprias regras. Geralmente, a transgressão é feita pelo jovem questionador e que está descobrindo o mundo. Temos então um paradoxo: o filho à margem, que de criança a idoso segue a vida cumprindo as regras, à espera de um pai rebelde, que deixou de ser “cumpridor, ordeiro, positivo” até a velhice. Aqui podemos também elencar mais um saber :quem foram os heróis, senão transgressores de seu tempo e de sua sociedade? Mas até para o heroísmo –há uma causa a ser defendida- e esse pai contraria, uma vez que não se percebe qualquer causa aparente que ele defenda. Seria a terceira margem: o sair das margens (o lugar seguro) e se jogar na quebra das convenções sociais e regras estabelecidas?
Alguns analistas defendem que a terceira margem seja a morte: o pai morre, mas assombra a todos com a sua permanência por meio de lembranças e no caso do filho, narrador-personagem, há um não conformismo com a brusca perda.Com isso, não consegue ser quem deveria ser e vive à margem, à espera.
É possível dissertar ainda sobre outras tantas possibilidades de análises pois, além de girar muitos saberes, por ser um texto com discurso estético, a interação entre autor-texto-leitor (Barthes, 1987) é bastante perceptível nesse conto.
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. O prazer do texto. 1ª ed., São Paulo: Perspectiva, 1987.
ROSA, Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora ,1962.