Nota do Autor sobre o romance "O Rio Traírí Remoía Sertão" (Amazon, 2019 - 3 Ed).

Todo o mundo é um rio. E nesse rio todos temos um lado seco e outro alagado, qual seja na dura rocha da razão ou nas águas revoltosas da emoção - como o mundo da literatura neorrealista e modernista deve ser multipolar em sonhos e gestos narrados em romance astral. Daí, na cidade de Natal, RN, ainda na faculdade de Direito, final do ano de 2012, através dos incentivos pessoais de meus ilustres chefes do estágio oficial da Advocacia-Geral da União (AGU), professores e amigos, resolvi escrever as primeiras páginas de um romance. De início, confesso, mais parecendo um texto psicografado. Depois, eu teci o restante do livro em noites de inspiração sob o céu estrelado de Santa Cruz do Trairí, RN, nas horas vagas, no quintal da casa dos meus pais. Lembro-me de ter dado vida ao protagonista Mário (o narrador-personagem) - este já com um caráter de anti-herói, meio confuso das ideias, emotivo, alegre ou triste, um malandro sertanejo; necessariamente incoerente, como se apresenta a própria vida. Em seguida, reestruturei os ambientes e o ethos da obra a passos de cágado, durante dois ou três anos.

Sobre os ambientes humano, físico, social e cultural que me levaram a escrever este romance, revelo que a inspiração, em verdade, não foi lá tão difícil (sem falsa modéstia). Apesar de eu ter uma vida difícil de tempo corrido, trabalho burocrático e árduo de advogado particular, de autônomo que mata cachorro a grito para sobreviver, consegui escrever vários entretons deste escrito. Tive como fonte de criação o fato de eu ser um simples sertanejo, filho de pais comerciantes, católicos e de economias forçadas; espelhei-me em poetas e artistas de meu amado sertão potiguar. Pois bem, nasci em uma cidadezinha do interior seridoense, Currais Novos, e me criei em outra: Santa Cruz - esta cidade a qual tive vivência especial. Na minha infância e adolescência, Santa Cruz era um tipo de lugarejo que, da janela do meu quarto de dormir, era possível visualizar o início e o fim da cidade; poucas casas; muitos sítios arborizados; o prédio mais alto era a torre da igreja. Um município carente de recursos econômicos que, até pouco tempo atrás, a única fonte de renda girava em torno de aposentados, pensionistas e funcionários públicos - a maioria detentora de cargos comissionados na prefeitura e câmara de vereadores. Porém, uma cidade riquíssima de talentos para todo ofício ou arte, de artistas aos montes, de doidos inteligentes e inteligentes doidos – declarado, aqui, meu fascínio por essa gente que tanto me inspirou.

Igualmente, na vida sertaneja é preciso “tirar leite de pedra”. Por vezes, o sertanejo deve ter um espírito de cangaceiro para enfrentar as onças do dia-a-dia. Eis meu lugar um ambiente pouco gentil quando me atreveu escrever este romance não muito pequeno, em uma terra de poucos leitores – mas de grandes cordelistas e escritores. Recebi críticas até de quem não leu meu romance, e julgou o romance pela capa. Estive sob críticas ácidas de alguns até ditos “poetas” e “intelectuais”, ao lerem alguns pouquíssimos trechos que publiquei nas redes sociais, entre 2015 e 2016. Inclusive, alguns poucos me fizeram amolar a consciência ao dizer que escrever poesia ou romance é negócio de “fresco”, de “desocupado”; ao que deveria eu lançar um livro acadêmico de conteúdo jurídico. Críticas “construtivas” ou “destrutivas”? Bem, não existem. Críticas são críticas; apesar de, algumas críticas serem marcantes ao nosso aceite de autorreprovação, desde que sejam feitas por pessoas boas no que fazem - não no que falam para ofender o íntimo dos outros. Logo, superei críticas inférteis e busquei o frescor das sensibilidades; na necessidade de escrever sobre o meu mundo ao mundo dos homens. Mas sem esquecer as sátiras essenciais para protestar contra o lado podre de alguns.

Desse modo, descendo por um rio caudaloso e salgado, naveguei ao escrito de um romance de cunho realístico, quiçá dantesco. Busquei motivação e alento dentro das vozes que sussurravam dentro de mim, dos fulanos ao meu redor, inclusos à redoma do meu lugar-estado: Trairí cidade, Trairí sítio, Trairí rio, Trairí ficção e realidade. Contudo, motivação nem sempre se pesca fácil em um açude de poucos peixes. Depois, à minha vida um concerto dos sem-conserto. Verdade é que romance regionalista não abastece a mesa de ninguém, nem no Brasil, nem na terra do Tio Sam. Assim, quis afogar-me nas águas rasas da desmotivação, ao que teria eu de ingressar na vala comum do concurso público, do mecanicismo do mérito da lei à sobrevivência silvícola, do racionalismo econômico e de algum “cargo de status social”. Ou seja, nunca mais escrever essas excentricidades em forma de romance nacional; buscar ganhar o sustento da vida pragmática ao comércio da feira livre ou aos estudos e mais estudos (de leis descartáveis e códigos incorretos, de teorias jurídicas ambíguas e sem-valor diante dos malandros de poderio). Isso tudo porque nunca tive “pai-deputado”, nem costas largas, nem vontade de assumir uma demagogia como ideologia nem virar um ultraconservador de meia tigela. “Pobre vive pra se lascar!”, como diria o personagem-narrador Mário. E pobre do eu lírico nesses brasis sedentos por autoritarismo ou projeto de poder. No final da estória, a história sai perdendo no quesito humanismo e consciência planetária.

Se eu pensei em desistir de escrever esse romance? Sim, várias vezes. Mas preferi um galope soberano à loucura do mundo me entregar (ingenuidade de poeta que sou). Desse modo, argumentei à minha família que eu era um sonhador, um netuniano, um prolixo avesso aos “esquemas” dos pragmáticos de vez e política. Com ou sem trégua na imbatível ditadura da “triste vida severina” de um eterno país de “Terceiro Mundo”, fugi do lugar comum dos jovens de classe média daqui, e me atrevi aos folhudos. Li muitos contos, cordéis, causos, poemas, romances a fim de me inspirar neste escrito. Talvez, tenha sido isso uma espécie de refúgio emocional; seja eu bastante curioso ao mantimento de minha cachaça poética por esquecer a realidade ferina do mundo atual através das escritas deste romance; romance que me faz relembrar da realidade ferina do meu país que coleciona várias ditaduras governamentais: império, espadas, populismo e militar. Sem chances, escrever era o meu navegar porque “navegar é preciso; viver não é preciso”. Eh, escrever nunca foi fácil, seu Fernando Pessoa. Ainda mais numa terra onde quem não lê se acha…

Entretanto, sobrevivi aos vários problemas pessoais comigo e com minha família e consegui registrar páginas e mais páginas entre os anos de 2012 a 2015. Anos de crise econômica, de crise política e ética, no meu país; de estiagem, seca longa no nordeste brasileiro. De tal modo, terminei a escrita deste romance qual em águas salgadas de um rio-título.

Quanto ao conteúdo ou estrutura do romance, digo que a estória se passa pela narrativa do protagonista Mário, como já dito. Passa-se em um lugar qualquer de ficção, despretensiosamente denominado de Cachoeirinhas do Trairí, de sítio Riacho do Feijão. Esses lugares quiçá existam apenas nos nomes. Podem até se assemelhar àqueles lugares por onde eu li, vivi, cresci e aprendi a amar e lidar com as coisas boas e ruins da existência, conforme a interpretação subjetiva do leitor. Quem sabe seja uma cidade ancestral. Já o personagem central, o Mário, é um menino de família boa, trabalhadora e honesta, porém marcada financeiramente pela tragédia da seca, da inflação que endividou seus avós maternos. Também, em outras palavras, Mário é um “ser quase real”, isto é, sem pretensões morais; um embusteiro sertanejo; bom ou ruim diante dos vários contextos da vida. Ainda, nas palavras dos sociólogos que leram esta obra: “um ator social invisível resultado do meio que amolda o indivíduo em risco de miséria urbana e rural sem emponderamento social do Estado autoritário e excludente dos anos de 1975 no Brasil”. Tempo este em que o opositor político era perseguido e morto, o homossexual era chacoteado, o professor atacado, o cientista desprezado. Passado triste que ainda encontra tristes saudosistas.

Em seguida, há a situação que faz o menino Mário migrar do sítio à cidade, em êxodo rural dos infelizes da seca, no nordeste brasileiro. Já, no ambiente hostil da cidade, Mário vira rapaz, que vira homem, que vira vítima, vilão, catador de lixo, mendigo, bandido-mirim, numa sociedade mesquinha e hipócrita. Ao desfecho do escrito, Mário retorna ao mato como um caboclo resistido e sensível à natureza espinhenta da caatinga, quando finda à eternidade dos fantasmas que remoem lembranças do sertão. Fantasmas das secas que alagam mares de enchentes metaforizadas em lágrimas e dores em poema que fecha o romance (homenagem à região do Trairí Potiguar); fantasmas que assombram os coronéis retratados em Coronelismo, Enxada e Voto (Victor N. Leal, 1948).

Quanto ao ethos sobre a escrita deste romance, falo nada de soberbo, nada de machadiano, nada de velho ou de novo. Longe da escrita culta, formal, acurada, pensadíssima e perfeccionista dos ortodoxos da literatura nacional. Isso porque eu não sou tão “inteligente” ou “cultíssimo” a tal ponto. Só ouvi, observei e senti almas, costumes, hábitos, culturas, tradições desses ricos rincões de misturas e cores, que me criei vendo meu saudoso avô materno Elino da Rocha Freire qual um vaqueiro bravo e criador de pouco gado para corte e venda no açougue; observando pescadores a prosear no açude Santa Cruz; vendo agricultores em prosas de alguns casos engraçados narrados na cidade e lá no sítio Riacho do Feijão. Esse sítio, de fato, existiu além da ficção. Também, tive de narrar imaginados do sertão da região potiguar do Trairí que andei em solo batido, que remei em canoa de tábua rachada, em açude.

Dessa forma, o livro é de escrita simples, porquanto reproduz o falar do povo, o linguajar de interiores pequenos e comuns envoltos em descrições de paisagens, pessoas, fenômenos, criaturas e lendas que lembram a região nordeste do Brasil. Lendas já narradas por nobres intelectuais como Luís da Câmara Cascudo. Assim, contempla-se o meio ambiente, a cultura popular, os causos dos zés e marias. Por derradeiro, digo, a bem da verdade e da segurança jurídica: o romance é tudo mentira e invenção minha. É meu lado poético e desperdiçado de quem quer ser gente na lida da realidade romanceada, ainda que poeta fraco das rimas, ainda que jurista a tentar deixar de ser pisado pelos grandes de poderio político nessas capitais velhas de proselitismo e nepotismos em repartições públicas oligárquicas. Já, aqui, no sertão, o rio Trairí surge feito um deus humilde, matuto, e dilapidado, que brota das águas de um título salobro e teimoso a chegar até o mar. Do título, eis só um rio que não “remoeu” o sertão (verbo em pretérito perfeito, noção de tempo concluído), porém, que “remoía” sertão (verbo em pretérito imperfeito, de aspecto imperfectivo, significado que reforça a noção de inicialização no tempo). Logo, volta e meia, tem a obra, a partir do título, um aparente tempo passado, presente e futuro; permanente e contínuo na realidade incerta dos “moídos” e “causos” desse meu pobre e rico país aventuroso!

Diego Rocha.

Santa Cruz, RN. Verão de 2019

Diego Roccha
Enviado por Diego Roccha em 24/03/2019
Código do texto: T6606136
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