Apresentação ao romance "O Rio Trairí Remoía Sertão" (Amazon, 2016)

Deixe o peixe, deixe o rio

Que o rio é um fio de inspiração!

(Vital Farias, compositor paraibano).

O rio Trairí cheio! Ah, o rio dos peixes traíras...

(Mário, narrador-personagem de O Rio Trairi Remoía Sertão).

Neste nariz-de-cera temos a pretensão de instigar o leitor a mergulhar nas páginas d’O Rio Trairi Remoía Sertão. Navegá-lo de barreira a barreira, ou de capa a capa, para, banhando-se em suas águas tíbias, desfrutar de uma leitura estimulante e bem urdida.

Ressaltamos, de início, que a relação homem-natureza se faz presente em todo o livro. Seja quando discorre sobre as consequências do desmatamento e outras atividades que destroem o meio ambiente, ou quando revisita a recalcitrante e, infelizmente, sempre atual, temática da seca. Contudo, no romance, apesar de não haver escamoteamento dos problemas, o assunto emerge, na maioria das vezes, cingido por um viés poético: “Nessa marmota toda, é criançada no choro, morrendo de fome nesses sítios esquecidos do sertão. Lugares muitos, aí, nos abandonos feios”. Ou ainda: “Maior escassez. Nada de chover no chão fazia cinco anos. A falta d´água estava grande e medonha. A gente indo p’ro areal do riacho, via a cacimba funda, na tristeza da pouquinha água. Não tinha água nem pra banhar os espinhaços dum cururu – o sapo já preto que só carvão seco, morrendo no calor”.

O Rio Trairi Remoía Sertão congrega, em si, várias nuanças. Somente da perspectiva religiosa daria para considerar diversos matizes. Por exemplo, além de esquadrinhar a tão arraigada religiosidade sertaneja, existe um enfoque em relação ao misticismo ou sincretismo, que acaba eivando a narrativa de certo mistério. O próprio desfecho é intrigante, na medida em que o protagonista, que parecia tão real em todo desenrolar, chega ao final um tanto enigmático, quase transfigurado em fantasma ou coisa que o valha.

A narração é tipicamente sertaneja e propositadamente coloquial, com expressões e construções peculiares do nosso falar matuto. De outra banda, as preocupações político-sociais perpassam a obra, e as consequências danosas são expostas dentro do contexto urbano nordestino, com um cenário muito próximo da contemporaneidade, mesmo que a proposta temporal se situe nos anos oitenta. Diga-se de passagem, existe uma perspectiva de contraste entre a vida do campo e a da cidade, onde a realidade da vida rural é apresentada de forma mais amena e humanizada. Como, em determinado momento, diz o protagonista:

---- Aqui, na cidade, só tenho tido tristeza. A dívida que arruinou a terra de vô Luiz, adónde veio? Dum banco capitalista daqui! O povo na miséria, nos morros esquecidos desse lugar. Carestia, violência, injustiça, sujeira: cidade, eis o berço do mal! Quem sustenta o Brasil? Ora, os pequenos agricultores que são muitos! E não essas pragas do capital que comem o povo feito gafanhoto no milharal. E essas indústrias que o governo linha-dura toma partido? Sujam nossos rios, matam nossas florestas, molestam nossos índios. Dívida que politicão chama de “crédito” e deixa a família dele toda rica, morando fora do Brasil! Capital que inté deixa o povo doente, quebrado e com fome despois…

O coronelismo político, a corrupção, o apadrinhamento, as distorções na atuação policial e nos organismos de justiça, além de outras tantas mazelas institucionais, terminam por retratar o que, infelizmente, se tornou uma prática constante na maioria dos municípios nordestinos. A avalanche das drogas, a prostituição e os meandros da discriminação sexual completam um cenário um tanto dantesco. Ou, para homenagear o mestre Nelson Rodrigues, mostra a vida como ela é.

A aproximação de estilos no romance de Diego Rocha quiçá mereça uma particular e acurada análise. Laivos do regionalismo mesclados ao romance neorrealista, além do tratamento político conjuntural da realidade nordestina, formam o arcabouço bem peculiar da obra, cujo preenchimento se dá pela cuidadosa caracterização dos personagens. Se Mário, protagonista e narrador-personagem, incorpora o esperto e ladino sertanejo, também vamos nos deparar com outras figuras típicas, que habitam Cachoeirinhas: seu Armandino, velho avarento; Severino, vaqueiro contador de histórias; Tereza dos Arcanjos, prostituta; Leopoldo Bezerrão, prefeito corrupto; Jiban, gay e traficante; Alexandre Cruz, juiz corrupto; Alisson Pedrosa, advogado desonesto; Mestre Cocó, professor filósofo, além de outros tantos tipos dignos de observação.

Para aqueles que conhecem e saboreiam a culinária nordestina, também haverá um passeio degustativo, estimulado por descrições de dar água na boca:

---- Cheiro de comida boa brotava daquela fina chaminé preta. Madrinha preparou coalhada, pirão de leite e carne-seca bem torradinha no fogão à lenha.

Também destacamos que, já no final do livro, o tópico O sertão virou mar merece especial atenção, pois oferece interessantes aspectos. Num misto de realidade e ficção, uma cheia no Rio Trairi faz um grande açude estourar, causando uma tragédia de grandes proporções, inundando casas e afogando pessoas. A catástrofe real, ocorrida em 1º de abril de 1981 (ironicamente, dia da mentira), na cidade de Santa Cruz, deixou o Rio Grande do Norte sem luz elétrica durante três semanas. Para o leitor que deseja conhecer um pouco mais do lamentável fato, sugiro consultar os registros jornalísticos de então, para ter ideia da dimensão do sofrimento coletivo naqueles dias.

Particularmente, desconhecia tratamento literário de tal acontecimento. E agora, vejo-o insurgir de uma forma instigante e criativa, imbricando-o com a narração bíblica do desmoronamento de Sodoma e Gomorra, quando Deus anuncia a Abrão a destruição das duas cidades. Atentemos que Ló, sobrinho de Abraão, morava em Sodoma, o que implicava preocupação por parte do tio. E aqui, no desenrolar do episódio do estouro do açude, os protagonistas são tio e sobrinho. Coincidência? Não. Intertextualidade bem posta.

Boa leitura!

David de Medeiros Leite***

Escritor

Natal, RN. Inverno de 2016

*** Escritor da Academia Maçônica de Letras; Membro de Conselho Cultural no Rio Grande do Norte; Professor de Direito da universidade estadual UERN; autor de livros na Editora Sarau; Advogado.

Diego Roccha e David de Medeiros Leite
Enviado por Diego Roccha em 24/03/2019
Código do texto: T6606131
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