ORAÇÃO DOS DESESPERADOS Sérgio Vaz (PAS 1ª etapa)

ORAÇÃO DOS DESESPERADOS

Sérgio Vaz

Que a pele escura

Não seja escudo para os covardes,

Que habitam na senzala do silêncio,

Porque nascer negro é consequência

Ser

É consciência

Dói no povo a dor do universo

Chibata, faca e corte

Miséria, morte

Sob o olhar irônico

De um Deus inverso

Uma dor que tem cor

Escorre na pele e na boca se cala

Uma gente livre para o amor

Mas os pés fincados na senzala.

Dói na gente a dor que mata

Chaga que paralisa o mundo

E sob o olhar de um

Deus de gravata...

Doença, fome, esgoto, inferno profundo.

Dor que humilha, alimenta cegueira

Trevas, violência, tiro no escuro

Pedaço de pau, lar sem muro

Paraíso do mal

Castelo de madeira.

Oh! Senhores

Deuses das máquinas,

Das teclas, das perdidas almas.

Do destino e do coração!

Escuta o homem que nasce das lágrimas

Do suor, do sangue e do pranto,

Escuta esse pranto

(Que lindo esse povo!)

(Quilombo esse povo!)

Que vem a galope com voz de trovão

Pois ele se apega nas armas

Quando se cansa das páginas

Do livro da oração.

ANÁLISE

O mineiro Sergio Vaz, em 2007, promoveu a Semana de Arte Moderna da Periferia, em São Paulo. A inspiração é da Semana de Arte Moderna de 1922.Naquela época, a reivindicação daqueles artistas, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, era ter uma literatura voltada para o que era nacional e não mais “afrancesada” e descompromissada com o país. Sérgio, no século XXI, promove também um grito artístico: dar voz às periferias, hoje não menos marginalizadas. A oração de Sérgio Vaz é para o leitor mais que uma oração. É um clamor por justiça social. Não só a Deus, mas também a todos que detém o poder, as ditas elites “Senhores Deuses das máquinas”.

Os negros vieram para o Brasil para a cultura de cana, em meados de 1580, e só receberam a carta de alforria 308 anos depois (Neste ano completa-se 130 anos no dia 13 de maio). E, infelizmente os negros, os pardos, os morenos, os cafuzos, os mulatos e toda cor diferente da branca, sofre devido a cor da pele, por isso, “Uma dor que tem cor”. Não adianta dizer que não. Em qualquer canto do Brasil, a cor das favelas é preta, a cor das prisões é preta, a cor das escolas públicas, também é preta. Isso é consequência de ausência de políticas públicas, ao longo de quase quinhentos anos, para aqueles que compõem a massa, os guetos.

Por muito tempo aos negros cabia apenas o “Sim senhor. ” ou “Agora mesmo senhor”. As senzalas não foram parte de um filme dramático. Foram reais. Doloridas. Frias. E nelas, ocorreram muitas histórias de dor, de choro, de perdas. É por isso que Sérgio Vaz diz “os pés fincados na senzala”. A casa grande continua inacessível aos pobres, e, quando finalmente criam cotas, por exemplo, voltadas para as minorias, chega a crise. Advogados, enfermeiros, engenheiros e outras pessoas que se formaram, por não ter a quem recorrer, e tão pouco um apadrinhamento (prática recorrente no país), persistem à margem, sem o emprego compatível com a formação. São inúmeros graduados impedidos de pisar na Casa Grande, compor as camadas sociais de prestígio.

E se o clamor desse povo fosse ouvido? O Deus é um “Deus de gravata” muito distante do que os pretos das periferias vivem, insensível ao que cada excluído padece... “Doença, fome, esgoto, inferno profundo”. Ao adoecer, não há atendimento nos hospitais, não há comida o bastante para os desempregados (são cerca 12,7 de milhões nessas condições, segundo o IBGE). Programas diários mostram barracos e barracos sem qualquer infraestrutura ou tratamento de esgoto ...A ausência de muros, citado na oração poética de Sergio Vaz, não é o luxo das casas europeias que dispensam cercas, é a “organização” dos barracos amontoados uns sobre os outros, nos morros, como do Rio de Janeiro, ou à beira de córregos e rios, como em São Paulo.

E esse Deus engravatado que não atende a oração desses desesperados? Estaria ele enriquecido e impassível aos que Dele mais precisam? E, como toda prece não é em vão. Para tanta dor “Do suor, do sangue e do pranto”, há uma esperança: a união desse povo do Gueto “Que vem a galope com voz de trovão”. A força é a única solução para que a prece seja finalmente concretizada, “Quando se cansa das páginas Do livro da oração”. É hora da luta. Não existe outra arma para o “ (Quilombo esse povo!) ”.

Sim. Os quilombos foram terras de resistência. Ali, abrigaram-se aqueles que não aceitaram a condição de escravos e perceberam que seriam fortes unidos. Ali, viraram comunidade, povo.

São as respostas dadas à oração, a partir do verso "Escuta o homem que nasce das lágrimas". É como a epifania. Um estalo. Uma luzinha acendendo desde esse momento : de que adianta apenas orar e nada fazer? E para que fazer sozinho, quando é possível ser povo? Nesta oração dos desesperados, só há caminho: a luta, a resistência, a ação.Para enfim, "Ser trovão.

Marcela Cristiane
Enviado por Marcela Cristiane em 31/03/2018
Reeditado em 25/08/2020
Código do texto: T6296159
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