O Apanhador de Desperdícios de Manoel de Barros (PAS 3ª etapa )
O Apanhador de Desperdícios
Manoel de Barros
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
Eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
(De “Memórias Inventadas: A Infância”)
Análise
O primeiro verso é de fato uma lição de vida: “Uso a palavra para compor meus silêncios. ” Primeiramente porque hoje é praticamente impossível viver “o silêncio”. Em qualquer lugar (urbano) há sempre diferentes tipos de barulhos e isso tem desgastado as pessoas. Não parece ser da natureza humana existir dessa maneira. E hoje, o silêncio tem um preço alto. Se o quer, precisa pagar caro para usufruí-lo em hotéis fazendas ou recantos paradisíacos. Usar a palavra para compor silêncios é usar a palavra na medida correta, dosada, necessária e suficiente para satisfazer as pessoas, neste caso, o eu-lírico. Um economizador. E mais que isso: um apanhador de desperdícios. O que jogamos fora, ele apanha e dá valor.
E para deixar claro o posicionamento dele, nos revela a seguir que “Não gosto das palavras
fatigadas de informar. ” A sociedade contemporânea encontrou, por meio da globalização e da tecnologia, diferentes maneiras de acesso à informação e ao conhecimento. Entretanto, não podemos afirmar que esse novo comportamento trouxe benefícios ao indivíduo. Segundo o eu lírico, há uma fatiga nesse meio e, portanto, um desperdício, uma vez que toda sobra, todos os excessos, contribuem para a perda. O que fazer com esse universo virtual que temos hoje? Basta um enter ou um clique e temos à disposição o que quisermos de qualquer tempo ou espaço...E, em que sentido isso tem nos tornado melhores e mais felizes enquanto seres humanos?
Sem dúvidas, o poema nos chama a atenção nesse sentido e ainda dá a receita para nos fazer gente novamente: “Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão”. Ora, a quem se refere o poeta? Sim. Às palavras mais simples, concretas, cotidianas e que estão em todo o lugar. As pedras são um bom exemplo. Não há lugar no mundo que não tenha pedras. Constata-se, a partir daí, que não é preciso estar em constante busca. Tudo o que precisamos, na medida, está a nosso dispor. A água, no poema de Manoel, também tem sotaque inteligível ao eu- lírico. Isso significa que ter à disposição de si um tempo para a natureza, é importante para não cometer desperdícios. E quantos de nós na correria do dia a dia paramos para “catar” coisas tão pequenas? Quantos de nós damos valor aos seres desimportantes? E quem são os seres desimportantes desse século? Provavelmente os marginalizados como os presidiários, os analfabetos, os deficientes, os mendigos...A lista de exclusão é grande. Coisas desimportantes, para a sociedade “ligada na tomada “, pode ser exatamente o que sequer observamos cotidianamente, como sentir tomar um copo de água demoradamente, gostosamente ...Ou então sentir a própria caminhada. Ou ainda valorizar alguém desimportante como quem arruma todos os dias a casa, lava, cozinha, passa e nunca recebe um obrigado, um reconhecimento.
Há um claro convite do eu-lírico para o leitor viver o tempo presente intensamente sendo um expectador de si mesmo e do mundo, sem pressa.
Pode-se perceber que a composição poética é bem delimitada. De um lado está o silêncio, água, pedra, sapo, insetos, tartarugas, passarinhos, quintal, restos, moscas, canto, invencionática. E do outro, aviões, velocidade, mísseis, informática... Podemos seguir um ou outro caminho. E qual deles poderá preencher a nossa existência?